31.8.08

Señor



«Señor (Tales Of Yankee Power)», do álbum Street Legal, 1978, é Bob Dylan típico. Esta narrativa «mexicana» elíptica pode ser uma peregrinação em busca de uma mulher esquiva; pode ser uma crítica à arrogância imperial americana; e pode ser um lamento religioso. Que uma canção seja amorosa, política e religiosa, eis o que une Dylan a Cohen. Pessoalmente, aposto na abordagem religiosa. Street Legal é o último disco antes da conversão de Dylan, e aquilo que os álbuns seguintes trazem em fervor é nesta canção ainda dúvida e angústia protestante: O que é a verdade? Estaremos prontos para o momento decisivo? Quem é o nosso contacto? Onde está o nosso conforto? Tudo isso no modo interrogativo, jogando com a ambiguidade desse «señor» que em inglês se traduz laicamente por «mister» ou religiosamente por «Lord». O interlocutor «estrangeiro» que a cada passo interroga as nossas certezas e aprofunda as nossas incertezas termina com um apelo à desistência: «Señor, señor, let's overturn these tables, / Disconnect these cables. / This place don't make sense to me no more. / Can you tell me what we're waiting for, señor?». Mas Dylan sabe que basta uma resposta a esta última pergunta e tudo ganha um novo sentido.

30.8.08

Very fishy people



Piper Perabo, uma das actrizes da estreia americana de Reasons to Be Pretty, e a mais adorável das luso-americanas.

O aspecto físico



Reasons to Be Pretty (2008) concluiu uma trilogia iniciada com The Shape of Things (2001) e prosseguida com Fat Pig (2004). Nestas três peças, Neil LaBute escreveu sobre o «mito da beleza» e, mais concretamente, sobre a influência do aspecto físico nas nossas vidas. Em The Shape of Things, uma estudante de artes modifica completamente o aspecto de um rapaz por quem supostamente se apaixonou, revelando no fim que toda aquela transformação foi apenas um trabalho de fim de curso. Em Fat Pig, um yuppie atraente inicia uma relação secreta com uma mulher muito gorda, relação que não consegue manter porque tem vergonha que os colegas descubram. Reasons to Be Pretty começa quando um rapaz comenta desfavoravelmente a beleza da sua namorada em comparação com outra rapariga. A trilogia tem a virtude de quase todos os textos de LaBute: fala de temas incómodos com uma sinceridade radical e uma linguagem demótica bem calibrada. E tem também alguns defeitos típicos: um gosto demasiado pueril pelo choque gratuito, uma escrita com pouca espessura e sobretudo um moralismo intragável. Os prefácios de LaBute, tributários dos prefácios de Shaw, explicam a intenção moral do texto e tornam as peças muito menos interessantes. No caso da trilogia, é produtivo mostrar cruamente como o aspecto físico condiciona o sucesso social ou o equilíbrio emocional. Mas isso é incompatível com um discurso banal sobre a «superficialidade» de uma sociedade que vive «obcecada» com o aspecto físico. É uma abordagem pedestre ao assunto, que ainda por cima ignora completamente o avanço civilizacional que é o culto da beleza. Ao querer expor uma verdade incómoda (e ainda negada por muita gente), LaBute chama a essa verdade uma ilusão. Mas a ditadura do «aspecto físico» não é verdadeiramente uma ilusão. É, digamos, uma crueldade civilizada. Uma ilusão seria supor que eliminando o «preconceito» estético viveríamos vidas morais mais puras. O culto das «aparências» é uma construção, mas diz ao que vem. O culto das «essências» é pior, porque traz vestes de uma integridade ética estulta e espúria.

29.8.08

Northern exposure

A escolha da governadora do Alaska como vice no ticket Republicano gerou logo dois tipos de comentários. Uns dizem que vai ser difícil atacar uma mulher sem que isso se torne odioso. Outros não se preocupam nada com isso e atacam já a «housewife», a «babe», a «mommy». As duas reacções, igualmente absurdas, são um bom diagnóstico da «condição feminina» em 2008.

Os tanques russos



Parece que vêm aí os tanques russos. Mas esta guerra é outra. Nada fria e antiga de séculos. Aqui pela mão de dois putos de 22 metidos a Scott Walker, com romantismo orquestral impecavelmente «retro». E safam-se em grande, os meliantes. O mesmo não se diga do inefável «sexo oposto», atropelado sem dó nem piedade nestas cantigas. Alex e Miles até são bons mocinhos. Mas a paciência deles já se esgotou. O «teledisco» (como se dizia no tempo em que os tanques eram soviéticos) foi realizado por Romain Gravas, que é evidentemente filho do pai (cineasta e director da [vénia] Cinemateca Francesa).

28.8.08

Se isto não é o povo, onde é que está o povo?

Aquele Querido Mês de Agosto é um dos grandes filmes portugueses dos últimos anos. A primeira longa-metragem de Miguel Gomes, A Cara que Mereces (2004), seguia um programa «regressivo» bastante frágil, embora tivesse a mesma curiosa obsessão «ritualista» das suas curtas. A segunda longa de MG passa-se na região de Arganil, e como eu conheço bem a Lousã, uma vila vizinha, reconheci a justeza da aproximação «etnográfica». Sempre me lembro daquele mundo de bailaricos populares com aparelhagens manhosas, de procissões sonolentas, de praias fluviais, de emigrantes em visita, de crimes sanguinolentos que rasgam o «idílio» campestre, de incêndios brutais que mudam a cor do céu. Gomes recusa o documentarismo «televisivo» e judicativo. Em vez de talking heads que debitam para a câmara, temos uma utilização da voz off que respeita em igual medida as pessoas ouvidas e a nossa curiosidade. Em vez de mais um discurso sobre «o povo», o qual, como MG disse ao Público, é sempre mitificado ou apoucado, temos o próprio povo. E não é um povo desencarnado. MG filma tradições e os ritos, e canaliza ambos em imagens e sons com infalível função narrativa. E depois há a natureza, a «misteriosa» natureza, da qual sabemos tão pouco que precisamos de cartões que identifiquem as árvores. As vicissitudes da rodagem fizeram com que o filme ficasse «impuro», não apenas uma justaposição de documento e imaginação, mas uma estrutura perfeitamente calibrada em que cenas «reais» são encenadas e cenas ficcionais contêm a «sujidade» dos diálogos e das inflexões de vozes portuguesas. A conversa entre os actores «amadores» que comentam a sua prestação é nesse aspecto paradigmática e notável. Mas em todo o filme não há um plano desleixado, todos eles são pensados, úteis mas idiossincráticos, cortam as pessoas pelas pernas se for preciso, ficam «demasiado» tempo a mostrar um animal esfolado se isso fizer sentido, fazem do fogo um «belo horrível» e da religião uma coreografia. Gomes capta sempre a materialidade manipulada de que se faz o cinema, e que desemboca no gag final sobre os sons que se ouvem no filme mas que não existem «na natureza». Em Aquele Querido Mês de Agosto, a «ficção» (quase uma réstia) não é verdadeiramente uma ficção, é um simples melodrama juvenil, muito eficaz precisamente porque muito «verdadeiro». Tão verdadeiro e acima do bem e do mal como a própria música pimba que Gomes escolheu. Uma música que enquadra sem ironias aquelas emoções cruas e «pouco sofisticadas». Que são afinal iguaizinhas às nossas.

27.8.08

A escolha e a necessidade

Nozick emendou a frase de Marx e ficou qualquer coisa como «de cada um de acordo com suas próprias escolhas, a cada um de acordo com as escolhas dos outros». É uma formulação menos simpática? É. E pessoalmente não me favorece nada. Mas creio que esboça um sistema ético muito mais adequado, porque tão impiedoso como o mundo em que vivemos.

Mais doce



LARRY: Do you enjoy sucking him off?

ANNA: Yes.

LARRY: You like his cock?

ANNA: I love it.

LARRY: You like him coming in your face?

ANNA: Yes.

LARRY: What does it taste like?

ANNA: It tastes like you, but sweeter.

LARRY: That’s the spirit. Thank you.

(Clive Owen e Julia Roberts, em Closer, 2004, de Mike Nichols, adaptação da peça homónima de Patrick Marber)

26.8.08

O burro, o elefante e o gallo

O «conservador radical» (e grande chanfrado) Vincent Gallo: My fantasy is not having the Republican Party become more like me; my fantasy is becoming more like the stereotype of the Republican Party. Impagável.

25.8.08

Ninguém senão os íntimos

Perguntaram à filósofa americana Martha Nussbaum numa entrevista: «What is the worst thing anyone's said to you?». Ela deu uma resposta magnífica: «Nothing any non-intimate would say would bother me; I wouldn't tell you if an intimate said anything hurtful».

O homem a seguir a George Clooney



Parece que esta senhora, a actriz e modelo Lisa Snowdon, está sem namorado há 1 ano. É que o último foi George Clooney, e agora todos os tipos que ela conhece têm medo de serem o homem a seguir a George Clooney. A competição é a doença infantil da masculinidade.

Caminha

Nada como uma frase bíblica em contexto profano. Por exemplo na curta-metragem Conserva Acabada (1990). Alexandra Lencastre está sentada num sofá, de vestido justo e curto, e João César Monteiro ordena-lhe, como Cristo a Lázaro: «Levanta-te e caminha».

Um taxista lisboeta sobre o dating game

«Eu quando às vezes recusava um cliente, depois já não apanhava mais nenhum nessa noite. Agora aceito sempre».

Um taxista lisboeta sobre ciência política

«Os ingleses gostam de vivendas, com garagens onde possam entrar e sair à sua vontade; são uns verdadeiros liberais».

Dress code

Eu também sou anglófilo. Também prefiro a Revolução Americana à Revolução Francesa. Também gosto de Burke, Tocqueville, Churchill, Oakeshott. Mas quando João Carlos Espada passa crónicas (e crónicas e crónicas e crónicas) com aquele novo-riquismo de «convertido», não há paciência. A sua obsessão com o «dress code» é de um ridículo atroz. Os convertidos têm esse mau hábito: escolhem sempre os aspectos mais caricaturais da sua nova religião.

A santidade do casamento

Concordei com o veto presidencial à lei do divórcio. E apanhei logo com o epíteto de «conservador». Tendo em conta que sou de facto um conservador, não percebi a «acusação». E achei o pretexto insólito, uma vez que eu nunca fui um entusiasta da instituição casamento. Os conservadores invocam a «santidade» do casamento. Eu disse que o casamento civil é apenas um contrato. Um contrato que deve ter regras minimamente sérias, as quais justificam a existência autónoma da figura. Isso implica seriedade também no momento do dissolução, incluindo a penalização do incumprimento culposo. Concordo em absoluto que se facilite o divórcio aos casais sem filhos menores de idade. O casamento não «serve» para a procriação; mas o Estado protege o casamento acima de tudo por causa da propagação da espécie e do sustento e educação dos filhos. Quando não há crianças, o Estado que esteja quietinho. Mas isso não significa que quem incumpriu o contrato se possa eximir às suas responsabilidades. Isso também já me parece «santidade» a mais.

24.8.08

A febre de sábado à noite

Domingo, 04h e 20 minutos. Enquanto ela dançava karaoke numa discoteca, eu lia deitado no sofá a conferência «O Socialismo», proferida por Max Weber em Viena no dia 13 de Junho de 1918. Cada um ginga a anca como pode e gosta.
Já depois da publicação da minha crónica de ontem, descobri que o álbum a que me refiro também teve edição portuguesa: Um Silêncio Interior - Os Retratos de Henri Cartier-Bresson (Dinalivro).

22.8.08



Beckett, lince geométrico na esquina de uma estante. Marilyn com os olhos já envelhecidos segurando um copo contra o decote. Um Capote jovenzinho e insinuante num jardim tropical. Duchamp atrás de uma roda inútil de bicicleta. Piaf, a trágica sonâmbula. A beleza estranha e vertical de Giacometti. Camus de sobretudo e beata. Pound, majestoso leão exausto. Balthus acariciando um gato desconfiado. O aristocrata Faulkner a um canto da imagem, com dois cães pelas costas. Colette com roupa e maquilhagem a mais. O severo Braque. O modesto Bonnard. Matisse de roupão fazendo esboços no meio de pássaros saídos das gaiolas. Sartre de cachimbo com uma cidade nebulosa em fundo. A cabeça descomunal de Neruda. Genet de mangas arregaçadas e aspecto de rufia. Breton captado com evidente temor reverencial. Há poucos legados artísticos tão impressionantes como os retratos de Henri-Cartier Bresson, fotógrafo que Gombrich comparou a Vermeer e Velásquez. Em vez de romances inúteis, invistam por exemplo em An Inner Silence: The Portraits of Henri Cartier-Bresson (Thames & Hudson, 2006). É uma espécie de Louvre portátil.

Henri Cartier-Bresson nasceu na região de Paris a 22 de Agosto de 1908, fez agora um século, e morreu quase centenário em 2004. (...)

[no Público de amanhã]

The Real Thing



Cheguei finalmente à peça «emotiva» e «autobiográfica» de Tom Stoppard, The Real Thing (1982). Fiquei decepcionado. Esperava um nadinha que fosse de sangue, suor e lágrimas. Falso alarme. The Real Thing é uma (excelente) comédia de boulevard com adultério e tudo, recheada de aforismos espertíssimos e jogos intertextuais meta-teatrais, mas não tem coragem para ir mais longe. Stoppard quis contrariar a imagem do «clever Tom», o malabarista das ideias incapaz de escrever sobre emoções. Mas o que a peça tem de engenhoso são precisamente as ideias. O que é afinal «the real thing»: é o casamento ou os casos passageiros? é a relação actual ou a última? é a escrita cerebral ou a militante? é a música erudita ou os Monkees? é a escrita ou a vida? Esse debate é muitíssimo bem explicitado , mas é ainda um jogo intelectual. Quando o propósito de Stoppard era escrever sobre «a dificuldade de escrever sobre o amor». Talvez ele prove essa dificuldade tendo ele mesmo dificuldade. O protagonista, um dramaturgo culto e genial, fica sem palavras quando é traído. E isso, sendo uma ideia lúcida e lucidamente autocrítica, não chega. Para escrever sobre o amor é precisamente ser prodigiosamente feliz como Marivaux ou repulsivamente infeliz como Strindberg. O meio caminho não é uma opção.

21.8.08



Fine Young Cannibals, «I’m Not the Man I Used to Be», álbum The Raw and the Cooked (1988)

O trio de Birmingham sempre foi inócuo e a voz de Roland Gift implica com os nervos de qualquer um. Como é então possível que uma das «canções da minha vida» seja dos FYC? Reconheço que a bateria é memorável. Mas não é só isso, claro que não é só isso. A biografia tem razões que a estética desconhece. Ouvi «I'm Not the Man I Used to Be» pela primeira vez num momento de bonança daqueles que precedem uma enorme tempestade. É impossível sermos os mesmos depois de um naufrágio, e eu não sabia isso ainda (foi há quase meia vida). Houve outras tempestades colossais depois disso, outros tantos momentos em que reencontrei a canção no meu compacto todo riscado. Há 2 anos, estava precisado e comprei uma nova edição do disco. E ouvi vezes sem conta esse amigo antigo que diz sempre a mesmo coisa mas que de cada vez tem razão. I'm not the man I used to be, diz ele e digo eu.

20.8.08

Alguém que perca tempo comigo

Quando ela diz «preciso de pessoas que me façam mudar de opinião» isso é uma confissão ou um desafio? Se ela tivesse dito «gosto de pessoas que me façam mudar de opinião», era apenas um provocação, como quem diz «impress me» e tem consciência originalidade daquele repto («mudar de opinião» não é um geral uma coisa de que se «goste»). Mas «preciso» é uma confissão. Uma confissão en passant, digamos assim. Quem «precisa» admite uma fragilidade, e quem precisa de «mudar de opinião» revela uma carapaça (a «opinião», precisamente») que pode ser quebrada se alguém «fizer» alguma coisa por isso. Daí que «preciso de pessoas que me façam mudar de opinião» seja uma frase que denota ausência de romantismo e resistência ao cinismo. Sou inexpugnável, mas na verdade não sou. Digo aquilo de que «preciso» e quero que alguém se esforce para me mudar. Quero alguém que me leve a sério, que perca tempo comigo, que se dê ao trabalho. Quero «pessoas», gente concreta que faz coisas, e não «opiniões», que são empecilhos tolos.

Manny Farber 1917-2008



Culto, excitante, inventivo, imprevisível, provocatório, temperamental, brilhante: Manny Farber foi um dos grandes críticos de cinema da história. Na minha estante está ao lado de Edmund Wilson (literatura), Clement Greenberg (artes plásticas) Kenneth Tynan (teatro) e Lester Bangs (rock), críticos que eram criadores. Farber estave sempre longe da crítica tarefeira dos jornais e da crítica entediante da academia. Cultivou uma prosa digressiva, associativa, paradoxal, muito atenta aos aspectos pictóricos e de composição e com uma extraordinária veemência visual. Jonathan Rosenbaum, num substancial ensaio biográfico, fez há anos um elenco parcial mas vívido do cânone de Manny, dos gostos mais sofisticados ao fascínio pela série B: « (...) the heroes of Werner Herzog, the loft in "Wavelenght", "Lee Marvin’s Planter’s Peanut Head", working-class domestic interiors, Barbara Stanwyck, Wellman, Godard, Fassbinder, "Stan and Ollie" (...), Rohmer’s "Knee" (...), Agee, Bresson’s "Mouchette", Peckinpah, John Wayne in "The Man Who Shot Liberty Valance", William Demarest, James Stewart in Anthony Mann westerns, Wile E. Coyote, Jane Greer, Mexico». Como se percebe, era um crítico original. E genial. Felizmente, teremos sempre Negative Space (1971, reed. aumentada 1998) na estante em que estão os clássicos.

Medeia



Fomos ver a Medeia. Que ideia, um date com Eurípides. Houve nisso uma componente de acaso e outra talvez de estudo. É verdade que a peça parecia demasiado brutal e demasiado distante das nossas inquietudes. Mas de algum modo fazia sentido, e percebi porquê muito depois. Medeia é uma mulher que preza a justiça mas não a piedade. E a tragédia em Medeia consiste no equívoco daqueles que julgam que acabam uma relação amorosa impunemente. Daí às mais abomináveis violências é um pequeno passo.

Dos contratos em especial

Na verdade, é no mínimo singular que um cônjuge que viole sistematicamente os deveres conjugais previstos na lei possa de forma unilateral e sem mais obter o divórcio e, sobretudo, possa retirar daí vantagens aos mais diversos níveis, incluindo patrimonial.

(da mensagem do Presidente da República à Assembleia, justificando o veto à Lei do Divórci0)

É justo que a lei trate o casamento apenas como um contrato e que não faça considerações morais. Mas se o casamento é um contrato como outros (embora com efeitos pessoais), então o divórcio não pode estar imune às noções jurídicas de incumprimento e culpa, que existem nos contratos em geral. Ignorar esse facto é fazer entrar a tal moralidade pela porta do cavalo.

19.8.08

Olimpíadas 2008

Nunca fui especialmente possuído do mítico «espírito olímpico», muito menos em território da popular república da China. Mas por razões alheias às do Barão de Coubertin, lá espreito de vez em quando os Jogos, seguindo com especial atenção as modalidades de pólo aquático (Rita Drávucz), salto com vara (Allison Stokke) e natação (Amanda Beard). Citius, altius, fortius.

Lucian Freud

He's wonderful company and the only way to see Lucian unless you're a beautiful young girl is to be painted by him.

(Francis Wyndham, amigo e modelo de Lucian Freud)

Pablo Picasso

Almoço com frequência num estabelecimento chamado Picasso que, como dizer?, nunca será agraciado com estrelas Michelin. Enquanto não vem o distinto «bitoque», trauteio a canção de Jonathan Richman que tem a imortal rima: «Pablo Picasso / was never called an asshole».

Graham Greene

A frase eurocêntrica do mês, num texto da Economist sobre o novo presidente do Paraguai: Apart from featuring in a couple of novels by Graham Greene, Paraguay has rarely attracted the attention of outsiders.

A morte num moinho

Quando Isaac Hayes morreu, o Diário de Notícias escreveu que o cantor tinha sido encontrado inanimado «junto a um moinho». O que é que andava o pai da soul tesuda a fazer num vetusto engenho? Carregava sacos de farinha? Dava de beber aos jericos? Nada disso: é que ele morreu numa «treadmill» (passadeira), que é um máquina de exercício, e não num «mill» (moinho), que é um maquinismo para moer o grão. Parecendo que não, faz diferença.

18.8.08

Dean Acheson

Quando alguém me pergunta «você é fulano de tal?» penso logo em Dean Acheson. Secretário de Estado do presidente Truman (1949–1953), Acheson era detestado pelos sectores mais musculados da opinião pública, que o achavam pouco expedito na luta anticomunista. Uma vez, em Washington, Acheson entrou num táxi e o taxista perguntou: «O senhor é o Dean Acheson, não é?». E ele, mal habituado, respondeu: «Sou. Quer que saia?».


Alexander Soljenitsine 1918-2008

Koestler e outros já tinham estilhaçado o silêncio cúmplice do Ocidente, mas nada se compara com O Arquipélago do Gulag (1974). Soljenitsine iniciou a sua denúncia do universo concentracionário em 1962, com Um Dia na Vida de Ivan Denisovich [que nunca li], e com os romances seguintes chegou ao Nobel em 1970. Ficou mundialmente célebre. Sartre atacou-o porque, já se sabe, «um anticomunista é um cão». O Arquipélago, vasta descrição da barbárie soviética, é o cume do seu trabalho de testemunha qualificada. Incrivelmente corajoso e determinado, Soljenitsine viveu a fundo a tragédia comunista e passou o que viveu para o papel, em grossos tomos de prosa torrencial. Literiamente prefiro sem dúvida a família tchekhoviana às odisseias tributárias de Tolstoi; politicamente, gosto mais de dissidentes cosmopolitas como Havel do que de reaccionários eslavos; mas isso agora importa pouco. Soljenitsine foi um resistente que se exprimiu através da literatura, e é o elogio político que se impõe na sua morte. Depois de Soljenitsine, tudo mudou. A defesa do comunismo tornou-se em definitivo um ensaio sobre a cegueira.

O meu Agosto 2008

O MELHOR



- Anton Tchekhov/Nuno Cardoso (um Platónov patético, no sentido elevado da palavra, e que merecia um público mais subtil)

- George Orwell (cujos diários estão agora online como se fossem um blogue, para grande chateação de todos os que garantem serem blogues e diários géneros irrelevantes)

- Tom Stoppard (continuo a ler o teatro completo do mais britânico dos checos e mestre incontestável da comédia intelectual)

- Lindsay Lohan (poster-girl do lesbianismo estético)

- Elodie (como sempre irrepreensivelmente elegante e ladina)

- The Black Angels (psicadelismo escuro para ouvir em situações escuras tais como consumir drogas, foder ou andar de carro à noite; eu ouvi o disco, adivinharam, a andar de carro à noite)

- Franz Ferdinand (apenas um bocadinho, e via telemóvel, mas thanks a bunch)

- Pablo Aimar (o meu reino por um número 10)

O PIOR



- a mentalidade do «escândalo sexual» que agora apanhou John Edwards (escândalo seria ele engravidar alguém e recusar assumir a paternidade, mas é a própria mãe da criança quem não aceita testes de ADN)

- Berlusconi, o Casto, que tapou um mamilo duma pintura de Tiepolo («questo assurdo, folle, patetico, comico, inutile ritocchino», segundo Vittorio Sgarbi)

- os protestos contra o mamilo da divinal Eva Mendes (sendo que Eva Mendes já mais que ganhou o seu lugar no «melhor» de 2008)

- as revistas «sociais», que inundavam as esplanadas à minha volta (e o miserável jet-6 português)

- as novelas portuguesas (que papei durante uma semana, num death wish explicável pela avaria do meu DVD portátil)

- os «especialistas» em assuntos de polícia (lançando gasolina ao fogo)

- os colunistas políticos, que dizem sempre exactamente aquilo que estamos à espera que digam (no caso do assalto ao banco, só João Miranda surpreendeu, os outros cumpriram o seu guião ideológico)

- o Expresso, que teve este lapso horrendo: « (…) o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Januário Torgal Ferreira (…)» (pensei logo em ir oferecer-me ao xeque Munir)
«Até Setembro» é uma força de expressão.

1.8.08

É por isso que tenho a dizer



Are you a one-guy woman?

Of course! I'm a Catholic.

Look, I'm Catholic, too, but there's a lot of things about the church that make it hard to date within its rules, don't you think?

Like what?

Birth control, premarital sex…

Well, you know, sex is just for after marriage.

Say what?

Sex is for after marriage.

Are you saying you're not going to have sex before marriage?

Exactly.

You mean you've never had sex?

That's why I have to say.

You sure about this?

Yes.

*

Excerto de uma entrevista à supermodelo Adriana Lima na GQ americana. Se eu fosse um Barthes straight escrevia já aqui um detalhado ensaio estruturalista sobre a resposta «that's why I have to say», toda ela entre o inglês duvidoso e o inglês defensivo. Mas eu sou um moço intelectualmente limitado e ademais estamos em Agosto, pelo que vos deixo a frase de Adriana como motivo de meditação em terras de Espanha e areias de Portugal.

Até Setembro.