21.11.06

Nocturnos

Tom Waits é um génio. Um génio musical, naturalmente, mas que deve muito à sua teatralidade e a alguns elementos literários.

Musicalmente, Waits é um sorvedouro de influências, sobretudo dos discos que ouviu em criança (nasceu em 1949 e diz que «dormiu através dos anos 60»). Ele toca jazz, blues, baladas, rumbas, música de cabaré, folk, lounge, ópera, rock, gospel e tudo o que meta pianos, harmónios ou trombones. Ele é Cole Porter, Randy Newman, Kurt Weil, Ray Charles e Bob Dylan e mais ainda. E depois tem aquela voz cavernosa, cheia de álcool e nicotina, que (como alguém escreveu) parece que grava discos com microfones cada vez mais manhosos.

A «persona» Tom Waits é inseparável disto. Ele é realmente um grande personagem: de ascendência escocesa e irlandesa, Tom nasceu em subúrbios, filho de pais divorciados, foi boémio, andou com literatos maltrapilhos e com Frank Zappa, viveu no Tropicana Motel em West Hollywood, namorou com Rickie Lee Jones, fez filmes com Coppola e Jarmusch, está casado há vinte e tal anos com Kathleen Brennan, tem três filhos. Nalguns álbuns, como Nighthawks at the Diner (1975), e em quase todas as entrevistas, conta histórias, anedotas, desconversa, inventa a sua biografia, protege a sua intimidade, é desconcertante, usa barbicha e chapéu como se fosse (e é) doutro tempo.

E depois, há as letras de Waits. São muitas vezes pequenas narrativas, episódios tragicómicos com bêbedos, vagabundos, prostitutas, gangsters, gente do circo, empregadas de mesa. Coisas de bares em hora de fecho, de luas e sarjetas, de postais e comboios. É a «small town America« (mesmo quando tudo acontece no meio de «big towns»), cheia de desconhecidos, marginais, românticos fracassados. Um mundo que tem referências visuais reconheciveis (algum Hopper, muito Robert Frank) mas sobretudo literárias. Waits insiste que só lê «menus e revistas», mas os seus textos prosseguem uma tradição dos cronistas melancólicos ou ácidos do sonho americano quando este se torna pesadelo ou sono agitado: Steinbeck, Runyon, Kerouac, Carver, Bukowski. Ele não os imita, mas partilha bocados destes universos, mesmo que os tenha lido apenas em revistas e menus.

Os seus primeiros discos (estreou-se em 1973) são mais confessionais, característica que foi sendo menos óbvia com o decurso do tempo, mudança que ele atribui à sua experiência como actor, que o fez imaginar melhor coisas que não conhece. Mas em quase todos os casos, as canções de Waits provêm da sua memória e da sua experiência. Sobre a memória, disse uma vez que funcionava como um loja de penhores, um aquário e uma despensa. Sobre a experiência, conta que ele é uma espécie de detective que observa as pessoas e as usa como metáforas para outra coisa. Waits nunca é verdadeiramente feroz, apenas irónico ou sarcástico; mesmo as suas evocações de «cerveja morna e mulheres frias» transpiram compaixão e dignidade humana.

Há letras inesquecíveis no catálogo Waits, como «Soldier’s Things», um inventário que tem a força de um poema épico. E há momentos como «Time» (do álbum Rain Dogs, 1985): «O dinheiro fino está em Harlow / E uma lua corre pela rua / Os putos da sombra quebram todas as leis / Bem para lá de East St. Louis / Enquanto o vento faz discursos / E a chuva tomba como uma salva de palmas / Napoleão chora no parque de divertimentos / A sua noiva invisível está no espelho / A banda regressa a casa / Enquanto a chuva cai a cântaros / E a verdade é que já não há nada aqui para ele». E o refrão diz que é o tempo, o tempo, o tempo, o tempo que tu adoras, e depois ainda há orfãos fingidos, ligaduras, orações, garotas de calendário, navalhas. E o poema acaba: «Põe então uma vela na janela / E um beijo sobre os lábios / Até que o prato na varanda transborde de chuva / Como a semente que um estranho te lançou no coração / E não te esqueças de pagar ao tipo do violino / Até ao dia em que eu regressar».

A tradução é de João Lisboa, numa antologia bilingue editada pela Assírio & Alvim em 1989 e que se chama, muito apropriadamente, Nocturnos.


(Texto publicado no último número do suplemento 6a do Diário de Notícias)