29.11.06

O caso Richards

Cito o Público de anteontem: Sexta-feira à noite, 17 de Novembro, Los Angeles. Michael Richards estava a desenrolar o seu número de stand-up comedy no clube de comédia Laugh Factory. Um grupo terá começado a gritar para o palco, dizendo que o comediante não estava a ter piada. No vídeo que circula na Internet não são visíveis as provocações, mas apenas a reacção do cómico, que lhes dá resposta com a frase "Calem-se! Há 50 anos punhamo-vos de cabeça para baixo com uma merda de uma forquilha pelo rabo acima!", aludindo aos tempos da escravatura negra e aos linchamentos. "Ponham-no na rua, ele é um preto (nigger). Ele é um preto! Ele é um preto!", continuou. Há alguns risos entre a plateia, mas também um espectador sonoramente incomodado. Richards reage também ao "ooh" indignado: "Muito bem, vêem, isto choca-vos". Quando o visado pelos primeiros insultos diz que as palavras com carga racial eram desnecessárias, Richards responde-lhe, irritado, que "o que é desnecessário é interromperem-me!" O dono do clube baniu Richards do palco até que ele se desculpasse publicamente. Mas só depois do vídeo, captado por um telemóvel e reproduzido pela TMZ.com, ter sido exibido por muitos programas de televisão e sítios na Internet entre domingo e segunda-feira.


Eis o vídeo:



Como explicar isto? Michael Richards (o «Kramer» de Seinfeld), no seu pedido de desculpas televisivo, disse que não sabia de onde vinha toda aquela hostilidade. O mesmo tinha dito Mel Gibson, quando se soube que tinha proferido insultos anti-semitas (embora no caso de Gibson isso tenha antecedentes conhecidos).

Mas, de facto, de onde vem aquela hostilidade? Temos todos atitudes agressivas de vez em quando, mas como vem ao de cima esta demência racista (especialmente tresloucada, no caso de Richards), em pessoas que não conhecíamos (e que talvez não se conhecessem a elas mesmas) como racistas? Não sei se o racismo é um «instinto» ou apenas uma «ideologia». A verdade é que ele existe mesmo em pessoas que racionalmente não são nada disso. Há um exemplo famoso: Elvis Costello, cujo currículo progressista é inquestionável, teve uma cena parecida com um grupo de negros, depois de um espectáculo, e também disse que não soube de onde é que aquilo vinha (alegou que estava bêbedo).

Todos (ou quase) todos nós dizemos que não somos racistas, mas em situações de tensão tenho ouvido explosões virulentas a pessoas supostamente insuspeitas. E isso é mais assustador que o racismo dos tarados ou criminosos nazis. Isso significa que uma pessoa pode ter dentro de si aquelas sombras (ou outras) sem ter consciência disso. O vídeo de Michael Richards é bastante impressionante, mesmo tendo em conta a sua natural exuberância, que já conhecíamos. Todos temos coisas em nós que reprimimos, muitas vezes porque as condenamos, outras vezes porque a sociedade as condena. Mas basta um acesso de cólera para a agressividade tomar estas e outras formas (que neste caso é capaz de ficar como um mancha inapagável na imagem do comediante).

Sabemos muito pouco sobre nós mesmos. Essa é a triste condição da nossa espécie.