25.11.06

O outro Nick

Quando começei a ouvir Nick Cave, nos final dos anos 80, não sabia se gostava daquilo. Não apreciava especialmente o punk «artístico» underground. Mas reconhecia nele algumas afinidades obscuras com Leonard Cohen (eu ainda não conhecia Scott Walker) e uma atracção pelos blues mais terríveis (aqueles com violência e obsessão sexual) que me interessavam. E nessas letras negras (com acompanhamentos ainda mais negros) também comecei a detectar ideias e imagens que eu compartilhava desde sempre (o pecado, a morte, a vingança, o cativeiro). Imagens bíblicas, sem dúvida nenhuma. Uns anos mais tarde descobri um texto de Cave em que ele explica essa influência: «The Flesh Made Word», que ele leu aos microfones da BBC3, em 1996.

Nick conta que teve uma educação literária (o pai tinha ambições de ficcionista e uma boa biblioteca) e religiosa (foi literalmente um menino de coro). Como acontece com os adolescentes, foi depois ficando mais distante da religião, e sobretudo distante daquele Deus oferecido pela religião organizada (um cristianismo como e com «jurisprudência», escreve). Quando estudava Artes, cultivou no entanto um fascínio pela iconografia religiosa (tinha imagens de Fra Angelico na parede e tudo), coisa que aborrecia os seus professores. E acabou por comprar uma Bíblia (a famosa King James Version). No texto, conta como reencontrou na Bíblia histórias que estavam no seu consciente e no seu subconsciente. Aquilo que o atraiu primeiro foi o Antigo Testamento: « (...) a prosa dura do Antigo Testamento, uma linguagem perfeita, ao mesmo tempo misteriosa e familiar, que não apenas reflectia o meu estado de espírito na altura mas que enformou as minhas intenções artísticas». Esse Deus cruel e brutal fazia muito sentido para o jovem revoltado e tumultuoso. Nick diz mesmo que Deus falava através dele. E acrescenta: «and his breath stank». Depois, no Novo Testamento, encontrou um outro Deus, desta vez de carne e osso («a palavra que se fez carne»), mas um Deus que se mostava igualmente implacável para com os escribas, os fariseus e os outros «inimigos da imaginação». É isso que Cave vê em Deus e na pessoa de Jesus: uma linguagem e uma imaginação, que são uma espécie de corrente espiritual que se produz na comunhão. Uma comunhão que, no seu caso, tomou a forma de música. É que o criador necessita que a criatura também exerça a sua imaginação: «Através de nós Deus encontra a Sua voz, porque, tal como nós precisamos de Deus, Ele também precisa de nós».