28.11.06

O sublime insubmisso

O surrealismo português chegou tarde, como quase todas as nossas importações intelectuais. Surgiu nos anos 40, num meio literário grandemente dominado pelos neo-realistas. Mário Cesariny, nos seus poemas e polémicas, combateu esse «realismo» estreito e dogmático, ao mesmo tempo que reabilitava o «real quotidiano» (que não confundiu nunca com a trivialidade). Foi o nosso único grande surrealista (não creio que Alexandre O’Neill fosse genuinamente surrealista, embora também fosse um poeta notável).

Cesariny levou muito a sério aquela ideia de Breton (que retomava Rimbaud) segundo a qual era preciso não apenas mudar a sociedade mas também mudar a vida. Uma noção altamente romântica da poesia, como que compensada pela vertente mais satírica. Os poemas de Cesariny são umas vezes sublimes e outras vezes divertidíssimos (e algumas vezes as duas coisas em simultâneo). Foi um dos poetas que levou Pessoa mais a sério e menos a sério, e com ele estabeleceu um espantoso (e sarcástico) diálogo textual.

No campo estritamente surrealista, Cesariny usou técnicas como o inventário e a associação livre, e recuou mesmo atrás, ao letrismo, com jogos silábicos e outras desconstruções. Além disso, nunca esqueceu a revisitação do cânone nacional, dos cancioneiros a Pascoaes, com pastiches, homenagens ou paródias. A componente «realista» seguia bastante Cesário, com alguns inesquecíveis poemas lisboetas.

Mas Mário Cesariny foi sobretudo um insubmisso. Combateu a ditadura intelectual das esquerdas e a ditadura política das direitas, usando a subtileza ou a farsa mais desabrida. Como bom surrealista, tinha grande talento para o panfleto, e o volume As Mãos na Água a Cabeça no Mar (2ª edição, 1985) recolhe textos importantes. A insubmissão de Cesariny era também comportamental: homossexual e libertário, viveu literalmente policiado por causa dos seus costumes, e no meio disso escreveu algumas das mais notável poesia homoerótica portuguesa (os Poemas de Londres são disso testemunho). Tinha também a teatralidade mediática dos surrealistas, dos lançamentos de livros transformados em bailes às declarações inconvenientes.

Ele acreditava numa poesia da transfiguração, ligada às coisas mais concretas e mais viscerais, mas quase espiritualizada numa alquimia do verbo, na articulação do verso, na sintaxe e no vocabulário insólitos. Nas últimas décadas, abandonou a poesia pela pintura, e infelizmente não existe nenhuma edição dos poemas completos, mas apenas sucessivas reedições modificadas de livros ou secções de livros. Os poemas reunidos e definitivos de Mário Cesariny ficarão como um dos dez ou doze momentos excepcionais de um século excepcional na poesia portuguesa.


(texto publicado ontem no Diário de Notícias)