Sobre a infelicidade
Há um óptimo conto tardio de Tchékhov, «Groselhas» (1898), que é considerado por alguns o seu melhor (o que me parece exagerado) e por outros um texto algo moralista (o que não tem nenhum fundamento). Em «Groselhas», Ivan, um homem de meia-idade, conta a dois amigos a história do seu irmão, Nikolay, que encontrou a felicidade como proprietário agrícola. Ivan não compreende essa opção do irmão citadino pelo exílio campestre; mas sobretudo duvida dessa noção de «felicidade». Mais: sente-se sufocado pela ostensiva felicidade das pessoas num mundo onde prevalece «a insolência e indigência dos fortes» e «a ignorância e a bestialidade dos fracos». Num mundo cheio de miséria física e moral, a mesma que depois lemos calmamente nas estatísticas (tantos mortos, tantos loucos, tantos esfomeados). E no entanto, diz Ivan, toda a gente parece hipnotizada: «Vemos pessoas que se abastecem no mercado, que comem de dia, que dormem à noite, que dizem os seus inúteis disparates, que se casam, que envelhecem, que acompanham serenamente os seus mortos ao cemitério; mas não vemos nem ouvimos os que sofrem, e aquilo que é terrível na vida decorre atrás das cortinas». Ivan percebe que sem esse pacto de silêncio ninguém conseguia ser feliz. Mas também desejava que houvesse, à porta das pessoas felizes, um homem com um martelo, um homem que fosse martelando e recordando aos felizes a infelicidade que existe no mundo. Uma infelicidade que, quando nos toca, abafamos. E que, quando a vemos nos outros, ignoramos. Uma infelicidade que, mais tarde ou mais cedo, vem bater com o seu martelo à nossa porta.