Londres (5)
Espantosa e elucidativa, a possibilidade de ver no mesmo dia e quase lado a lado duas exposições de retratos: Diego Velázquez (1599-1660) na National Gallery e David Hockney (1937) na National Portrait Gallery. Nos quatrocentos anos de diferença, vemos que quase tudo mudou, excepto uma estranha distância entre retratista e retratados.
Velázquez, nesta exposição cheia de gente, é mostrado essencialmente como pintor da corte, muito solene e hierático, de um classicismo perfeito e insuperável, mas com a audácia de fazer passar mensagens às vezes não muito oficiais (o desprezo em Góngora, o apocalipse em Felipe IV). É um pintor que capta o catolicismo severo, as poses cheias de gravitas e desastre iminente, um mestre que se revela em cada traço de um brinquedo de uma criança ou nas franjas de um vestido. São umas dezenas de quadros austeros, com aristocratas e freiras e generais, ao mesmo tempo cheios de vida e cheios de morte, mesmo nas cenas devotas (inquietantes) ou nas cenas mitológicas, vivíssimas nas suas metáforas. Acho que é dos clássicos mais inatacáveis que já vi ao vivo, um dos que não envelheceu porque não envelhece nem a técnica nem a verdade humana que vemos nos quadros. Como diz uma nota no guia da exposição, se Velázquez tivesse vivido mais anos, não se imagina como poderia aperfeiçoar o seu estilo. Ou, acrescento eu, a sua visão dos homens.
Hockney nasceu noutro mundo, um mundo hedonista e colorido, e os seus quadros e desenhos exibidos na National Portrait Gallery (o mais antigo é um auto-retrato aos 17 anos, os mais recentes são de 2005) são como que a estética pop feita retrato. Teimosamente representativo, Hockney retratou os pais, os amantes, os amigos, as celebridades, os visitantes do seu estúdio, e em vários momentos sentimos uma celebração da vida que é também uma paradoxal forma de distância. Com efeito, e salvo duas ou três excepções (os retratos do seu companheiro, Peter Schlesinger, uma série mais exaltada sobre o circuito gay americano ou o azulíssimo «Mum»), Hockney mantém um distanciamento quase «inglês» face aos seus modelos. Não apenas se percebem relações tensas entre os retratados (Henry Geldzahler e um homem de gabardina, num quadro de 1969, ou o famoso casal de Mr. and Mrs. Clark and Percy,1970-71), como a persistente noção de «colecção» revela um Hockney algo vampiresco, magnificamente lúcido e ambíguo, mas sem alegria, mesmo num universo cheio de corpos e cumplicidades.
Talvez as coisas não tenham mudado assim tanto em quatrocentos anos, mesmo que o mundo tenha mudado tanto.
Velázquez, nesta exposição cheia de gente, é mostrado essencialmente como pintor da corte, muito solene e hierático, de um classicismo perfeito e insuperável, mas com a audácia de fazer passar mensagens às vezes não muito oficiais (o desprezo em Góngora, o apocalipse em Felipe IV). É um pintor que capta o catolicismo severo, as poses cheias de gravitas e desastre iminente, um mestre que se revela em cada traço de um brinquedo de uma criança ou nas franjas de um vestido. São umas dezenas de quadros austeros, com aristocratas e freiras e generais, ao mesmo tempo cheios de vida e cheios de morte, mesmo nas cenas devotas (inquietantes) ou nas cenas mitológicas, vivíssimas nas suas metáforas. Acho que é dos clássicos mais inatacáveis que já vi ao vivo, um dos que não envelheceu porque não envelhece nem a técnica nem a verdade humana que vemos nos quadros. Como diz uma nota no guia da exposição, se Velázquez tivesse vivido mais anos, não se imagina como poderia aperfeiçoar o seu estilo. Ou, acrescento eu, a sua visão dos homens.
Hockney nasceu noutro mundo, um mundo hedonista e colorido, e os seus quadros e desenhos exibidos na National Portrait Gallery (o mais antigo é um auto-retrato aos 17 anos, os mais recentes são de 2005) são como que a estética pop feita retrato. Teimosamente representativo, Hockney retratou os pais, os amantes, os amigos, as celebridades, os visitantes do seu estúdio, e em vários momentos sentimos uma celebração da vida que é também uma paradoxal forma de distância. Com efeito, e salvo duas ou três excepções (os retratos do seu companheiro, Peter Schlesinger, uma série mais exaltada sobre o circuito gay americano ou o azulíssimo «Mum»), Hockney mantém um distanciamento quase «inglês» face aos seus modelos. Não apenas se percebem relações tensas entre os retratados (Henry Geldzahler e um homem de gabardina, num quadro de 1969, ou o famoso casal de Mr. and Mrs. Clark and Percy,1970-71), como a persistente noção de «colecção» revela um Hockney algo vampiresco, magnificamente lúcido e ambíguo, mas sem alegria, mesmo num universo cheio de corpos e cumplicidades.
Talvez as coisas não tenham mudado assim tanto em quatrocentos anos, mesmo que o mundo tenha mudado tanto.