23.1.07

O apocalipse

Quem diria que alguém tão insuspeito experimentaria alguma vez sensações extremadas, radicais? Uma espécie de intoxicação cerebral, uma névoa mental, a progressiva destruição de tudo, como uma folha encarquilhada no meio de uma lareira. Nunca nada tinha sido tão concentrado, todas as engrenagens funcionando, produzindo efeitos para os quais há poucas palavras e nenhumas certezas. Sabemos como funcionam as drogas, mas não é menos abissal a capacidade que o cérebro tem de fazer sozinho todos os elementos de uma necessidade, de uma adicção, de uma falta, de uma degradação, de um colapso. Os ditos de circunstância sobre sermos todos «um abismo» não são clichés, são num repente o terreno que se pisa, ou que não se pisa, que se desfaz, que resvala, toda uma série de cordilheiras e quedas, de espaços sem fundo e de uma atmosfera que não nos agarra, que nos deixa, inclemente como a natureza. Quem diria que o apocalipse é um espectáculo privado, um filtro de luz dentro da cabeça, sem marcas exteriores, sem ruídos, apenas o mundo a confirmar que não será mundo por muito mais tempo.