14.2.07

Prisão domiciliária

Desde o início da adolescência que nunca passei tanto tempo em casa. Há três ou quatro ou cinco anos, nunca estava em casa, ia a casa dormir ou trabalhar no computador e pouco mais. Agora, estou sempre em casa. Trabalho, descanso, como, faço tudo em casa. Estou murado, barricado, isolado, como quem tem uma doença contagiosa. A minha vida antiga está-me interdita, estudo mapas da cidade para encontrar saídas e desvios quando saio de casa, corro de um lado para o outro, estou na rua como quem é procurado pela polícia. Em casa, posso fazer o que quiser, mas não acontece nada. Não me acontece nada. É uma prisão domiciliária e um hospital de campanha, um asilo de lunáticos e um mosteiro de contemplativos. Conheço agora intimamente as lâmpadas, os lambris, as torneiras, as franjas do tapete, a perna da mesa, uma pequena falha numa parede, o toalheiro, a esquina lascada do frigorífico, o barulho das molas, a chuva na varanda, a persiana que deixa escapar alguma luz, o crocitar do esquentador, o armário dos cobertores, a caixa das bolachas, a mesa de cabeceira, o cheiro das almofadas, o pó na televisão, os discos arrumados na letra errada, os cadernos pretos e os castanhos, o cortinado do chuveiro, as colheres de sopa e as colheres de sobremesa. Conheço isto como nunca conheci, como se antes fossem coisas que sabia vagamente e agora fossem coisas que fixo minuciosamente. Estou em prisão domiciliária, com medos, com dúvidas, com achaques, estou em prisão pelos crimes que cometi e pelo crime que vou cometer, uma prisão antecipada, uma prisão amena, uma prisão insuportável, a prisão a que estou condenado pelo delito de ter falhado. E sei, no meio dos tristes objectos carcerários, que esta sentença é final. Desta sentença, ó meus amigos, não há recurso.