26.8.07

Sete rosas mais tarde (1)

Eduardo Prado Coelho foi o último crítico. O último com influência e prestígio, o último que desencadeava verdadeiros amores e ódios, o último conhecido mesmo por quem não lia os seus textos. Filho de um dos grandes ensaístas portugueses, escrevia na imprensa desde finais dos anos 60, desde os tempos da faculdade, em jornais cultos e combativos como o Diário de Lisboa.

Na última década e meia escreveu no Público, o cume da sua visibilidade como comentador de todas as realidades. Censuram-lhe muitas vezes essa voracidade do “nada que é humano me é estranho”; mas provavelmente era acima de tudo essa capacidade de risco (e de ridículo) que fazia dele um intelectual, ou seja, uma pessoa com uma imensa curiosidade pelo mundo.

Começou com textos de escrita complexa e áspera, recolhidos nos livros editados em início dos anos 70 (O Reino Flutuante e A Palavra sobre a Palavra), ainda com polémicas sobre cânones e correntes, as questiúnculas dentro do neo-realismo e o avanço do estruturalismo. A sua dupla condição de académico e de crítico impediu a habitual suspeição com que a universidade vê os textos jornalísticos. Em 1983, com Os Universos da Crítica, Prado Coelho deixou a sua única grande monografia, uma vez que se especializou em colectâneas de artigos.

Nos anos 80, encontrou o equilíbrio exacto entre densidade e acessibilidade, e foi aí que se revelou um ensaísta notável, nomeadamente em duas recolhas editadas pela Imprensa Nacional: A Mecânica dos Fluidos (1984) e A Noite do Mundo (1988). São textos sobre “literatura, cinema, teoria”, três das suas preocupações mais consequentes. Escreveu sobre “Blade Runner” e Amiel, sobre Rohmer e Ruy Belo, sobre Bruno Schulz e Blanchot. No livro de 84, apareceu um dos primeiros textos de fundo sobre o “pós-modernismo”, expressão que existia desde 1979 e que mais tarde ia cair na linguagem corrente. O mérito objectivo de Prado Coelho foi também esse: acompanhou e divulgou os grandes debates intelectuais das últimas décadas. Se havia uma sensação de excesso bibliográfico, de obsessão pela novidade, de resumos de badanas, também encontrávamos um genuíno entusiasmo pela discussão das ideias, um entusiasmo que manteve até ao fim, em livros como O Fio da Modernidade e Situações de Infinito (ambos de 2004). Ouvimos quase todos pela primeira vez o nome de autores importantes nos textos de Prado Coelho. E não apenas os estrangeiros: os leitores dos jornais descobriam igualmente autores nacionais brilhantes e complexos como Fernando Gil ou Miguel Tamen.

Prado Coelho escreveu duas dezenas de ensaios importantes sobre literatura portuguesa, essenciais em qualquer bibliografia secundária, como “Sophia, a lírica e a lógica”. E apadrinhou pessoas como Maria Gabriela Llansol, conseguindo transformar uma escritora hermética numa autora premiada. As colectâneas recentes como O Cálculo das Sombras (1997) e A Escala do Olhar (2003) mostram que continuou sempre um crítico bastante sistemático do panorama português, talvez o último, lendo demoradamente Herberto ou Gonçalo Tavares. Nunca escondeu o seu gosto por uma literatura “exigente”. Uma literatura que foi perdendo terreno na sociedade portuguesa e de que ele foi um dos últimos teóricos.

Conhecido essencialmente pelas suas polémicas (tinha o gosto jornalístico da polémica), Prado Coelho foi descobrindo cada vez mais o prazer da escrita, primeiro com os dois volumes dos diários (criticados por serem “excessivamente culturais”) e depois com a dificílima e oscilante prática da crónica diária, antologiada em Crónicas no Fio do Horizonte (2004). Descobriu o impacto que têm os temas “banais” e “mundanos”. Continuava com alguns traços do intelectual aguerrido, capaz de frases assassinas e sobranceiras, pontificações pontifícias e um sarcasmo escondido pela bonomia. Mas também começou a dar voz a pequenas irritações e pequenos prazeres, das repartições públicas aos pastéis de nata. Na literatura, foi-se aproximando mais da crónica (elogiosa) e afastando-se da crítica, atitude que decepcionou alguns seus leitores antigos. Sempre enfrentou imensa animosidade, sendo habitualmente retratado como um intelectual estrangeirado, vácuo, um carreirista político e um promotor dos seus amigos lisboetas. Mas ele, que dizia não ter “vida interior”, vibrava com a exterioridade dessa vida combativa e com o prazer da afirmação dos seus prazeres.

Nunca deixou de publicar: em 2004 editou livros de crítica literária, de crónica, de teoria, de textos sobre artes plásticas. Depois de um hiato por doença grave, regressou recentemente às crónicas diárias. E ainda anteontem apareceu na redacção do Público, anunciando o título da sua nova coluna literária, que não chegou a estrear. Tinha um título inspirado em Celan: Sete Rosas Mais Tarde.

(Público, 26 de Agosto)