12.8.07

Três elegias e um elogio



Morreram exactamente no mesmo dia, em 2007. E nesse fim de Julho morreu também «uma certa ideia de cinema». Ingmar Bergman, sueco de Uppsala, nascido em 1918. Michelangelo Antonioni, italiano de Ferrara, nascido em 1912.

Bergman é um dos meus cineastas de cabeceira. Antonioni suscita mais admiração intelectual que adesão emocional. Mas são ambos autores importantes ma minha memória cinéfila.

Bergman é o teatro. O miúdo que leu o Strindberg todo na adolescência (uma brutalidade inimaginável) fez todo o seu mundo no teatro: encenou peças, casou com actrizes, cultivou os seus actores fetiche, escreveu argumentos sobre meios teatrais. É um cineasta da palavra.

Antonioni é um cineasta da imagem. O que acima de tudo retemos dos seus filmes são avenidas largas, ilhas desertas, postes de electricidade, gruas. É um cinema visual, um cinema de arquitectura, que ao tempo (à palavra) sempre preferiu o espaço (a distância).

Bergman era um nórdico típico, nascido antes do aborrecimento social-democrata. Educado na austeridade e na desumanidade luteranas, sempre se interessou pela intimidade. Os seus temas são por excelência temas «sérios» (como julgo que já não se diz). O sexo (Um Verão de Amor, 1950; Mónica e o Desejo, 1954; Sorrisos de Uma Noite de Verão, 1955). A família e o casamento (Morangos Silvestres, 1957; Lágrimas e Suspiros, 1972; Cenas da Vida Conjugal, 1973; Sonata de Outono, 1978; Fanny e Alexandre, 1982). A morte (acima de todos O Sétimo Selo, 1957). E, naturalmente, a metafísica, na sua trilogia sobre o silêncio de Deus (Como Num Espelho, 1961; Luz de Inverno, 1961; O Silêncio, 1963), todos eles com um invulgaríssimo agnoticismo inquieto.

Antonioni era um italiano atípico e um intelectual típico. Foi o cronista da burguesia gélida e alienada. Dizem que inventou um cliché – a «incomunicabilidade» – mas é um dos clichés mais verdadeiros que conheço. É verdade que Antonioni não escapou aos modismos e a algumas derivas simbólicas. Mas a sua desolação ainda nos afecta: o desaprecimento em A Aventura (1960), o enfado literato em A Noite (1961) ou o final mudo de O Eclipse (1962). E ninguém para quem o cinema seja importante esquece as diversas figurações da ilusão em Blow Up (1966), especialmente a fictícia partida de ténis.

Bergman foi um autor da gravidade. O grande plano sobre o rosto humano atingiu a perfeição quase insustentável em Persona (1966). Antonioni preferia uma certa indicibilidade. O crítico do Corriere della Sera, Tullio Kezich, conta que em finais dos anos cinquenta o produtor Dino de Laurentiis quis trabalhar com Antonioni. Este apresentou a seguinte sinopse: um grupo de amigos vai para uma ilha e uma rapariga desaparece. Laurentiis perguntou: e o que é que lhe aconteceu? Antonioni: «A quem, à rapariga? Não sei». Talvez fosse essa a grande diferença: Bergman tinha dúvidas, Antonioni não sabia.

Ambos amavam as mulheres. Nunca fui especialmente sensível à musa de Antonioni, a beldade anémica e existencialista Monica Vitti. Mas acho curioso que depois de ter perdido a mobilidade e a fala, em 1985, Antonioni tenha colaborado em dois filmes com grande carga erótica. Talvez perseguindo ainda (é um título seu) o perigoso fio das coisas.

As mulheres de Bergman (suas actrizes e companheiras) são a galeria mais inesquecível da história do cinema, juntamente com as louras frígidas de Hitchcock. A mais memorável talvez seja Liv Ullmann. Mas há também a androginia de Bibi Andersson. A maturidade deslumbrante e magoada de Ingrid Thulin. E Monica (Harriet Andersson), a imagem mesma do desejo, a boca carnuda, os olhos decididos, o pescoço e os ombros molhados.

Retirado há anos numa ilha ao largo da Suécia, Bergman ameaçou várias vezes deixar o cinema. Mas o miúdo quem tinham dado uma fascinante lanterna mágica (como conta na sua autobiografia), só nos deixou com o magnífico Saraband (2003), prova de que todos os temas continuam vivos na velhice, ou seja, na mortalidade. Sobre Antonioni, recordo agora uma belíssima frase, salvo erro de Fellini: «É o unico de nós que merece chamar-se Miguel Ângelo«.

(Público, 4 de Agosto)



Lee Hazlewood (1929-2007) era «kitsch» e brilhante, coisa que não acontece com muita frequência. Ele foi um daqueles produtores que são igualmente criadores, um Phil Spector que em vez de cabelo ridículo tinha um bigode retro, bem de acordo com a sua masculinidade um pouco fora de moda. Felizmente, Hazlewood estava-se nas tintas para a moda, para o mundo da música e (de certo modo) para o que pensavam dele. Começou por produzir putos rock’n’roll e depois tornou a pacata Nancy Sinatra numa cabra estilosa («canta como uma miúda de 16 anos que fode camionistas», foi a sua instrução à diva oxigenada). Se existem «clássicos», então «These Boots Are Made for Walkin» e «Some Velvet Morning» merecem essa designação.

Descobri Hazlewood porque ele fez em 1970 um álbum chamado Cowboy in Sweden (título que eu gostava para a minha autobiografia) e por causa de Requiem for an Almost Lady (1971), um «break-up album» magnífico, sem medo do sentimentalismo e da piroseira (introduções faladas e tudo) e com uma pontinha de ironia e vingança. A Hazlewood devemos a cunhagem de uma particular variante do «country pop» (sofisticado e pires, por oposição ao «country rock», supostamente genuíno e e genuinamente grunho). E também lhe devemos essa dança com o «kitsch» que lhe valeu a admiração de putos como Jarvis Cocker, que muito contribuiram para a sua ressureição («Thank God for kids that love obscure things», confessou). Crooner da série B, como lhe têm chamado, o barítono Hazlewood tinha talento melódico e orquestral, e escrevia uma letras «no-nonsense» mas por vezes bastante bizarras. A sua despedida, com Cake or Death, no final do ano passado, foi um espécie de chamada ao palco com todos os artistas, incluindo «covers» dos seus clássicos e um dueto com a neta.

Lee Hazlewood foi um homem que gozou a vida e que gozou com a vida. Bless him.



Entre muitas, três características fazem o génio e o fascínio de Agustina.

Desde logo, a improvável aliança entre os universos de Camilo e de Musil. Histórias nortenhas com ancestralidade, velhas casarões, matriarcado e pundunores desagravados (mas sem melodrama nem domésticas como leitoras). E digressões ensaísticas, agudas farpas sociais e finíssimas análises de carácter. Em Agustina, o narrador é Agustina, uma força da natureza, tão perspicaz como implacável, e que não discute nunca a sua autonomia.

Depois, Agustina inventa uma classe social, uma alta burguesia meditativa, uma aristocracia aforística, que tem e teve sempre pouca correspondência na vida real. É um Lampedusa mais selvagem que imagina as suas personagens demasiado inteligentes para conviverem com outras pessoas, demasiado cruéis para gostarmos delas, demasiado sexuais para serem confiáveis. Não há naturalismo nos seus romances, mas um realismo algo mental e tão concreto como a inveja ou o desprezo.

Finalmente, Agustina disseca aquilo a que se chamava antigamente a “alma humana” (antes desses bisturis que a procuravam sem jeito nenhum). É um freudismo com prática clínica e tudo. Agustina gosta de provocações, mesmo as subtis. E nunca procura agradar. A sua máxima é o máximo de boas maneiras e o mínimo de lisonja. Nenhuma verdade é amável, e mesmo a “verdade” não é alicerce que se recomende. A angústia é em Agustina uma forma de alegria porque, como escreveu, sem imperfeições não existe beleza.

(Visão, 9 de Agosto)