Resposta a Jorge Silva Melo
Caro Jorge:
Escreve que no meu texto do Público eu cometo erros, escondo coisas e deturpo factos. E no entanto não nomeia nenhum erro, nenhum erro propriamente dito. O texto tem gralhas («Kendall» em vez de Kendal) e lapsos (falta uma referência à adaptação de um Nabokov para um filme de Fassbinder); mas erros não vejo nenhum. Muito menos encontrei o que quer que fosse «escondido», tarefa ao mesmo tempo vã e contrária ao meu feitio.
A sua crítica apenas cita as supostas «deturpações». Ou seja, aquilo que digo no texto e que não corresponde à sua interpretação (ideológica). Na verdade, aquilo de que não gostou (nadinha) está tudo num único período que diz assim:
«Stoppard nunca vogou nas águas do teatro comprometido, tal como praticado pelos seus compatriotas Osborne, Bond, Hare ou Brenton; a isso não são estranhas as suas inclinações políticas: apoiou os dissidentes do comunismo (como Havel) e manifestou simpatia por Margaret Thatcher, pecado inominável no meio intelectual».
O Jorge contesta quase tudo nestas breves linhas, e daí achar que eu «deturpo». Então vejamos:
1. «Stoppard nunca vogou nas águas do teatro comprometido»
É um facto. Embora tenha tido um acentuado gosto pela discussão de ideias, poucas peças de Stoppard tomam posição de forma empenhada. Até The Coast of Utopia (2002), a única peça estritamente política foi Every Good Boy Deserves Favour (1977), e isto, num autor tão prolífico, parece-me escasso. Cito o encenador Trevor Nunn: « (…) there are many different kinds of writers – thanks the Lord – and what a very dull theatrical landscape it would be if everybody wrote social realism or political polemic». [citado em About Stoppard: The Playwright and the Work, de Jim Hunter, Faber, 2005]
2. «tal como praticado pelos seus compatriotas Osborne, Bond, Hare ou Brenton»
O Jorge reconhece que «as causas social-democratas (…) fazem parte da boa consciência burguesa do teatro britânico» e que Tom Stoppard nunca alinhou nesse campo. Foi só isso que eu escrevi, sem nenhuma deturpação. E por «teatro comprometido» não quis dizer necessariamente «teatro de esquerda». Osborne não foi um dramaturgo «de esquerda», mas foi sem dúvida um dramaturgo «comprometido». Stoppard escolheu outro caminho.
3. «a isso não são estranhas as suas convicções políticas»
Nunca escondidas: «I think of myself as a reactionary» (artigo, 1968); «I am conservative in politics, literature, education and theatre» (entrevista, 1979), e cito apenas frases de décadas em que isto era bastante mais «heterodoxo».
4. «apoiou os dissidentes do comunismo (como Havel)»
O Jorge acha que Stoppard acordou «tarde» para a denúncia do comunismo soviético? Com o seu activismo de décadas contra a censura, contra a tortura, contra os presos políticos? Dou a palavra a outro encenador famoso, Richard Eyre: «And of course the fact is that at the time, when Tom was being vilified in some quarters as being a right-wing toady, he was actually active in a number of organizations, not least Index [on Censorship] and Charter 77, which were extremely important, and a lot more actively engaged than most “political” writers».
5. «e manifestou simpatia por Margaret Thatcher, pecado inominável no meio intelectual».
Aqui, o Jorge argumenta que até Pinter votou em Thatcher. Na biografia do dramaturgo escrita por Michael Billington, o episódio merece duas linhas: «Ironically Pinter, like Peter Hall, had voted Tory in that election [1979], inspired partly by his disgust with the National Theatre's wave of wildcat strikes». Ou seja: Pinter não votou em Thatcher por concordância ideológica, mas por reacção pontual contra os sindicatos, voto do qual se arrependeu amargamente. Essa decisão de 1979 deve preocupar quem se apoquenta com a coerência da esquerda, mas não tem nada a ver com Stoppard: « (…) he was one of very few artists to praise Prime Minister Margaret Thatcher, claiming that she spoke her mind and avoided politician’s fudge. (…) he was prepared to isolate himself from the prevailing opinions in his workplace» (Jim Hunter, op. cit.). Margaret Thatcher foi universalmente hostilizada no mundo das artes. O Jorge diz que ela foi apoiada por «Kingsley Amis, etc». Mas o único «etc» relevante que me ocorre é Philip Larkin. Nunca o establishment cultural apoia o Partido Conservador, em parte nenhuma do mundo. E o meio teatral, que eu «insinuo» ser de esquerda é afinal inquestionavelmente «social-democrata» (nas palavras codificadas do Jorge). Como diz Eyre, que dirigiu o Nottingham Playhouse e depois o National Theatre: « (…) I'm a child of the seventies – I was running a theatre in the seventies where my house writers were David Hare, Howard Brenton, Trevor Griffiths, Ken Campbell: sort of lefty anarchist – so, yes, we thought Tom was… I don't know know that we politicised him as a right-wing writer, but we saw him as not engaged». O Jorge dirá quem é o «heterodoxo» nesta matéria.
Tom Stoppard é um judeu checo cuja família fugiu dos nazis (e depois dos japoneses), cuja terra natal viveu sob a opressão comunista durante décadas, e que em Inglaterra encontrou uma segunda pátria que o acolheu e onde teve sucesso profissional e pessoal. O Jorge acha isso censurável? Estar grato a um país livre, depois de ter escapado a duas tiranias? Mas o Jorge, bem sei, considera a Inglaterra uma democracia entre aspas. A cada um a sua «deturpação».
Escreve que no meu texto do Público eu cometo erros, escondo coisas e deturpo factos. E no entanto não nomeia nenhum erro, nenhum erro propriamente dito. O texto tem gralhas («Kendall» em vez de Kendal) e lapsos (falta uma referência à adaptação de um Nabokov para um filme de Fassbinder); mas erros não vejo nenhum. Muito menos encontrei o que quer que fosse «escondido», tarefa ao mesmo tempo vã e contrária ao meu feitio.
A sua crítica apenas cita as supostas «deturpações». Ou seja, aquilo que digo no texto e que não corresponde à sua interpretação (ideológica). Na verdade, aquilo de que não gostou (nadinha) está tudo num único período que diz assim:
«Stoppard nunca vogou nas águas do teatro comprometido, tal como praticado pelos seus compatriotas Osborne, Bond, Hare ou Brenton; a isso não são estranhas as suas inclinações políticas: apoiou os dissidentes do comunismo (como Havel) e manifestou simpatia por Margaret Thatcher, pecado inominável no meio intelectual».
O Jorge contesta quase tudo nestas breves linhas, e daí achar que eu «deturpo». Então vejamos:
1. «Stoppard nunca vogou nas águas do teatro comprometido»
É um facto. Embora tenha tido um acentuado gosto pela discussão de ideias, poucas peças de Stoppard tomam posição de forma empenhada. Até The Coast of Utopia (2002), a única peça estritamente política foi Every Good Boy Deserves Favour (1977), e isto, num autor tão prolífico, parece-me escasso. Cito o encenador Trevor Nunn: « (…) there are many different kinds of writers – thanks the Lord – and what a very dull theatrical landscape it would be if everybody wrote social realism or political polemic». [citado em About Stoppard: The Playwright and the Work, de Jim Hunter, Faber, 2005]
2. «tal como praticado pelos seus compatriotas Osborne, Bond, Hare ou Brenton»
O Jorge reconhece que «as causas social-democratas (…) fazem parte da boa consciência burguesa do teatro britânico» e que Tom Stoppard nunca alinhou nesse campo. Foi só isso que eu escrevi, sem nenhuma deturpação. E por «teatro comprometido» não quis dizer necessariamente «teatro de esquerda». Osborne não foi um dramaturgo «de esquerda», mas foi sem dúvida um dramaturgo «comprometido». Stoppard escolheu outro caminho.
3. «a isso não são estranhas as suas convicções políticas»
Nunca escondidas: «I think of myself as a reactionary» (artigo, 1968); «I am conservative in politics, literature, education and theatre» (entrevista, 1979), e cito apenas frases de décadas em que isto era bastante mais «heterodoxo».
4. «apoiou os dissidentes do comunismo (como Havel)»
O Jorge acha que Stoppard acordou «tarde» para a denúncia do comunismo soviético? Com o seu activismo de décadas contra a censura, contra a tortura, contra os presos políticos? Dou a palavra a outro encenador famoso, Richard Eyre: «And of course the fact is that at the time, when Tom was being vilified in some quarters as being a right-wing toady, he was actually active in a number of organizations, not least Index [on Censorship] and Charter 77, which were extremely important, and a lot more actively engaged than most “political” writers».
5. «e manifestou simpatia por Margaret Thatcher, pecado inominável no meio intelectual».
Aqui, o Jorge argumenta que até Pinter votou em Thatcher. Na biografia do dramaturgo escrita por Michael Billington, o episódio merece duas linhas: «Ironically Pinter, like Peter Hall, had voted Tory in that election [1979], inspired partly by his disgust with the National Theatre's wave of wildcat strikes». Ou seja: Pinter não votou em Thatcher por concordância ideológica, mas por reacção pontual contra os sindicatos, voto do qual se arrependeu amargamente. Essa decisão de 1979 deve preocupar quem se apoquenta com a coerência da esquerda, mas não tem nada a ver com Stoppard: « (…) he was one of very few artists to praise Prime Minister Margaret Thatcher, claiming that she spoke her mind and avoided politician’s fudge. (…) he was prepared to isolate himself from the prevailing opinions in his workplace» (Jim Hunter, op. cit.). Margaret Thatcher foi universalmente hostilizada no mundo das artes. O Jorge diz que ela foi apoiada por «Kingsley Amis, etc». Mas o único «etc» relevante que me ocorre é Philip Larkin. Nunca o establishment cultural apoia o Partido Conservador, em parte nenhuma do mundo. E o meio teatral, que eu «insinuo» ser de esquerda é afinal inquestionavelmente «social-democrata» (nas palavras codificadas do Jorge). Como diz Eyre, que dirigiu o Nottingham Playhouse e depois o National Theatre: « (…) I'm a child of the seventies – I was running a theatre in the seventies where my house writers were David Hare, Howard Brenton, Trevor Griffiths, Ken Campbell: sort of lefty anarchist – so, yes, we thought Tom was… I don't know know that we politicised him as a right-wing writer, but we saw him as not engaged». O Jorge dirá quem é o «heterodoxo» nesta matéria.
Tom Stoppard é um judeu checo cuja família fugiu dos nazis (e depois dos japoneses), cuja terra natal viveu sob a opressão comunista durante décadas, e que em Inglaterra encontrou uma segunda pátria que o acolheu e onde teve sucesso profissional e pessoal. O Jorge acha isso censurável? Estar grato a um país livre, depois de ter escapado a duas tiranias? Mas o Jorge, bem sei, considera a Inglaterra uma democracia entre aspas. A cada um a sua «deturpação».