28.3.08

Uma carta de Jorge Silva Melo

Pedro,

Não gostei (nadinha) da tua nota sobre Tom Stoppard publicada no Ípsilon de 21 de Março. Na tua admiração por este autor, apresenta-lo como um solitário herói (da direita), um verdadeiro lonesome cowboy dentro do panorama intelectual do teatro britânico, que insinuas ser de esquerda. Mas cometes erros, escondes, deturpas. E isso, mesmo quando motivado por amor extremo, será perdoável, mas é feio.

Dizes que Stoppard “manifestou simpatia por Margaret Thatcher”, o que afirmas ser “pecado inominável no meio intelectual.” Pois olha que não o era no meio teatral, ou não te lembras do apelo ao voto em Thatcher subscrito por Harold Pinter, o anti-Blair/Bush, e Peter Hall, o brechtiano, ou esse delicioso Simon Gray, verdadeiro inconveniente? Nem no meio literário – Kingsley Amis, etc. Ou não te lembras que o fenómeno Thatcher, na sua fúria anti-sindical, congregou inesperados sectores da sociedade britânica, aterrados por um equilíbrio sindicatos-patronato que parecia esclerosado?

Dizes que Stoppard, “nunca navegou nas águas do teatro comprometido tal como praticado pelos seus contemporâneos”. Ora, o que é precisamente “The Coast of Utopia”, farfalhuda (maçadoríssima) versão dos penetrantes ensaios de Sir Isaiah Berlin sobre os utópicos russo-alemães? Ou este inteligentíssimo “Rock´n Roll”, entrada tardia no teatro dos temas que, nos anos 60, Milos Forman trouxe ao cinema (não viste o belo “Amores de Uma Loira”?)? E os Skolimovskis polacos não eram isso mesmo e com que vitalidade (a frescura inesperada de serem a coisa certa no momento certo)?

Ou, quando querias dizer “teatro comprometido” querias dizer “de esquerda”? Isso é verdade, nunca (até agora...) Stoppard se misturou com as causas social-democratas que fazem parte da boa consciência burguesa do teatro britânico, verdadinha. Fê-lo agora (e brilhantemente) nestes hinos de louvor ao actual sistema “democrático”, quando os ventos correm de feição a estas perspectivas tranquilizantes – e o debate já não é possível, está toda a gente de acordo, foi-se o incómodo. (Porque não o fez antes, quando os ventos do rock varriam as noites dos rapazes de Leste? Não sabia? Só agora deu por isso?). Não serão antes estas suas peças mais recentes celebratórias, peças tradicionalmente festivas, peças da maioria social-democrata, arte funerária, estela por mortos, peças do consentimento, agradecimento, reconhecimento (comprometido) do emigrante também politico que ele é (como afirmou na extraordinária entrevista que deu ao Guardian aquando da estreia)?

E porque dizes que o tal teatro “comprometido” seria, contrariamente ao do teu herói solitário, praticado pelo “seu compatriota Osborne”? Que diferença de horizonte politico vislumbras tu entre as diatribes contra o fim do colonialismo que são “A Patriot For Me” ou “West of Suez” e estas peças comprometidas de Stoppard? Ou, na cegueira de uma paixão, citas Osborne, esse reaccionário antes do tempo em que ser reaccionário passou a ser moda, sem o ter visto - e copiaste a sebenta?

Admito a tua simpatia por Stoppard (é um escritor, sim), cada qual é como quer e cultiva as heterodoxias (neste caso, não serão ortodoxias de hoje em dia?) que tem à mão. Mas, Pedro, não apagues a História, houve tantos que o fizeram, há ainda tantos - e ainda continuamos sem saber.

(No Ípsilon de hoje)