31.3.08

Uma vez que é primavera


Lee Miller, fotógrafa, modelo, musa surrealista

*

Minha mulher com cabelo de fogo nos bosques
Com ideias relâmpagos de calor
Com cintura de ampulheta
Minha mulher com cintura de lontra entre os dentes de um tigre
Minha mulher com boca de insígnia e de ramo de estrelas de grande magnitude
Com dentes de pegadas de ratinho branco na terra branca
Com língua de âmbar e vidro esfregado
Minha mulher com língua de hóstia apunhalada
Com língua de boneca que abre e fecha os olhos
Com língua de pedra incrível
Minha mulher com pestanas como gatafunhos infantis
Com sobrancelhas de ninho de andorinha
Minha mulher com têmporas de ardósia de tecto de estufa
E de vapor nas vidraças
Minha mulher com ombros de champanhe
E de fontes geladas com cabeças de golfinhos
Minha mulher com pulsos de fósforos
Minha mulher com dedos de azar e ás de copas
Com dedos de feno cortado
Minha mulher com axilas de marta e de faia
De noite de São João
De ligustro e de ninho de acarás
Com braços de espuma marítima e eclusa
E de mistura de trigo e moinho
Minha mulher com pernas de foguete
Com movimentos de relojoaria e desespero
Minha mulher com tríceps de caule de sabugueiro
Minha mulher com pés de iniciais
Com pés de chaveiros com pés de calafates que bebem
Minha mulher com pescoço de cevada sem pérolas
Minha mulher com garganta de Vale do Ouro
De encontro no leito da torrente
Com seios de noite
Minha mulher com seios de toupeira marinha
Minha mulher com seios de vaso de rubis
Com seios de espectro de rosa ao orvalho
Minha mulher com ventre de leque desdobrável dos dias
Com ventre de garra gigante
Minha mulher com dorso de pássaro que foge vertical
Com dorso de mercúrio
Com dorso de luz
Com nuca de pedra rolada e de giz molhado
E de queda de um copo em que há pouco bebemos
Minha mulher com ancas de batel
Com ancas de lustre e de penas de flecha
E de caule de plumas de pavão branco
De balança insensível
Minha mulher com nádegas de arenito e de amianto
Minha mulher com nádegas de dorso de cisne
Minha mulher com nádegas de primavera
Com sexo de gladíolo
Minha mulher com sexo de jazidas fluviais e de ornitorrinco
Minha mulher com sexo de algas e guloseimas
Minha mulher com sexo de espelho
Minha mulher com olhos cheios de lágrimas
Com olhos de panóplia violeta e de agulha magnética
Minha mulher com olhos de savana
Minha mulher com olhos de água para beber na prisão
Minha mulher com olhos de madeira sempre sob o machado
Com olhos de nível de água de nível do ar de terra e de fogo.


(André Breton, «A União Livre», 1931, versão PM, uma prenda de anos atrasada)