26.4.08

Paredes de vidro

Se há coisa que falta em absoluto ao secretário-geral do PCP é precisamente a dialéctica. O mais que consegue, graças a um longo treino, é ocultar a estreiteza das ideias sob uma floresta de retórica.A argumentação desdobra-se numa chata enumeração de categorias, em que tudo se subdivide no primeiro aspecto, no segundo aspecto, no terceiro aspecto, no “por um lado” e “pelo outro lado”, nos seis critérios, os quatro fundamentos, e por ai fora. Até nos conduzir às subtis distinções escolásticas entre o partido de “novo tipo” e o partido de “tipo novo”, os problemas dos quadros e os problemas de quadros, ou os dois significados da palavra “organização”... Estamos em pleno S. Tomás de Aquino. Daí também o tom de moralismo sentencioso desta obra, que traz à ideia o famoso “Para ser um bom comunista” do falecido Liu Chao-chi. Como os velhos sábios chineses, Cunhal tenta segurar o passado atrás de normas de conduta minuciosas. Lá vem o elogio da modéstia e da pontualidade, a prevenção contra a arrogância, a condenação da lisonja, o amor pela verdade... Não estamos perante um livro pedagógico, como lhe chama caridosamente Baptista-Bastos (no Diário Popular de 4/9), mas perante um insuportável catecismo de preceitos virtuosos.

Ao mesmo tempo, este velho moralista tenta desastradamente mostrar-se moderno, para não afugentar os jovens. Tal qual como os padres da nova vaga que abrem a igreja ao rock. “Um comunista não deixa por isso de ser um ser humano”: pode-se rir, fumar, beber um copo, “viver mais ou menos intensamente o amor”. Pode-se harmonizar a militância com a vida pessoal. Que ninguém tenha vergonha de ser feliz. Não é necessário confundir dedicação com sacrifício. Etc., etc. Seria bem bom se o problema da modernização do revisionismo português se resolvesse com aberturas destas. (…) Por isso, Cunhal sente-se emparedado. Para a frente, fica um revisionismo moderno, sem preconceitos, “à italiana”, que ele, por formação e instinto, se sente incapaz de adoptar. Lá muito para trás ficou o marxismo revolucionário dos tempos heróicos, com que ele há muito cortou, faz agora precisamente meio século. Com esta obra, ele tenta dar continuidade a uma das suas melhores criações, um sistema firme, equilibrado e elástico de vida partidária que fez do PCP um dos mais eficazes partidos pequeno-burgueses para operários. Parece muito duvidoso que o consiga.

É verdade, com a morte de Francisco Martins Rodrigues (1927-2008) aproveitei para ler alguns números online da revista Política Operária. Os textos de Martins Rodrigues são dos mais consistentes (e certamente os mais claros) de entre os escritos por ideólogos marxistas portugueses. Dissidente do PC, não cansou de atacar Cunhal pela esquerda. FMR considerava-se um comunista revolucionário, na tradição leninista, e criticou o «revisionismo» de Cunhal, plasmado na defesa de uma «unidade nacional antifascista» com a burguesia (em vez de uma «vanguarda revolucionária do proletariado») e no apoio incondicional à URSS. Tenho perfeita consciência de que a «pureza revolucionária» de FMR e de outros como ele representava o que sempre representa quando triunfa: fuzilamentos. E no entanto, as suas análises políticas são geralmente sólidas e inteligentes, especialmente os minuciosos ataques às estratégias do PC ao longo das décadas.

O texto citado (sobre O Partido com Paredes de Vidro, 1985) é cirúrgico na desmontagem da retórica cunhalista, do «tomismo» marxista à «modernização» desajeitada, passando pelo «moralismo sentencioso». Cunhal escrevia bem quando escrevia seco, quando não se justificava nem se enredava em parêntesis mal fechados; mas como teórico, convenhamos, não era nenhum Gramsci. O PC foi um partido da resistência e depois um partido tacticista. O apoio canino à União Soviética fez o resto. Com essas limitações involuntárias e escolhidas, o pensamento crítico estava amarrado e todos os malabarismos argumentativos valiam. A extrema-esquerda sempre teve argumentos terroristas ou lunáticos, mas às vezes conseguia alguma agilidade conceptual. E, em casos como este, vemos um pensamento mais estruturado e mais denso do que «a cassete» do costume.

O Expresso dedicou 5 linhas à morte de FMR. É ridículo. Francisco Martins Rodrigues foi um ideólogo marxista importante. E o marxismo não é uma nota de rodapé na história das ideias contemporâneas.