Um segredo a um só ouvido
Já falei para 300 pessoas e já falei para 2 pessoas. Não faz assim tanta diferença. Quando a gente entra e avalia um auditório, isso talvez afecte o ânimo. E as reacções ou silêncios também têm a sua importância. Mas no essencial o número de pessoas não importa muito. Há uns meses, falei numa livraria sobre Beckett (no dia do seu centenário), lendo e comentando algumas passagens. Estavam talvez 8 pessoas e correu muitíssimo bem. Nunca com salas cheias consegui o mesmo grau de intimidade e entusiasmo. Ser um dos meus autores de cabeceira ajudou. Aconteceu o mesmo ontem, quando li algumas páginas do diário de Pavese (que nasceu há cem anos) para uma audiência de 6 pessoas. O Ofício de Viver é um dos livros da minha vida, e aquele gesto de pôr a morte entre a escrita e a publicação não pode ser recebido como se de mera literatice se tratasse. E portanto nada havia ali daquela pose kultural que às vezes assumimos por desfastio. O Ofício de Viver é vida também porque foi assinado pela morte, e é literatura também porque foi cuidadosamente deixado como tal, numa pasta com a anotação Il mestiere di vivere (1935-1950), antes de Pavese (como ele talvez gostasse de dizer) ter ido dormir. Falei para seis pessoas, ao começo da noite, numa livraria de centro comercial, e não sei se alguém prestou a mínima atenção, mas sei que foi melhor do que falar para uma multidão. É exactamente como diz o poema: «Não podendo falar ao mundo inteiro/ direi um só segredo a um só ouvido».