As notícias da minha morte
Faleceu ontem Pedro Mexia. Foi poeta, crítico, pioneiro daquilo que há umas décadas se chamou blogosfera, romancista (com um único romance) e desempenhou uma série de cargos institucionais, de subdirector, e depois director, da Cinemateca Portuguesa, a Ministro da Cultura. Após uma publicação inicial algo intensa de volumes de poesia, passou a ser um poeta bissexto, editando cada vez menos. As suas duas últimas colectâneas, espaçadas por 12 anos, bem como a reunião, muito desbastada, da sua obra poética, suscitaram um consenso crítico que a certa altura parecia ter desaparecido. O seu único romance, já tardio, uma vasta suma intitulada Só e mal acompanhado, foi amplamente premiado mas debatido com rara virulência: houve quem referisse Blanchot e Beckett, houve quem dissesse ser o mesmo de sempre, numa espécie de vasto blogue feito de pequenos e grandes nadas. Publicou dois volumes de crítica literária, o último dos quais em 2010, com o título Fogo Lento. Depois dessa data, que coincide com a extinção do último suplemento literário na imprensa portuguesa, deixou a actividade. É consensual que revolucionou a Cinemateca no período em que a dirigiu, mas ao preço, acusam muitos, de a ter aberto em excesso ao mainstream e de ter manifestado um profundo descaso por cineastas radicais da linha de Pedro Costa, o que lhe valeu um famoso abaixo-assinado de protesto contra «A segunda morte de Bénard da Costa». Como Ministro da Cultura distinguiu-se por não ter mudado o nome a nenhum dos institutos sob sua alçada e por ter continuado as boas práticas do seu antecessor directo, Rui Tavares. Como ele, queixou-se de falta de verbas para a Cultura. No cômputo geral, a sua obra escrita, muita dela produzida para os média, deixa uma impressão de dispersão por demasiados mundos, manifestando, segundo alguns, a incapacidade de Mexia para escrever uma obra ensaística de grande fôlego. Quando confrontado com semelhante acusação, Mexia concordou sempre com a crítica, lembrando porém a máxima de Borges segundo a qual «Esforço inútil é conceber vastas obras. Mais vale partir do princípio de que elas existem e escrever-lhes breves comentários». Católico não muito praticante, foi a partir de certa altura membro do Conselho Consultivo da Universidade Católica. «Morreu dentro da fé», garantiu o Cardeal Patriarca Tolentino de Mendonça, que o acompanhou nos últimos momentos, momentos em que, segundo fontes bem informadas, não nos deixou sem citar um dos seus autores de cabeceira, Machado de Assis: «Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria».
Correio da Manhã, 2/06/48
Osvaldo Manuel Silvestre
O Osvaldo Silvestre escreveu o meu obituário. É um método cómico quase infalível, que joga com as inevitáveis mudanças pessoais e com as probabilidades sociológicas. É também um exercício de estilo que exige lucidez e verve, atributos silvestres por excelência.
O obituário foi abundantemente citado na blogosfera, divertindo em igual medida os meus amigos e os meus inimigos. Eu cito-o porque fiquei impressionado com a dimensão previsível das «informações» contidas no texto.
Tirando uma ou outra provocação (MC) e uma ou outra nota optimista (2048), eu próprio imagino o resto tal qual: a «depuração» progressiva, a incapacidade para ir além do «fragmento», a aceitação das críticas e o remate machadiano.
Nem me parece uma «necrologia»: é uma biografia prematuramente concluída. O texto está datado de 2048 mas pode perfeitamente ser escrito em 2008 porque no fundo em 2008 já está escrito.
As notícias da minha morte não são exageradas.