6.6.08

Num certo sentido

Friedrich Dürrenmatt apreciava o humor negro. Quando viu A Dança dos Mortos (1900) de Strindberg, achou a peça cheia de «literatice» escusada mas muito apelativa como objecto sarcástico. Pegou então no texto do sueco e fez de uma «tragédia matrimonial burguesa» uma outra coisa: «a comédia de uma tragédia matrimonial burguesa». A Dança da Morte já é de algum modo uma variação sobre temas de O Pai (1887), mas Dürrenmatt foi muito mais longe: reduziu a peça ao osso, cortou personagens, estruturou as cenas em «assaltos» (como no boxe) e orientou tudo para a agressão doméstica sem remissão (quem tem medo de Edward Albee?). O capitão (escritor falhado) e a esposa (actriz falhada) não são apenas mais um casal fracassado: a ideia é que todas as relações conjugais são uma guerra sem tréguas. A peça (ludicamente intitulada Play Strindberg, 1969) é um jeu de massacre que aproveita o convencionalismo do teatro burguês e o arrasta pela lama do absurdo verbal à Ionesco. Nada de naturalismo ou intensidade dramática: as personagens declamam o texto, mantêm as suas máscaras clownescas, e todos os diálogos filosóficos são satirizados como simples filosofice. É por isso que todas as perguntas (como «acreditas em Deus?») vão tendo uma mesma resposta: «Num certo sentido».

[«Play Strindberg» está em cena na Casa de Teatro de Sintra, com encenação de João de Mello Alvim]