22.7.08

História alternativa

Não lhe falei e ela também não me falou. É verdade que só nos vimos quando estávamos a dois passos um do outro, eu surpreendido, depois estranhamente calmo, avançando, ela ainda mais surpreendida, desagradada, um vaguíssimo pânico, e caminhando na direcção oposta. Era a mim que competia não lhe dirigir a palavra, foi o que fiz, naquele segundo em que nos vimos frente a frente nem se pôs outra hipótese, fiquei calmo e logo resignado, ela só teve tempo de me reconhecer, reagir com os músculos da cara (e as sobrancelhas parabólicas e a comissura dos lábios) e depois desaparecer, num movimento quase de dança, tornar aquilo por vontade mútua um não-evento. E depois de a perder de vista imaginei, não sei o que imaginei, talvez que ela tenha diluído aquele encontro nas peripécias banais de um dia, tropeçar no empedrado, evitar um marco de correio daqueles vermelhos, entornar um copo de água. Ela que a certa altura apostou tudo em tornar insignificante o nosso encontro (o outro), que eu fazia promessas insensatas, que eu não tinha o direito de querer que ela significasse alguma coisa, ela recusava que se fizesse poesia à custa dela, não por ser prosaica mas porque tinha medo da poesia, e eu achei isso comovente, alguém que teme a poesia, e a veemência dela («depois quem se fode sou eu»), toda ela contra o meu abuso da linguagem e vernácula porque também quase comovida, talvez como eu sob o efeito daquela noite magnífica em ziguezague entre árvores frondosas e escuras e um vento cúmplice, ela também surpreendida e agradada mas por pouco tempo, evitando as tentativas e histórias alternativas, «depois quem se fode sou eu», isto para que eu percebesse a seriedade dela, e poética nessa brutalidade, que eu não tinha o direito de perturbar o mundo dela, e no entanto deixando que eu de algum modo a tocasse, «for he's touched your perfect body with his mind», mostrando-se tocada e indignada, com uma breve alegria que os olhos rasgados traíam e os lábios romanos suprimiam. E agora que nos vimos, temos um segundo, obedeço e não lhe falo, ela num vaguíssimo pânico que eu desobedeça, e depois continua, não permitiu sequer que eu tivesse importância na sua vida, mas agora ali subitamente foi como se as coisas não estivessem resolvidas, foi isso que senti, as coisas ainda não completamente resolvidas, ela sentiu naturalmente o contrário, as coisas não podiam estar mais resolvidas, estão resolvidas por natureza, «depois quem se fode sou eu», e eu no regresso sem saber o que fazer disto, em que gaveta, em que artéria, confuso e ao vento, ela talvez esquecendo mais facilmente, com incomodidade, alegria reprimida, vaguíssimo pânico, indo à sua vida onde eu não pertenço e eu à minha, ambos com a insidiosa melancolia da história alternativa.