19.7.08

É hoje


















Na onomástica judaica, “Cohen” é um apelido da casta sacerdotal. E de facto o elegante septuagenário que esta noite visita Lisboa tem sido uma espécie de líder espiritual. Leonard Cohen criou a sua própria religião, com empréstimos generosos a várias tradições: o judaísmo (em que foi educado), o cristianismo (com o qual conviveu pacificamente) e o budismo (ao qual dedicou uma década). Há hoje em dia muita gente desorientada que aproveita em cada uma dessas doutrinas os aspectos mais suaves. Cohen fez o contrário: trouxe de cada tradição aquilo que é mais agreste: a culpa, a expiação, o sacrifício e a ascese. Não por masoquismo, mas porque a exigência e a disciplina servem a remissão dos excessos. E nenhuma vida tem sentido sem excesso e exigência.

Cohen sempre foi um hedonista, amigo do vinho e das mulheres tal como os poetas chineses clássicos que tem imitado. Nos seus textos e canções, a religiosidade empresta uma intensidade apocalíptica aos nossos erros e apetites. De modo que o banal se transforma em profético: “And everybody knows that the plague is coming / Everybody knows that its moving fast / Everybody knows that the naked man and woman / Are just a shining artifact of the past”. Quando Cohen escreve sobre o que é comum ele de imediato convoca ameaças, ambiguidades, máximas e revelações. Como se fosse um Isaías ou um Jeremias, mas sem a distância de milénios e enterrado no mesmo lodo e na mesma alegria que nós todos.

Cada um acredita em Deus como pode: Cohen acredita em Deus porque existem mulheres. Se ele se tornou conhecido como um artista profundamente religioso foi também porque elevou o culto da mulher num momento histórico em que esse culto parecia condenado. A mulher em Cohen é a mulher do Cântico dos Cânticos, de Rumi, dos trovadores, dos românticos oitocentistas, e certamente não a mulher da “revolução sexual” (da qual Cohen foi aliás contemporâneo e beneficiário). Há por vezes uma sexualidade desabrida nas suas canções, mas a sexualidade nunca é biologista: é um cuidadoso ritual onde se joga o sentido global da existência.

Na sua vida, Cohen sempre utilizou as mais variadas estratégias de sedução: uma vez até se inscreveu no Partido Comunista do Canadá (ele que é anticomunista), apenas porque estava interessado numa camarada. Com as suas canções, ele escreveu os Salmos da heterossexualidade. Não há nada que se compare na poesia de hoje. O elogio do corpo e alma femininos atinge em Cohen níveis de exaltação poética únicos. Embora sejam textos que nascem de muita reescrita, são também dádivas da “inspiração”. Uma inspiração que tem nomes: Marianne Ihlen, Suzanne Elrod, Dominique Isserman, Rebecca De Mornay ou Anjani Thomas. Em Cohen, há uma absoluta necessidade de entender o mundo através das mulheres, e isso chocou muitas vezes com as obrigações da monogamia. Mas até essa experiência é uma experiência religiosa, uma vez que vive do confronto entre um ideal e a vida vivida.

Muita gente tem visto nessa discrepância uma tendência depressiva. Cohen sempre negou tal rótulo. O que ele descreve é o sofrimento que resulta de uma ideia de separação ou isolamento. Uma ideia a que chama, com grande rigor teológico, “pecado”. Quem descreve os períodos da vida em que perdemos a Graça não é um depressivo mas um realista: “Um pessimista é alguém que está à espera que chova. Enquanto eu já estou encharcado até aos ossos”, disse. Aqueles que atacam uma suposta componente “depressiva” esquecem que as canções de Cohen estão cheias de aceitação, ironia e compaixão. E não são só as canções, é o próprio homem. Quando Kurt Cobain se suicidou, Cohen fez o comentário mais humano do mundo: “I’m sorry I couldn’t have spoken to the young man”. A bondade é o vício dos profetas.

Cohen, o grande sacerdote, regressa esta noite a Lisboa, vinte anos depois do concerto do Coliseu. E nós que pensávamos que nunca (mais) o veríamos dizemos todos “Hallelujah”.


(no Público de hoje)