4.7.08

Žižek 1

Numa crítica ao penúltimo livro de Slavoj Žižek, Terry Eagleton diz que o esloveno é “fenomenal”. Eis um epíteto justo. Há outros pensadores vivos igualmente complexos e igualmente polémicos, mas talvez nenhum com interesses tão diversificados. E certamente nenhum tão divertido (exactamente: divertido). Lacaniano e marxista, o filósofo tem produzido dezenas de ensaios sobre biopolítica, ciberespaço, ideologia, fundamentalismo, cultura de massas e tudo mais que nos acontece. Depois do sucesso colossal em vários países, a Relógio D’Água traduziu cinco Žižeks, e agora surge na Orfeu Negro (uma chancela da Antígona) “Lacrimae Rerum”, volume dedicado ao cinema.

Žižek já andou por esses territórios em “Enjoy Your Symptom!: Jacques Lacan in Hollywood and Out” (1992), onde dissecava o cânone segundo categorias como o Real, o Imaginário ou o Simbólico. E em 2006 entrou num documentário de Sophie Fiennes chamado “The Pervert’s Guide to Cinema”, filme em que aparecia no meio de cenas conhecidas e explicitava a componente fantasmática da realidade cinematográfica e da realidade vivida. “Lacrimae Rerum”, quatro ensaios publicados separadamente nos últimos oito anos, continua essas reflexões. Nalguns momentos, é lícito perguntar se estes textos mesmo sobre cinema, no mesmo sentido em que também perguntamos isso sobre os célebres livros de Deleuze; com efeito, Žižek usa e abusa dos filmes, fazendo digressões imprevisíveis e colagens de ideias estonteantes.

Žižek trata aqui dois autores mais óbvios e dois bastante arriscados. Ninguém estranha que ele se interesse por Hitchcock, por exemplo, cineasta “perverso” como poucos. Hitchcock tem sido uma vítima da “sobre-interpretação”: tudo nos seus filmes já foi dissecado até à exaustão. Mas Žižek não se incomoda nada com isso, e avança sustentando a ideia de que Hitchcock não se baseia em argumentos mas em motivos. A perversidade de Hitch está nas suas obsessões visuais; tudo o mais serve como pretexto (ou seja: como “McGuffin”). A leitura žižekiana de “Psico” é especialmente buliçosa, e acaba com a explicação de influência da arquitectura (isso mesmo) na personagem tresloucada de Anthony Perkins; assim, Žižek sugere, e com argumentos, que se o Bates Motel tivesse sido construído por, digamos, Frank Gehry, o pobre rapaz não se tinha tornado homicida. Eis um exemplo de inventividade sustentada e exibicionismo intelectual. Acontece que em Žižek isso nunca irrita: é sempre (mas sempre) fascinante.

Vejamos como ele pega em David Lynch. Žižek acha que devemos evitar o cliché de que os filmes de Lynch são de uma complexidade sem saída, um pesadelo sem lógica, uma bombardeamento implacável dos sentidos. Pegando em “Estrada Perdida”, ele demonstra que essa complexidade tem (entre outros) um sentido preciso: recriar uma “femme fatale” moderna. A “femme fatale” clássica (dos anos 1940) acabava destruída, mas deixava o seu fantasma intacto; a “femme fatale” revisitada (nos filmes de John Dahl, por exemplo) destrói o seu fantasma e sobrevive; mas então o que fazer depois disso? Žižek argumenta que Lynch reactualiza essa fantasia masculina de um modo original, recorrendo a um “sublime ridículo” que é um terço romantismo, um terço violência e um terço hermetismo.

Escrever sobre Kieslowski e Tarkovski parecia à partida mais ousado, em especial porque Žižek vê neles traços de “obscurantismo”. Mas a esse passo atrás segue-se um salto em frente: o filósofo propõe-se apresentar Tarkovski e Kieslowski como cineastas materialistas. Impossível? Nada é impossível para o fenomenal Žižek. Senão vejamos. Žižek explica que Kieslowski começou pelo documentário por razões materialistas: ele queria mostrar a realidade polaca (desolada) tal como ela era, para a contrapor à visão optimista oficial. Foi isso que o fez mergulhar no real. Mas Kieslowski apercebeu-se da “obscenidade” do documentário enquanto género, do seu carácter intrusivo. Daí que tenha passado à ficção: mas depois verificou que a ficção é igualmente vulnerável, porque expõe a nossa fragilidade e os nossos fantasmas. A solução provisória encontrada pelo realizador foi encenar acasos, universos alternativos, narrativas em aberto, encontros misteriosos (nomeadamente no “Decálogo”, aqui analisado num ensaio magistral). Mas o “destino”, diz Slavoj Žižek é uma saída falsamente “espiritual”: por um lado porque a vida fragmentada e aleatória corresponde de facto à experiência contemporânea; e depois porque o “destino” em Kieslowski não vale como uma realidade, mas como uma fantasia (ideológica).

Estejamos ou não convencidos, temos ainda o grande desafio: Tarkovski. Žižek admite o “reaccionarismo” do russo, mas encontra uma solução: diz que tudo o que parece espírito em Tarkovski é afinal matéria (ou, no mínimo, projecção mental). O cineasta tinha certamente intenções espirituais, e fazia dos seus filmes uma “viagem interior”. Mas a verdade é que esses filmes, por exemplo “Solaris” ou “Stalker”, são sobre a materialização (concreta) de fantasmas. Uma materialização da sexualidade masculina em “Solaris” (a mulher como projecção do homem). E uma materialização da angústia religiosa em “Stalker”. Se este último anda à volta de uma misteriosa “Zona” onde os desejos supostamente se concretizam, essa Zona só ganha uma aura mágica porque é inacessível: quando se chega lá, não tem nada de especial. A Zona existe porque se criou um mistério chamado a Zona. E isto já não é obviamente crítica de cinema: é uma psicanálise da religião.

Que as teses aparentemente implausíveis, as idiossincrasias políticas e o jargão lacaniano não afastem ninguém: Žižek cultiva um humor eslavo irrequieto e obsceno, uma voracidade associativa, uma inteligência esmagadora e um gosto pela provocação admirável. E no meio dos cineastas estudados, aparecem milhentas outras coisas: Kleist, a MTV, “A Profecia Celestina”, Ruth Rendel, Ivan Reitman, o Solidariedade, “Os Pássaros Feridos”, a sodomia, Yoda e Heidegger. Creio que não há ninguém que não goste ao menos de uma destas coisas.


(no Ípsilon de hoje)