Nós não vivemos como podíamos viver
1. Um dos biógrafos de Tchekhov chamou a esta peça «um monstruoso melodrama». Mas «monstruoso» aqui é descritivo e quase elogioso, e «melodrama» é um conceito aproximativo: «A representação levaria cinco horas e o texto está cheio de clichés e regionalismos. E no entanto Platónov tem a marca de água do drama tchekhoviano: uma propriedade degradada que vai ser leiloada e que ninguém pode salvar. Mesmo as escavadoras que fazem um ruído ominoso debaixo das estepes antecipam O Cerejal. O herói, tal como o Tio Vânia, acredita que podia ter sido Hamlet ou Cristóvão Colombo e gasta a sua energia em casos amorosos fúteis. (…) Falta à peça carpintaria teatral, brevidade e graça, mas os seus absurdos, a sua atmosfera trágica e as alusões a escritores como Shakespeare e Sacher-Masoch fazem dela um texto típico de Tchekhov» [Donald Rayfield, Anton Chekhov, A Life, 1998]. Com efeito, Tchekhov ensaia aqui todos aqueles recursos dramáticos, nomeadamente os jogos e tédios da alta burguesia, que depois aparecem nas suas tragicomédias mais celebradas. E se nesta primeira tentativa as imperfeições são notórias, são também fascinantes. Em 1881, a peça foi rejeitada e Tchekhov desistiu dela. O manuscrito só viu a luz do dia em 1923. Talvez a ideia de que esta é uma peça «imperfeita» e «juvenil» tenha levado algumas versões modernas a acentuar a faceta cómica, temendo que o excesso de seriedade caísse na comédia involuntária. Mas há uma razão que afasta Platónov da comédia e essa razão é Mikhail Vassílievitch Platónov.
2. Platónov é um rapaz de vinte e sete anos concebido por um rapaz de vinte e um. Tem virtudes apenas admissíveis aos vinte e poucos e defeitos quase inevitáveis aos vinte e muitos. Há muito de febril e revoltado neste mestre-escola, mas ele já está naquela fase em que a decepção e o moralismo prevalecem. Quem é Platónov? Um «sujeito interessante, original», como dizem com sarcasmo os seus perseguidores? Um «herói de romance moderno», como dizem as suas admiradoras? Ou um «infame», como ele diz de si mesmo? Tudo isso e nada disso. Tchekhov faz dele um Don Juan enfastiado e precocemente envelhecido. Supomos que aquilo que mais o motiva (como ao Trofimov de O Cerejal) seja a «reforma social» ou outro motivo elevado; mas entretanto já caiu num cinismo que vive paredes-meias com o sentimento de inutilidade: «O mal fervilha à minha volta, contamina a terra, devora os meus compatriotas e irmãos em Cristo, e eu fico sentado, de braços cruzados, como depois de um trabalho difícil; fico sentado, a olhar, calado… Tenho vinte e sete anos, aos trinta serei o mesmo – não prevejo mudanças! Depois serei gordo e negligente, vem o entorpecimento, a completa indiferença por tudo o que não seja a carne, e por fim a morte! A minha vida está perdida! Põem se me os cabelos da cabeça em pé quando penso nessa morte!». O exagero histriónico denuncia o impasse deste rebelde passivo. A sua exigência radical de «autenticidade» torna a vida impossível. Ele considera toda a gente vil, ofende toda a gente, provoca quezílias inúteis. E nós vemos fraquezas humanas triviais onde ele vê infâmias.
3. Produto romântico numa época que desliza para o niilismo, Platónov encontra uma sociedade russa «decaída», cheia de médicos incompetentes, comerciantes desonestos e militares imprestáveis. Mas nem se dá conta de que o mundo sempre foi assim. Quando ele diz que nós não vivemos como podíamos viver, é uma confissão e não uma crítica. Porque é dele, Platónov, que podíamos e devíamos esperar mais, pois ele é inteligente como mais ninguém na peça mas não fez nada com a sua inteligência. Supostamente «desiludido» com o amor, comporta-se agora como um sedutor seduzido, arrastando consigo mulheres fogosas e iludidas. E a sensação que temos é que este professor de província se tornou Don Juan porque não conseguiu ser Hamlet nem Colombo. A traição (ou impossibilidade) da sua vocação é que fazem dele apenas um conviva pitoresco ou um marido infiel, dois entretenimentos burgueses. Daí que ele esteja sempre à espera de um inominado «castigo»: mesmo quando é hipócrita, Platónov ainda acredita nalguma espécie de retribuição. Como punição da banalidade pública, ele escolhe a calamidade privada. E o amor, que as admiráveis Anna e Sofia vivem como uma entrega, é para Platónov uma simples desistência.
(texto escrito para o programa do espectáculo Platónov, de Anton Tchekhov, em cena no Teatro Nacional São João, no Porto, com tradução de António Pescada e encenação de Nuno Cardoso)
2. Platónov é um rapaz de vinte e sete anos concebido por um rapaz de vinte e um. Tem virtudes apenas admissíveis aos vinte e poucos e defeitos quase inevitáveis aos vinte e muitos. Há muito de febril e revoltado neste mestre-escola, mas ele já está naquela fase em que a decepção e o moralismo prevalecem. Quem é Platónov? Um «sujeito interessante, original», como dizem com sarcasmo os seus perseguidores? Um «herói de romance moderno», como dizem as suas admiradoras? Ou um «infame», como ele diz de si mesmo? Tudo isso e nada disso. Tchekhov faz dele um Don Juan enfastiado e precocemente envelhecido. Supomos que aquilo que mais o motiva (como ao Trofimov de O Cerejal) seja a «reforma social» ou outro motivo elevado; mas entretanto já caiu num cinismo que vive paredes-meias com o sentimento de inutilidade: «O mal fervilha à minha volta, contamina a terra, devora os meus compatriotas e irmãos em Cristo, e eu fico sentado, de braços cruzados, como depois de um trabalho difícil; fico sentado, a olhar, calado… Tenho vinte e sete anos, aos trinta serei o mesmo – não prevejo mudanças! Depois serei gordo e negligente, vem o entorpecimento, a completa indiferença por tudo o que não seja a carne, e por fim a morte! A minha vida está perdida! Põem se me os cabelos da cabeça em pé quando penso nessa morte!». O exagero histriónico denuncia o impasse deste rebelde passivo. A sua exigência radical de «autenticidade» torna a vida impossível. Ele considera toda a gente vil, ofende toda a gente, provoca quezílias inúteis. E nós vemos fraquezas humanas triviais onde ele vê infâmias.
3. Produto romântico numa época que desliza para o niilismo, Platónov encontra uma sociedade russa «decaída», cheia de médicos incompetentes, comerciantes desonestos e militares imprestáveis. Mas nem se dá conta de que o mundo sempre foi assim. Quando ele diz que nós não vivemos como podíamos viver, é uma confissão e não uma crítica. Porque é dele, Platónov, que podíamos e devíamos esperar mais, pois ele é inteligente como mais ninguém na peça mas não fez nada com a sua inteligência. Supostamente «desiludido» com o amor, comporta-se agora como um sedutor seduzido, arrastando consigo mulheres fogosas e iludidas. E a sensação que temos é que este professor de província se tornou Don Juan porque não conseguiu ser Hamlet nem Colombo. A traição (ou impossibilidade) da sua vocação é que fazem dele apenas um conviva pitoresco ou um marido infiel, dois entretenimentos burgueses. Daí que ele esteja sempre à espera de um inominado «castigo»: mesmo quando é hipócrita, Platónov ainda acredita nalguma espécie de retribuição. Como punição da banalidade pública, ele escolhe a calamidade privada. E o amor, que as admiráveis Anna e Sofia vivem como uma entrega, é para Platónov uma simples desistência.
(texto escrito para o programa do espectáculo Platónov, de Anton Tchekhov, em cena no Teatro Nacional São João, no Porto, com tradução de António Pescada e encenação de Nuno Cardoso)