14.7.08

O Tio Vânia

Um crítico da época disse que Tchekhov escrevia «perguntas sem respostas, respostas sem perguntas, histórias sem começo nem fim, intrigas sem desenlace». A crítica era negativa, mas resume bem as razões por que gosto tanto de Tchekhov. Para didactismos, já temos que chegue. O que eu gosto mesmo são as pausas de Tchekhov, o tédio, as conversas soltas, os projectos fracassados, os amores desencontrados, as frustrações sociais, as doenças dos hipocondríacos, os jogos ociosos, os vencidos da vida. E nenhuma peça dá isso tão bem como O Tio Vânia (1899), uma das 4 grandes obras dramatúrgicas do russo (embora agora que li Platónov garanta que são 5). Das 4, era a única que nunca tinha visto em palco, e não podia ter tido uma estreia mais idiossincrática do que com Tio João, uma versão «portuguesa» encenada por São José Lapa no seu Espaço das Aguncheiras, junto ao cabo Espichel. Ver estas «cenas da vida do campo» exactamente no campo é uma experiência aliciante. Achei dispensáveis algumas das modificações ao texto, embora muitas sejam cirúrgicas. É o único senão deste projecto que vive da generosidade da encenadora e da entrega dos actores. E foi bom, numa noite fria e desabrigada, ver umas dezenas de pessoas embrulhadas em mantas a ver Vânia ao relento: Quase totalmente desprovida de enredo, a peça tem três personagens marcantes: Vânia e Astrov, dois intelectuais decepcionados (embora Astrov seja menos niilista e mais donjuanesco); e Sónia, uma «alma pura» daquelas que Tchekhov tantas vezes contrapõe aos «inteligentes» caídos em desgraça. Toda a gente aqui tem ressentimentos guardados, idealismos que deram em nada, decisões erradas que mantém por «decência» burguesa. Os homens verdadeiramente inteligentes, Astrov e Vânia, são (como aliás diz o primeiro), uns «esquisitos», introspectivos e neurasténicos. Sónia, por seu lado, tem um forte sentimento do dever, interrompido por uma aspiração romântica e que redunda naquela típica resignação das peças de Tchekhov. Tudo isto vive de outra maneira assim ao vivo, com os pés na terra e na gravilha, numas cadeiras em frente a um barracão onde temos um Vânia (João Cabral) derrotado, um Astrov (Rui Paulo) nonchalant, e uma Sónia (Joana Manaças) comovente. Não é um espectáculo perfeito, mas há muito tempo que não tinha uma experiência teatral tão vital. E logo numa peça onde todos parecem prematuramente mortos, gente pré-póstuma enfronhada na tristíssima dignidade dos seus sonhos.