28.8.08

Se isto não é o povo, onde é que está o povo?

Aquele Querido Mês de Agosto é um dos grandes filmes portugueses dos últimos anos. A primeira longa-metragem de Miguel Gomes, A Cara que Mereces (2004), seguia um programa «regressivo» bastante frágil, embora tivesse a mesma curiosa obsessão «ritualista» das suas curtas. A segunda longa de MG passa-se na região de Arganil, e como eu conheço bem a Lousã, uma vila vizinha, reconheci a justeza da aproximação «etnográfica». Sempre me lembro daquele mundo de bailaricos populares com aparelhagens manhosas, de procissões sonolentas, de praias fluviais, de emigrantes em visita, de crimes sanguinolentos que rasgam o «idílio» campestre, de incêndios brutais que mudam a cor do céu. Gomes recusa o documentarismo «televisivo» e judicativo. Em vez de talking heads que debitam para a câmara, temos uma utilização da voz off que respeita em igual medida as pessoas ouvidas e a nossa curiosidade. Em vez de mais um discurso sobre «o povo», o qual, como MG disse ao Público, é sempre mitificado ou apoucado, temos o próprio povo. E não é um povo desencarnado. MG filma tradições e os ritos, e canaliza ambos em imagens e sons com infalível função narrativa. E depois há a natureza, a «misteriosa» natureza, da qual sabemos tão pouco que precisamos de cartões que identifiquem as árvores. As vicissitudes da rodagem fizeram com que o filme ficasse «impuro», não apenas uma justaposição de documento e imaginação, mas uma estrutura perfeitamente calibrada em que cenas «reais» são encenadas e cenas ficcionais contêm a «sujidade» dos diálogos e das inflexões de vozes portuguesas. A conversa entre os actores «amadores» que comentam a sua prestação é nesse aspecto paradigmática e notável. Mas em todo o filme não há um plano desleixado, todos eles são pensados, úteis mas idiossincráticos, cortam as pessoas pelas pernas se for preciso, ficam «demasiado» tempo a mostrar um animal esfolado se isso fizer sentido, fazem do fogo um «belo horrível» e da religião uma coreografia. Gomes capta sempre a materialidade manipulada de que se faz o cinema, e que desemboca no gag final sobre os sons que se ouvem no filme mas que não existem «na natureza». Em Aquele Querido Mês de Agosto, a «ficção» (quase uma réstia) não é verdadeiramente uma ficção, é um simples melodrama juvenil, muito eficaz precisamente porque muito «verdadeiro». Tão verdadeiro e acima do bem e do mal como a própria música pimba que Gomes escolheu. Uma música que enquadra sem ironias aquelas emoções cruas e «pouco sofisticadas». Que são afinal iguaizinhas às nossas.