16.9.08

Gradiva



Um dos textos mais fabulosos que conheço é a Gradiva de Freud, de seu nome completo Delírio e Sonho na «Gradiva» de W. Jensen (1907). A decisão de partida é bastante ousada: Freud, que já tinha estudado os sonhos «reais», decide investigar os sonhos imaginados (pelos escritores). A essa pesquisa não é alheia a questão do sentido. Muita gente rejeitava a ideia de que os sonhos têm uma lógica, sugerindo que são simples «excitações somáticas». Mas mesmo esses têm que reconhecer que um sonho sonhado por uma personagem obedece a um sentido, que é aquele que o escritor congeminou. Se os sonhos são desejos para o futuro, então um sonho é um modo legítimo de encaminhar o destino de uma personagem (vem na Bíblia).

Freud recorre então ao romance Gradiva, de Wilhelm Jensen, publicado em 1903. É quase um case study feito ficção, e daí que a ficção se torne case study. A longa sinopse que Freud elabora é assombrosa, e depois vem um trabalho de interpretação dos mais pequenos detalhes que lembra as reconstituições intrincadas feitas pelas «celulazinhas cinzentas» de um certo detective belga (ficcional). Gradiva é a história de um arqueólogo chamado Norbert que descobre num museu italiano um baixo-relevo que o fascina. É uma rapariga a andar, que levanta ligeiramente a túnica descobrindo os pés calçados com sandálias, um deles em posição vertical. Norbert faz uma cópia em gesso e chama-lhe Gradiva, «aquela que resplandece ao andar». E o rapaz que até ontem mostrava desinteresse pelas mulheres reais, vive agora obcecado com uma figura hipotética que viveu e morreu há séculos. Sonha com ela, sonha que a encontra em Pompeia no ano 79 e um dia, acordado, encontra mesmo uma rapariga que acha que é a sua Gradiva. Impossível duvidar da inquietante mas agradável «natureza corpórea» dessa rapariga ali à sua frente e que fala com ele em alemão. A rapariga embarca no delírio e finge que é de facto a Gradiva, mas depois revela que é a Zoe («vida»), uma miúda que Norbert amou na infância e que tinha esquecido. Desapossado do seu fetichismo, Norbert fica aparentemente «curado», mas ainda pede a Zoe que pegue no vestido como se fosse a Gradiva. Ela aceita.

Talvez Gradiva se deva guardar na estante entre Pigmalião e Vertigo. É uma história deslumbrante de mulheres inventadas, identidades trocadas, disfarces consentidos. Freud partiu para este ensaio dando como adquiridos os conceitos de «real» e de «sentido», mas o que é real e ficcional nos delírios do arqueólogo? E que «sentido» tem uma história que ganha sentidos diferentes na interpretação freudiana, sentidos ocultos, ambíguos, recalcados? O «final feliz» de Jensen e de Freud («boy meets real girl») é em si mesmo bastante irreal. E muitísismo interpretável.

Zoe nunca poderá ser tão perfeita e imortal como Gradiva. E Norbert nunca poderá ser tão dedicado a uma mulher com «natureza corpórea» como à sua fantasia soterrada em Pompeia. Se, como Freud sugere, uma fusão entre duas mulheres distintas sugere uma equivalência, que equivalência pode nascer da fusão entre Zoe (uma rapariga alemã) e Gradiva (uma ficção romana com dois mil anos)? Alguma vez a mulher real que um homem tem ao seu lado pode competir com o estatuto «resplandecente» das mulheres que ele imaginou?

A verdade é que Freud também comprou uma cópia em gesso da Gradiva e a guardava no seu escritório. Há ícones que são bibliotecas.