A miséria do nosso legado
É conhecido o remate de Memórias Póstumas de Brás Cubas: «Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria». Leio no Público que no colóquio lisboeta de há dias, António Carlos Secchin defendeu que essa frase é uma chave da obra machadiana. Senão vejam: «Que haveria de comum entre Brás Cubas, Rubião [o protagonista de Quincas Borba], Aires [de Memorial de Aires] e os gémeos Pedro e Paulo de Esaú e Jacó? Nenhum deles teve filhos». E se Bentinho [Dom Casmurro] tem um filho, vive cheio de dúvidas quanto à sua paternidade. Será então a «esterilidade» que dá às personagens de Machado uma visão lúcida (e pessimista) sobre a vida? É provável. Abel Barros Baptista concorda com essa tese, tendo dito que a grandeza de Machado reside «[n]esse senso invulgar de relacionar a comédia com a impossibilidade de dar continuidade à vida». Se eu já estava convencido, mais fiquei. A tragicomédia é um dos aspectos que mais me interessam em Machado, e vejo que em vários casos é de facto a «esterilidade» que propicia a tragicomédia. Sei também que o meu gosto pela tragicomédia se acentuou porque «não tive filhos». O facto de desaparecermos por completo quando morremos é tão trágico que é cómico. E os meus escritores favoritos, agora que penso nisso, são Kierkegaard, Machado, Nietzsche, Tchekhov, Kafka, Eliot, Beckett, Pavese, Cioran. Nenhum deles teve filhos.