18.12.08

A memória deslocada

Concordo em absoluto com o Augusto Seabra: a versão (cénica) do Quatuor pour la fin du Temps de Messiaen que vimos há dias no CCB foi um «abuso histórico» e um «abuso estético». Ligar Messiaen aos campos de extermínio de judeus não faz sentido. O compositor esteve num campo de prisioneiros comum, onde teve aliás tratamento «privilegiado», dada a sua condição de músico. Não se trata obviamente de menorizar o Holocausto, mas de não o usar a despropósito. Cito o Augusto: «Uma coisa é a indispensável memória histórica, outra é a mescla de factos apesar de tudo de ordem diferente, e tanto mais a mescla envolvendo uma concreta apresentação de uma obra como a de Messiaen, eventualmente configurando um abuso. / Isto não significa de maneira nenhuma uma “suspensão” da memória do Holocausto – só que ela é no caso deslocada, de modo mutuamente infrutífero, para o Quatuor pour la fin du Temps e para a concreta memória do universo concentracionário e de extermínio, incluindo as manifestações artísticas que ainda ocorreram nesse terrível universo». A minha suspeita é que através desse artifício se diluiu a fortíssima (e «incómoda») componente católica da peça e se converteu o Quatuor numa elegia às vítimas do nazismo, ideologicamente mais aceitável mas desadequada.