Olivier Messiaen
15 de Janeiro de 1941. Campo de prisioneiros Stalag VIII A, em Görlitz, Silésia. Temperatura negativa e neve abundante. Quatrocentas pessoas entram num barracão de madeira: o comandante do campo, oficiais e presos das mais diversas condições. Entram então quatro músicos: Etienne Pasquier, Jean Le Boulaire, Henri Akoka e Olivier Messiaen. Messiaen veste um fato rasgado de um soldado checo e calça uns tamancos de madeira. Os instrumentos também não estão nas melhores condições. O jovem francês dirige-se ao público e apresenta a peça, um quarteto para violino, violoncelo, clarinete e piano chamado Quatuor pour la fin du temps, composto ali mesmo no Stalag VIII A. Messiaen explica que o Quarteto se baseia numa passagem do Apocalipse em que um anjo majestoso levanta as mãos para os céus e diz (na tradução francesa que Messiaen trazia consigo): Il n'y aura plus de temps.
Durante 50 minutos, aquela pequena multidão comprimida ouve em absoluto silêncio aquela música cheia de inovações rítmicas, de impossíveis fortíssimos e lentíssimos. Uma liturgia intensa, etérea, inesperada. O compositor, dado a sinestesias musicais, descreveu assim um dos andamentos: «suaves cascatas de notas azuis e malva, douradas e verdes, vermelho violeta e laranja azulado – dominadas por cinzentos metálicos» Quando termina o último movimento, «Louange à l'Imortalité de Jesus», o público mantém-se mudo por alguns momentos, começa em aplausos hesitantes, e depois ovaciona e felicita os quatro músicos. Messiaen comentou: «Nunca fui ouvido com tanta atenção e compreensão». Pouco depois, o compositor é libertado. Torna-se professor do Conservatório, em Paris, onde foi mestre de Boulez, Stockhausen e Xenakis e de onde se reformou em 1978. Olivier Messiaen, o maior compositor religioso do século passado, nasceu a 10 de Dezembro de 1908, faz agora cem anos.
A estreia do Quarteto foi o momento mais inesquecível da sua vida, e ele recordava-o com frequência, às vezes com algumas liberdades poéticas. Esse extraordinário momento na história da música (e da guerra) não aconteceu por acaso. Messiaen era já um compositor conhecido, os alemães cultivavam a música erudita, e aquele campo era especialmente dado a actividades artísticas (tinha biblioteca, sessões de teatro, uma banda de jazz, conferências). Uma especificidade que abrangia apenas os presos ocidentais e que aliás servia como propaganda nas visitas da Cruz Vermelha. Messiaen e os outros músicos gozavam os privilégios dos chamados soldats musiciens (que formalmente não eram): o compositor tinha partituras, papel, lápis, sossego para escrever, instrumentos, um espaço para ensaios, e uma dose reforçada de pão e carvão.
Messiaen, professor e organista da Igreja de la Sainte Trinité, admirador de Debussy e Stranvinsky, tinha-se estreado na composição dez anos antes, e gozava do respeito geral de músicos e melómanos. Mobilizado como auxiliar médico, foi capturado em Verdun em Maio de 1940 e transferido para o Stalag VIII A. Quando foi agraciado com aquele tratamento de favor, escreveu para os três instrumentos (e os respectivos músicos) que encontrou no campo, a que se acrescentou um piano vertical que os alemães arranjaram e que ele próprio tocou.
Os membros do quarteto não tinham grandes afinidades, excepto o facto de serem quatro músicos franceses. Messiaen era um católico devoto, que aceitava a vontade de Deus (incluindo a prisão) e que sempre compôs peças litúrgicas, nomeadamente uma elegia aos mortos das Grandes Guerras chamada Et exspecto resurrectionem mortuorem. Quanto aos outros três, um era agnóstico, outro ateu, outro judeu e trotskista. No entanto, todos estavam enlevados com aquela redenção pela música, aquele milagre de liberdade no gelo prisional da Silésia.
Messiaen explicou que o quarteto tinha oito movimentos porque Deus fez o mundo em seis dias e descansou ao sétimo; o oitavo dia representava então a eternidade, marcada pela aparição de um anjo que declara o fim do tempo. O compositor vivia maravilhado com os pássaros (escreveu um Catalogue d'oiseaux), com a aurora boreal, com a esperança bíblica, com o cromatismo simbólico do Apocalipse. Tinha fome e frio, e saudades da família, mas vivia uma fé inabalável. Acreditava na «perpétua conversão do futuro no passado», mas também, como Eliot, no tempo passado contido no tempo presente. E acima de tudo num tempo depois do tempo a que chamamos, por falta de palavra mais justa, eternidade.
(texto publicado no Público de dia 6)