30.4.07
Uma espécie de totalidade
Uma conjugação feliz de circunstâncias infelizes. E em catadupa todas as angústias, interrogações, teorias e medos encaixam ou desabam ou as duas coisas.
Alcancei pela primeira vez uma espécie de totalidade, como se tivesse feito uma pergunta apenas e me tivessem dado todas as respostas a todas as perguntas possíveis.
Demorei muito a chegar aqui. E agora que aqui estou só preciso de mais um pouco de coragem.
Alcancei pela primeira vez uma espécie de totalidade, como se tivesse feito uma pergunta apenas e me tivessem dado todas as respostas a todas as perguntas possíveis.
Demorei muito a chegar aqui. E agora que aqui estou só preciso de mais um pouco de coragem.
29.4.07
Da neurologia
Não sou apenas um cinéfilo no sentido «artístico» do termo. Sou um viciado neurológico na experiência do cinema, na escuridão uterina e no foco de luz. Digo do cinema o mesmo que outros dizem do sexo: gosto mesmo quando não é bom.
28.4.07
A «experiência»
Um dos mais espantosos livros sobre a paixão foi escrito por Emily Bronte, que morreu com 31 anos, vivia no cu de Judas e nunca tocou num homem na sua vida.
26.4.07
Warm on the outside
I am warm on the outside, what people see. Warm eyes, warm face, warm fake fucking smile, but inside I am cold all the time and full of lies.
«Donna Hawthorne», no espantoso romance A Scanner Darkly (1977), de Philip K. Dick, adaptado mornamente ao cinema por Richard Linklater (2006), com Winona Ryder no papel de Donna
25.4.07
Nietzschiano
Não me interpretem mal: eu também sou um nietzschiano. Aceito a divisão do mundo entre fortes e fracos. E aceito que os fortes dominem os fracos. Acontece que eu pertenço aos fracos. E, assim sendo, desculpem a minha falta de entusiasmo.
24.4.07
Amargura
«Vai. Toma o livrinho aberto da mão do Anjo que está de pé sobre o mar e sobre a terra». Eu fui, e pedi ao Anjo que me entregasse o livrinho. Ele disse-me: «Toma, come-o. Será amargo no estômago, mas na boca será doce como mel». Tomei o livrinho da mão do Anjo e comi-o. Na boca era doce como mel, mas quando o engoli o meu estômago ficou cheio de amargura.
Apocalipse, 10, 8-11
Apocalipse, 10, 8-11
23.4.07
Experiência
Durante mais de uma década «aprendi com a experiência». No último ano, no entanto, não aprendi nada com a experiência: confirmei tudo o que tinha aprendido.
20.4.07
Red right hand (2)
Agora não adivinho mais os teus sinais, já não interpreto as tuas intenções, não pressinto a tua presença, nem falo contigo através de idiotas úteis e almas generosas. Agora, meu caro, quando quiseres conversar conversamos cara a cara.
Red right hand (1)
Take a litle walk to the edge of town
Go across the tracks
Where the viaduct looms,
like a bird of doom
As it shifts and cracks
Where secrets lie in the border fires,
in the humming wires
Hey man, you know
you're never coming back
Past the square, past the bridge,
past the mills, past the stacks
On a gathering storm comes
a tall handsome man
In a dusty black coat with
a red right hand
He'll wrap you in his arms,
tell you that you've been a good boy
He'll rekindle all the dreams
it took you a lifetime to destroy
He'll reach deep into the hole,
heal your shrinking soul
Hey buddy, you know you're
never ever coming back
He's a god, he's a man,
he's a ghost, he's a guru
They're whispering his name
through this disappearing land
But hidden in his coat
is a red right hand
You ain't got no money?
He'll get you some
You ain't got no car? He'll get you one
You ain't got no self-respect,
you feel like an insect
Well don't you worry buddy,
cause here he comes
Through the ghettos and the barrio
and the bowery and the slum
A shadow is cast wherever he stands
Stacks of green paper in his
red right hand
You'll see him in your nightmares,
you'll see him in your dreams
He'll appear out of nowhere but
he ain't what he seems
You'll see him in your head,
on the TV screen
And hey buddy, I'm warning
you to turn it off
He's a ghost, he's a god,
he's a man, he's a guru
You're one microscopic cog
in his catastrophic plan
Designed and directed by
his red right hand
Nick Cave & the Bad Seeds
«Red right hand»
álbum Let Love In, 1994
A partir de hoje escrevo todas as semanas no «Público», no suplemento das sextas, Ípsilon (crítica literária), e ao sábado no caderno P2 (crónica).
Obras de misericórdia
É uma das obras de misericórdia (nietzschianas): ensinar aos fracos o seu lugar.
19.4.07
Catenaccio
Eis os meus convocados:
- 1 guarda-redes
- 1 lateral direito
- 1 libero
- 3 centrais
- 1 lateral esqerdo
- 1 trinco
- 3 médios defensivos
- 1 guarda-redes
- 1 lateral direito
- 1 libero
- 3 centrais
- 1 lateral esqerdo
- 1 trinco
- 3 médios defensivos
Os Távoras
Torturados, decapitados, queimados, os palácios destruídos, as terras salgadas, o brasão de armas picado e o nome expressamente proibido.
Coisas desagradáveis
Ah, claro, não se discutem coisas desagradáveis, não se passou nem passa nada, quem morreu não tivesse morrido, o importante é viver em alto estilo, amenidades de alta burguesia ou que assim se julga, jogos muito inteligentes como as senhoras que discutiam a tão inteligente passagem de Shakespeare, provas de vitória, dos fracos não reza a história, nada de coisas desagradáveis, só o contentamento com a nossa própria glória, a nossa casta, uns maquiavelismos soltos, um comércio sexual, os sentimentos atrasam, as palavras atrasam quando não são apenas joguetes, quem morreu não tivesse morrido, dançamos de madrugada, fodemos em alto estilo, nada de coisas desagradáveis, ah, claro, nada de coisas desagradáveis.
18.4.07
Lament for my cock (Jim Morrison)
Elegia pelo meu caralho
magoado e crucificado
procuro conhecer-te
atingir a mais alta sabedoria
podes derrubar espessos mistérios
num show de nudez
Como comprar a morte num espectáculo matinal
a morte televisiva que o miúdo assimila
o mistério dessa boa morte que me faz escrever
comboio vagaroso a morte do meu caralho dá vida
Perdoa os pobres velhos que nos deram entrada aqui
nos ensinaram deus nas orações nocturnas em criança
Tocador de guitarra
antigo e sábio sátiro
canta a tua ode ao meu caralho
Acaricia o seu lamento
endurece e guia-nos a nós geladas
células perdidas
o conhecimento do cancro
para que nos fale ao coração
e ofereça os grandes dons
palavras poder transe
Este amigo estável e o animal do seu zoo
miúdas de cabelos selvagens
mulheres que florescem nos cumes
monstros de pele suave
cada cor se associa
para criar a embarcação
que embala a corrida
Pode algum inferno ser mais horrível
que este agora
e mais real?
Toquei-lhe na coxa e a morte sorriu
Morte velha amiga
a morte e o meu caralho são o mundo
posso perdoar as minhas feridas em nome de
sabedoria luxo romance
Frase após frase
as palavras são um lamento curativo
porque a morte do espírito do meu caralho
não tem sentido no lume brando
As palavras é que me feriram e me vão curar
se acreditas nisso
Todos juntos agora nesta elegia pela morte do meu caralho
uma torre de conhecimento na noite emplumada
os rapazes ficam malucos e sofrem
eu sacrifico o meu caralho no altar do silêncio
(versão P.M.)
15.4.07
Saiu ontem (na revista NS) o meu último texto no «Diário de Notícias». Contando com os tempos quase mitológicos do DN Jovem, foram 17 anos de colaboração, 10 dos quais a escrever sobre livros. Ao contrário do que já li na blogosfera, não fui «dispensado» pela nova direcção nem fui alvo de qualquer descortesia. Decidi simplesmente aceitar o desafio de outro jornal: o «Público». Assim, a partir de agora escrevo semanalmente no suplemento das sextas, o Ípsilon (crítica literária), e ao sábado no caderno P2 (crónica).
René Rémond 1918-2007
O renovado interesse na discussão (e na classificação) das várias «direitas» deve muito ao historiador e politólogo francês René Rémond (1918-2007). Sobretudo por causa de um estudo essencial de 1954 que se chamou (a partir da 4ª edição, em 1982) Les droites en France (complementada por Les droites aujourd'hui, 2005). A sua famosa tripartição («legitimistas», «orleanistas» e «bonapartistas») é especificamente francesa; mas (por exemplo) a história da blogosfera portuguesa de direita é um prolongamento destas discussões classificativas. René Rémond também era um lúcido defensor crítico do cristianismo, como se comprova em Le christianisme en accusation(2000). Não há muitos «intelectuais de direita» em quem um pobre direitista tenha orgulho. Rémond foi um desses poucos.
14.4.07
Insiste menos
Não posso dizer que tenha mais interesse pelo sexo do que tenho (digamos) pelo incêndio da Biblioteca de Alexandria. Acontece que o incêndio da Biblioteca de Alexandria (digamos) insiste menos.
Pois tenho
Ela diz: «Você tem medo das mulheres». Pois tenho. Chama-se a isso, salvo erro, «heterossexualidade». Ou coisa que o valha.
13.4.07
As mulheres tatuadas do Daguestão
Leio no Guardian que já foi entregue o prémio Diagram para o Título Mais Estranho (Oddest Title) respeitante ao último ano. Este concurso, agora na sua terceira década, distingue apenas um título de livro estapafúrdio, independentemente do conteúdo. O vencedor deste ano foi The Stray Shopping Carts of Eastern North America: A Guide to Field Identification, de um tal Julian Montague, que venceu outros achados como How Green Were the Nazis?, Better Never To Have Been: The Harm of Coming Into Existence, as actas Proceedings of the Eighteenth International Seaweed Symposium e o meu favorito Tattooed Mountain Women and Spoon Boxes of Daghestan. O jornal refere também alguns vencedores passados, entre os quais estão Proceedings of the Second International Workshop on Nude Mice (1978), How to Shit in the Woods, an Environmentally Sound Approach to a Lost Art (1989) e Greek Rural Postmen and Their Cancellation Numbers (1996).
As mulheres tatuadas do Daguestão
Leio no Guardian que já foi entregue o prémio Diagram para o Título Mais Estranho (Oddest Title) respeitante ao último ano. Este concurso, agora na sua terceira década, distingue apenas um título de livro estapafúrdio, independentemente do conteúdo. O vencedor deste ano foi The Stray Shopping Carts of Eastern North America: A Guide to Field Identification, de um tal Julian Montague, que venceu outros achados como How Green Were the Nazis?, Better Never To Have Been: The Harm of Coming Into Existence, as actas Proceedings of the Eighteenth International Seaweed Symposium e o meu favorito Tattooed Mountain Women and Spoon Boxes of Daghestan. O jornal refere também alguns vencedores passados, entre os quais estão Proceedings of the Second International Workshop on Nude Mice (1978), How to Shit in the Woods, an Environmentally Sound Approach to a Lost Art (1989) e Greek Rural Postmen and Their Cancellation Numbers (1996).
A mentira
Após uma década de ausência, ocupado que esteve em tarefas académicas administrativas, José Barata-Moura regressa aos ensaios em volume com um excelente livrinho de título arrevezado: Da Mentira: Um Ensaio – Transbordante de Errores (Caminho). Este estudo sobre a mentira (pública e privada) analisa textos dos mais intransigentes defensores da verdade (de Platão a Kant), passando pelos que admitem algum grau de mentira necessária ou perdoável (de São Tomás a Maquiavel e a Constant), aos que advogam a mentira como categoria estética benéfica (Wilde) e aos que contestam pura e simplesmente a noção de verdade e mentira (Nietzsche). Num texto bastante denso mas não isento de humor e de alfinetadas ideológicas, que viaja da patrística ao marxismo com a maior das facilidades, Barata-Moura propõe que a mentira seja encarada no contexto da verdade, embora a mentira constitua, obviamente, o oposto da verdade. A mentira não é um continente isolado, uma maldade intrínseca, uma obra de forças demoníacas: a mentira é uma maneira (falsa) de apresentar a verdade, por razões concretas e identificáveis. Ideia com grandes virtualidades argumentativas num momento em que se tem falando tanto da mentira em política (curiosamente, não é citado o ensaio de Hannah Arendt sobre esse tema). E também numa época em que as ideias «progressistas» fariam supor que a mentira privada teria entrado em decadência, por caduca e desnecessária. O que, como se sabe, é um erro transbordante.
12.4.07
A malária na África equatorial
Perguntam-me se quero escrever sobre «o amor». Neste momento, preferia escrever sobre a malária na África equatorial do que escrever sobre «o amor».
Genre studies
Podia dizer que o cinema de terror me interessa porque joga com as «emoções primitivas» como o medo, porque usa as técnicas todas de «manipulação» do espectador, porque reclama abertamente o conceito de «eficácia», porque exorciza «traumas epocais», porque interroga o «universo moral» e o «primado do visível».
Mas também podia dizer que o cinema de terror me interessa porque tem raparigas de 21 anos com calções e top a correr de um lado para o outro.
Sophia Bush em The Hitcher (2006), remake do filme homónimo de 1987
Mas também podia dizer que o cinema de terror me interessa porque tem raparigas de 21 anos com calções e top a correr de um lado para o outro.
Sophia Bush em The Hitcher (2006), remake do filme homónimo de 1987
11.4.07
Da promulgação e do veto
O modus operandi deste Presidente da República é o oposto do modus operandi das mulheres por quem me apaixono. Ele promulga, embora discorde. Elas concordam, mas vetam.
10.4.07
Vai ter que ceder
Entro no comboio e o lugar que o meu bilhete indica está ocupado. Não incomodo o digníssimo ocupante e escolho outro assento que imagino livre. Um cidadão de bigode avança em direcção a mim e afiança: «Vai ter que ceder». Eu cedo. É mesmo aquilo que eu faço melhor.
5.4.07
O clarinetista
B. diz que a monogamia é um sinal de civilização. Eu ironizo, digo que a monogamia é excelente mas impossível. E no entanto, concordo inteiramente com B. Ele cita uma alegoria de Alberto Savinio: um clarinetista que tocava na orquestra com um clarinete novo mas que só conseguia ensaiar adequadamente com o seu velho clarinete. O único de confiança. O único que conhecia bem.
3.4.07
Premonição
«If I let Jim die, is it the same as murder?»
A «vidente» Linda (Sandra Bullock) sobre o seu marido infiel, Jim (Julian McMahon), em Premonition, filme a que Anthony Lane chamou «Minority Report for the lustful».