27.7.07

Até Setembro (ou coisa do género).

Gatorade



I'm living on Gatorade
Planning my getaway


(Paul Simon)

Instruções

Na maçaneta da porta em vez de um «não incomodar» um «não quero falar nisso».

Agosto

It was an August day; a dog day. Rome and Paris would be empty of everyone but tourists, and even the Pope would be taking it easy in Gandolfo.

John Cheever, Falconer (1975)

26.7.07

Comédia

Sendo comédias, as relações acabam muitas vezes com uma punchline.

Morrer pela espada



Ah, mas eu sou o homem mais coerente do mundo. Elogio a espada e depois morro (sem protesto) pela espada.

Toda a gente sabe (5)

Everybody knows the scene is dead
But there's gonna be a meter on your bed
That will disclose
What everybody knows


Leonard Cohen

Toda a gente sabe (4)

«Toda a gente sabe e tu também já devias saber».

Toda a gente sabe (3)



Don’t want to hear about it
Every single one’s got a story to tell
Everyone knows about it
From the Queen of England
To the hounds of Hell


A rainha de Inglaterra eu perdoo.
Mas prometo que os mastins do inferno um dia morrerão à pedrada.

Toda a gente sabe (2)

Uma vez mais pela lama por causa das coisas que «toda a gente sabe».

Toda a gente sabe (1)

Diz «toda a gente sabe» como se dissesse que Viena é a capital da Áustria.

Wise up



É lixado ser ex de Aimee Mann. Os seus primeiros álbuns a solo são em grande medida ajustes de contas com uma série de idiotas com quem ela andou. Depois, fez-se cronista emocional (foi nessa altura que apareceu Magnolia). Nos últimos anos, tornou-se menos arisca, optando pelas vinhetas com personagens tristes mas não desesperadas. A sua música é agridoce. Nunca «sofisticada», nunca comercialona, nunca radical, nunca banal.

Esta noite, no Coliseu dos Recreios, Aimee teve uma recepção apoteótica, embora a sala não estivesse cheia. A visita tardava, e o público mostrou o seu agrado. Aimee, altíssima e escanzelada, é um simpática fria. Mas ficou rendida ao acolhecimento. «Awesome», repetia. Parece evidente que foi Magnolia que criou o laço emotivo com as massas. Acredito que ela já esteja um bocado farta dos «popular favorites», mas não se furtou a «One» ou a «Deathly», nem uma espantosa interpretação de «Momentum» (depois de um começo em falso). Sobre «Save Me», deve dizer que nunca esperei ouvir esta canção ao vivo, depois de tudo. Quanto a «Wise Up», é o que diz o outro: sobre ãquilo que não podemos falar devemos ficar calados.

Aimee Mann cantou temas de todos os álbuns, de Whatever (1993) a The Forgotten Arm (2005). Notei especialmente «How Am I Different», «Going Through the Motions» e«Humpty Dumpty» (mas não infelizmente «The Moth»). Apesar de escrever as suas canções, ela é essencialmente uma intérprete, ou seja, não se entrega emocionalmente, não está ali para grandes catarses.

As canções, harmonicamente muito iguais, não foram nada valorizadas pela banda (excesso de teclados, baixista inexistente). Em compensação Aimee mostrou que tem voz. Não é uma voz inesquecível, mas revela uma segurança impressionante.

Gostava finalmente de lembrar o auditório que Aimee Mann tem 46 anos.

(para M., que disse sempre sempre a verdade)

25.7.07

Empréstimo

Vivo com tempo emprestado.

Vesalius



A phenomenon oiled by blood, made of unequal parts like a Cellini saltcellar. A little gold and a little charcoal. A little bone, a little wax. A little alcohol, a little horror and a little gum. A little ivory, a little sulphur, a little damp dust, a sluice of fluids.

«The Vesalius Song», Peter Greenaway

Best /worst

O Guardian termina os seus perfis com a indicação «best of times» / «worst of times». No meu caso, como é óbvio, as datas coincidem.

24.7.07

A cadeira (3)

A cadeira (2)

Já elogiar o sucessor é uma coisa que não se pede a ninguém. Muito menos aos mortos.

A cadeira (1)

Quem concorre à Academia Francesa concorre mais exactamente a uma cadeira que tenha vagado. Há 40 cadeiras, numeradas, e quando more um académico fica aberta uma vaga. O sucessor, quando é eleito, tem que fazer o elogio oficial do seu antecessor. Há quem recuse. Mais vale não ser académico do que elogiar um imbecil.

O monstro

Dizem que o ciúme tem olhos verdes («green-eyed monster» e tudo isso). O ciúme ou o ciumento? Em todo o caso, não o objecto do ciúme. O objecto do ciúme, segundo creio, tem geralmente olhos castanhos.

23.7.07

A maldição do sexo



Cat People (1942) é ou não um filme de «terror psicológico»? Quando, quase no fim, a mulher aparece transformada em pantera, estamos em território «fantástico». Mas sabemos que essa cena foi imposta pelos produtores; claro que não a podemos ignorar, mas também não podemos ignorar que todo o filme se desenvolveu até aí com base em traumas e sugestões. Irena, a mulher que teme transformar-se em pantera (cumprindo uma velha lenda sérvia) é vítima de uma superstição. E o realizador, Jacques Tourneur, joga (magistralmente) com luzes e sombras, ruídos e expectativas, incluindo a genial cena numa piscina fechada. Mais: a temida metamorfose é de origem sexual. Irene recusa dormir com o marido porque isso provavelmente a transformaria em pantera. E o ciúme suscita o seu lado animalesco. É essa afinal a metamorfose: o medo do sexo e a raiva do sexo. E isso é tão «fantástico» como «realista».

Hoje não houve

What if there really is no tomorrow? There wasn't one today.

Bill Murray em Groundhog Day (1993)

A ironia e a amargura

D. tem razão. Houve de facto um tempo em que eu preferia «a ironia» à «amargura». Mas hoje, depois de tudo o que aconteceu, não me posso dar a esse luxo.

Entre les guerres

So here I am, in the middle way, having had twenty years—
Twenty years largely wasted, the years of l’entre deux guerres


Esse «l’entre deux guerres» que Eliot refere não diz respeito apenas às «guerras mundiais» mas às suas experiências por vezes tormentosas entre 1918 e 1939. Eu também tive os meus períodos «entre les guerres» (1995-1999, digamos, ou 2001-2006). Mas ao contrário de Eliot foram épocas tranquilas e não angustiadas. As «guerras» é que foram «largely wasted», é que me deixaram «largely wasted».

Algumas frases

Trago algumas frases ouvidas como se fossem uma tatuagem. Assim que acordo vejo-as gravadas na minha carne.

22.7.07

Os livros

Leio coisas sobre o Talmud e investigo a 4ª sinfonia de Sibelius e depois o desaparecimento do navegador Miguel Corte Real e logo a seguir um filme de terror holandês (The Lift) e mais o percurso político de Patrice Lumumba.

Ter muitos livros em casa é uma (estranha) forma de vida.

O caderno verde

Já estou na rua quando dou pela falta do caderno verde. Tenho o (mau?) hábito de anotar todas as «ideias» e «projectos» no mesmo caderno. É um caderno verde flexível, com papel amarelo e um elástico. Quando dei pela falta do caderno entrei em pânico. Depois de algumas investigações na loja onde o tinha deixado, lá o encontrei. Mas naqueles minutos em que esteve desaparecido percebi a importância do caderno verde. Não se trata apenas das «ideias» e «proectos» que contém, que podem mais ou menos ser refeitos de memória; o que me assustou foi a possibilidade de ficar privado da escrita através do metonímico desaparecimento do caderno. Sem a escrita, nada tem significado. Não há nenhuma distinção entre a minha escrita e a minha vida.

21.7.07

No momento em que nos deixam



As mulheres estão sempre incrivelmente bonitas no momento em que nos deixam.

Como assim, atmosférico?

Sou um gajo sombrio, melancólico, sorumbático, reflexivo, atmosférico, catártico, volátil, perspicaz, ansioso, entusiasmado, pungente, literato, lamentoso, sincero, agridoce e etéreo. Pelo menos é o que diz o All Music Guide sobre o último disco que eu ouvi.

Caixa de correio

Piedade não solicitada AQUI NÃO OBRIGADO. [Lei 59/07, de 20 de Julho]

20.7.07

Subcategoria

As mulheres heterossexuais que gostam de homens.

O cinema é

Não aguento as pessoas que dizem «o cinema é» isto ou «o cinema é» aquilo. Como se os filmes que não coubessem nessa definição não fossem cinema. Talvez sejam acupunctura. Ou andebol.

Persona é grande cinema e Assault on Precint 13 é grande cinema. E não há pessoas mais diferentes do que Bergman e Carpenter. O cinema é o que os cineastas fazem dele.

Death Proof

Death Proof talvez seja o primeiro filme misógino feminista. Quentin Tarantino faz mais uma das suas homenagens à série Z, neste caso revisitando um género esquecido, o grindhouse (uma espécie de exploitation movie às três pancadas). Death Proof é a história de um duplo dos automóveis que persegue e mata mulheres com o seu carro assassino; até que um dia encontra um grupo de amigas que chega para ele. É um filme cheio de perseguições rodoviárias, mas sem a angústia de Duel (ou mesmo de The French Connection); Death Proof é apenas um divertimento, embora um divertimento brutal. Tarantino regressa aos seus guilty pleasures e obsessões (bandas rock obscuras, pés femininos nus), num filme gloriosamente frívolo. A imitação tem graça: saltos deliberados na película, riscos, mudanças de cor, legendas berrantes e outras peripécias propositadas. E depois, o cineasta distende a narrativa, com aqueles diálogos demorados e «desnecessários» que boicotam a lógica de eficácia de um exploitation movie. É o luxo do lixo, com certeza, mas tem o poder primitivo (e sádico) do cinema.

19.7.07

O argumentista & o realizador

O argumentista lembra-me um rapaz que tenta seduzir uma rapariga. Telefona-lhe, convida-a para sair com ele, é muito tímido, vão ao cinema, depois vão tomar um copo, ele convida-a para ir a casa dele, quando chegam ele põe música, serve conhaque, diminui um pouco a luz. A rapariga sente-se bem, começa a deixar-se ir. O argumentista acaricia-a um pouco, desabotoa os primeiros botões da sua camisa... Nesse momento, o realizador chega, dá a mão à rapariga e leva-a para o quarto para terminar o trabalho.

Andrei Konchalovsky, realizador russo, no livro Les Leçons de cinema, Festival de Cannes, Éditions du Panamá, 2007

A vida das notícias

A «vida das pessoas» é como a vida das notícias: num momento motivo de grandes manchetes e no momento seguinte assunto esquecido.

O poder (2)

De acordo com a doutrina e a jurisprudência, um homem sem poder não é um homem.

O poder (1)

Tem sido muito comentada a aproximação de algumas figuras da direita portuguesa ao governo «socialista». Os colunistas afirmam que tais figuras se estão a «chegar ao poder». É preciso não conhecer a direita. A direita não «se chega ao poder»: a direita exerce o poder. O exercício do poder é a convicção mais arreigada da direita. Nem que seja preciso fazer fretes aos «socialistas».

Os idiotas

Flaubert tinha razão quando disse que sempre que atacamos os idiotas corremos o risco de também nos tornarmos idiotas. Os idiotas devem ser ignorados. O que é aliás a coisa que mais enfurece um idiota.

18.7.07

Inquérito

1. Are you more engaged by sarcasm or gentility on the internet?

Na escrita, o sarcasmo (mas nos gestos, a delicadeza).

2. Do you believe your political views define you?

As minhas «opiniões políticas» definem apenas as minhas opiniões políticas.

3. What makes someone worthy of a relationship?

A confiança.

4. Do you find it hard to get up in the morning?

Raramente me levanto de manhã. Sou um parasita social.

5. Why am I such a chicken about going to the doctor? And why am I dreading tomorrow as a result?

Quem é você e de onde é que me conhece?

6. What’s the last most beautiful thing you saw?

O vento nas árvores na Tapada das Necessidades à meia-noite e dez minutos.

7. If you could meet any one person you don’t know, who would it be? Why?

Leonard Cohen. Sou uma pessoa muito religiosa.

8. Are you easy to love?

«I don’t let that stuff in my house» (L. Cole).


(perguntas retiradas dum blogue americano cujo nome não anotei)

Pois que a razão quer que eu me retire

ALCESTE :
Je sais que vous parlez, Monsieur, le mieux du monde,
En beaux raisonnements, vous abondez toujours,
Mais vous perdez le temps, et tous vos beaux discours.
La raison, pour mon bien, veut que je me retire,
Je n'ai point, sur ma langue, un assez grand empire;
De ce que je dirais, je ne répondrais pas,
Et je me jetterais cent choses sur les bras.


Molière, Le Misanthrope ou l'Atrabilaire amoureux (1666)

Sem receita

17.7.07

Os pessimistas

Acho que não conheço ninguém que se diga pessimista e seja mesmo pessimista. Mas admito que esteja a ser um bocado pessimista.

Deaf

Quando andei numa de blind dates percebi que o ideal é ter deaf dates.

Internet is shit?

Confesso que sou um net-entusiasta (e eu não sou muito dado a entusiasmos). De todo o modo, achei graça a este manifesto com o singelo nome Internet is shit. Gosto especialmente da advertência: If you can't Google your blind date, that doesn't make them a freak.

La distinction

A penúltima edição da Entertainment Weekly contava que Jessica Alba gosta de ouvir LCD Soundsystem e anda a ler a Pastoral Americana de Philip Roth.

Já não vou lá

Nas autárquicas, não votei em Sampaio (1993), nem em Soares (1997), Santana (2001), Carmona (2005) ou Costa (2007).

Nas presidenciais, não votei em Sampaio (1996 e 2001) nem em Cavaco (2006).

Nas legislativas, não votei em Cavaco (1991), nem em Guterres (1995 e 1999), Barroso (2002) ou Sócrates (2005).

Sou um dos poucos portugueses que nunca ganhou nem uma eleiçãozinha.

E acho que já não vou lá.

A banda do doutor House

Boxer, até agora o disco do ano Estado Civil.



The National’s songs embrace a frame of mind that may be more familiar from movies than from daily life: a bleary urban predawn in which a deadpan antihero drifts among alienation and yearning, cynicism and vulnerability. “You were always weird, but I never had to hold you by the edges like I do now,” Matt Berninger sings in his resigned, morose baritone. “Walk away now and you’re gonna start a war.”

Jon Pareles, New York Times

During a live performance, I heard someone drunkenly remark from the bar, “Hey, is this the band House is in?” With his gangly frame and five-day beard, Berninger does share a certain resemblance to Hugh Laurie's character, as well as being a self-medicating, misanthropic genius with an impeccable taste for poisonous one-liners.

Ian Cohen, Stylus Magazine

Senhor fantasma

16.7.07

A verdade não liberta

Sempre me fascinou a frase de São Paulo que diz que a verdade nos liberta. Não tenho nada a certeza de que seja assim. A verdade liberta-nos da mentira, e isso é importante. Mas não chega. Um homem a quem abram as grades da prisão não é necessariamente um homem mais feliz. Talvez o único mundo que ele tivesse fosse a prisão. Mas aceito que em abstracto a liberdade é sempre melhor do que a prisão.

A verdade liberta nesse sentido: torna-nos pessoas livres. Mas a verdade quase nunca nos salva. Talvez a Verdade no sentido teológico, que São Paulo assimila à Ressurreição; mas a «verdade» no sentido comezinho é um tormento. Sofremos mais com a verdade do que com a mentira.

Mas para quem sofreu toda a vida com a mentira, o sofrimento com a verdade é um sofrimento desejável. Um sofrimento que certamente liberta de alguma coisa. Talvez do mundo.

A água

Há peixes de toda a espécie. Inofensivos e assassinos, sozinhos ou em cardume, frágeis ou colossais, comuns e raríssimos. Mas todos os peixes vivem no mesmo mar, na mesma água, é nela que nadam e sobrevivem. A água é o seu mundo. Quem recusa esta água recusa todos os peixes.

Nós

Ando a ler livros portugueses com uma componente memorialística. Gente tão diferente como Zita Seabra e João Bénard da Costa, Jorge Silva Melo e Jaime Nogueira Pinto. Em todos no entanto encontro esse fascinante «nós»: o que «nós» pensámos, que filmes «nós» víamos, as ilusões que «nós» tínhamos, etc.

Não tenho idade para escrever um livro de memórias, nem conto chegar a tal idade, mas sei que nunca poderei escrever um texto sobre «nós». A minha «geração» é uma geração do individualismo, e eu um individualista bastante radical. Estou condenado ao «eu». Ou, como dizia o doutor Cunhal e se diz agora na blogosfera, ao «umbiguismo».

Um medo de termos aquilo que queremos

Resmas de actrizes jovenzinhas, beldades avulsas ou em pacote, e não se vislumbra talento em lado nenhum, apenas feições harmoniosas e firmeza dos tecidos. É que a beleza necessita de uma sombra que a torne realmente interessante, alguma coisa que ficou por confessar, um trauma sossegado, uma solidão ínvia, o medo de termos aquilo que queremos. É isso que vejo em Kristen Stewart, nascida (valha-me Deus) em 1990, e que fez filmes como Panic Room (2002) ou In the Land of Women (2007). É a minha aposta para a novíssima geração. E olhem que eu sei coisas sobre esse assunto.

Um dom

Já cometi muitos erros. Tenho imensas dúvidas. Mas as minhas suspeitas são quase sempre acertadas. É um dom que odeio.

O período do meio

Quanto mais leio Harold Pinter mais me apercebo de que me interesso quase exclusivamente pelo seu «período do meio». Confesso que explorei pouco as suas peças «políticas» de 1980 para cá, em parte devido ao primarismo dos seus textos políticos (incluindo o amontoado de caralhadas a que ele chama «poemas»). E o que li não me convenceu. Já a fase inicial me parece curiosa mas raramente notável. A «comedy of menace» nem sempre envelheceu bastante (mas admito que depende muito das encenações e interpretações), tem elementos pronvincianos, simbologias óbvias, agressões epocais. Claro que é teatro moderno, que imediatamente torna obsoleto a «peça bem feita» dos Rattingans & companhia, mas esses começos, entre o «angry young man» e o teatro do absurdo, não me cativam completamente. Em The Birthday Party (1958), por exemplo, só os interegatórios surreais de «Goldberg » e «McCann» me parecem ainda vivos e actuantes. Já no Pinter que explora a relação entre a memória e os jogos de poder sexuais (The Lover, 1963; The Homecoming, 1965; Old Times, 1971; No Man's Land, 1975 ou Betrayal, 1978) encontro quase tudo o que me interessa em teatro. E cada vez mais me interesso por teatro.

15.7.07

Vaidade



Juiz: Decidir o que é verdade e o que não é agora parece-me... falta de modéstia.

Valentine: Vaidade?

Juiz: Vaidade.

(Jean-Louis Trintignant e Irène Jacob em Trois Couleurs: Rouge, 1994, de Krzysztof Kieslowski)

Kafka emendado

Diante do Amor está um porteiro. Um homem aparece e pede para entrar. O porteiro não autoriza. O homem pergunta se pode entrar mais tarde. O porteiro diz que talvez. O homem espreita pela porta aberta. O porteiro desafia o homem a tentar entrar, avisando que depois dele estão outros guardas, cada vez mais fortes. O homem desiste. O porteiro oferece uma banqueta ao homem, para que ele espere sentado. Espera anos e anos. Tenta súplicas e subornos. O porteiro aceita os subornos, «para que não penses que houve alguma coisa que não tentaste». Mas não deixa o homem entrar. No fim da vida, o moribundo faz ao porteiro uma pergunta que nunca fez: «Se todos aspiram ao Amor, porque é que durante todos estes anos mais ninguém tentou entrar?». O porteiro responde: «Aqui não podia entrar mais ninguém, porque esta porta era só para ti. E agora vou fechá-la».

14.7.07

Juízes (2)

self-appointed judges judge
more than they have sold

Juízes (1)



Um jogador português arrancou o cartão vermelho das mãos de um árbitro. Acho mal. Eu ignoro os cartões vermelhos que os senhores árbitros me exibem. E ainda estou em campo. Ao contrário de muitos desses juízes.

13.7.07

Sinopse

François, um estudante que trabalha como carteiro, apaixona-se por uma mulher mais velha, Anne, e começa a espiar o amante dela, Christian. Entretanto, conhece a adolescente Lucie, que o ajuda nas investigações. O companheirismo lúdico rapidamente se transforma em atracção. Ele interessa-se cada vez mais por ela. Mas um dia vê Lucie na rua a beijar o namorado.

Sinopse de La femme de l’aviateur (1981), de Eric Rohmer

Francis Bacon, Caged-Uncaged (1949)

Nada contra ti pessoalmente

Nikolai Bukharin, um dos principais teóricos marxistas e líderes bolcheviques, dirigiu o Pravda durante 20 anos e foi amigo de Lenin e Stalin. Quando divergiu deste último em matéria de política económica foi posto à margem e mais tarde acusado de traição e julgado num tribunal fantoche. A 10 de Dezembro de 1937 escreve da prisão uma carta pungente e suplicante ao seu «amigo»:

«Não guardo rancor a ninguém, nem estou amargo. Não sou cristão mas tenho os meus truques. E se queres realmente saber, mais do que tudo sinto-me oprimido por um facto que talvez tenhas esquecido: uma vez, provavelmente no Verão de 1928, estava em tua casa e tu disseste-me: “Sabes porque te considero meu amigo? É que tu não és capaz de intrigas, pois não?”. E eu disse: “Não, não sou”».

Bukharin foi executado três meses depois, a 15 de Março de 1938. Stalin garantiu-lhe: a execução não significava «nada contra ti pessoalmente».

As leis da irrealidade

Simpatizo com as tentativas para «reabilitar» a personagem de D. Quixote, libertando o cavaleiro lunático das garras da farsa; mas não creio que exista reabilitação possível. Quem se comporta segundo as leis da irrealidade tem mais é que cair do cavalo. E ser gozado por isso.

O sentido do ridículo

As pessoas com grande sentido do ridículo (é o meu caso) são imensamente atreitas ao ridículo (é o meu caso).

12.7.07

A sinceridade

Quero sempre sinceridade completa e depois fico a repisar certas frases sinceras como se fossem punhaladas.

Vivo (2)

Jacqueline was seventeen

Working on a desk when Ivor

Peered above a spectacle

Forgot that he had wrecked a girl

Sometimes these eyes

Forget the face they're peering from

When the face they peer upon

Well, you know

That face as I do

And how in the return of the gaze

She can return you the face

That you are staring from

Vivo

Há coisas agradáveis, e outras que me dão prazer ou alegria. Mas só há uma coisa que me faz sentir vivo (e não é exactamente essa).

11.7.07

Opening night

Tudo aquilo que provém da fraqueza

«O que é bom? Tudo aquilo que aumenta no ser humano a sentimento de poder, a vontade de poder, o próprio poder.

O que é mau? Tudo aquilo que provém da fraqueza.

O que é a felicidade? O sentimento de que o poder cresce, de que é vencida uma resistência».

Eis uma citação que não é preciso «identificar». Aliás, é mais que uma citação: é uma condenação. Uma tatuagem que dura mais tempo do que a pele em que foi tatuada.

O acto de ser tornado humilde

«Humilhação é literalmente o acto de ser tornado humilde, ou diminuído de posição ou prestígio. Todavia, o termo tem muito mais em comum com a emoção da vergonha». (da Wikipédia)

Dizes isso a todas (2)

The rememoration of the 'present' as space is the possibility of the utopian imperative of no-(particular)-place, the metropolitan project that can supplement the post-colonial attempt at the impossible cathexis of place-bound history as the lost time of the spectator.

Gayatri Chakravorty Spivak, crítica indiana, citada por Roger Scruton, que comenta: «Whatever that sentence is about, it is clearly no laughing matter».

Ryan Gosling (2)

Eu sei que me estou a repetir, mas desta vez é uma citação:

It's Gosling, though, who continues to astonish, and if Beachum seems an even bigger revelation than his Oscar-nominated Half Nelson turn, it's because the role as written gives him so much less to work with. Gosling owns the part, his eyes afire with the hunger of those who have spent a lifetime angling for a room at the top, or even in the building. On-screen, Gosling is so focused, yet so loose and at ease, that his every movement and gesture flows as naturally as the words from his mouth. He's the kind of actor who makes other actors look lazy. He is Brando at the time of Streetcar, or Nicholson in Five Easy Pieces, and altogether one of the more remarkable happenings at the movies today.

(Scott Foundas, no Village Voice, sobre Fracture, sublinhado meu).

10.7.07

O amor louco

À noite, seminus e encostados a almofadas, liam o DSM-IV e comparavam.

Hunan



and a package came for you today, from the hunan province
the postmark burning jet black in the summer sun
someone was changing. someone was changing from the inside out
and i turned around to face you.

9.7.07

A mulher de 40 (1)

O estudo de Vera Borges O Mundo do Teatro em Portugal. Profissão de actor, organizações e mercado de trabalho (Imprensa de Ciências Sociais) é hoje analisado no Público, num texto de Maria José Oliveira. Gente do teatro conta que há cada vez menos oportunidades de trabalho para as mulheres mais velhas. O que importa hoje é a imagem, a aparência, a «voragem do novo». E depois dos 40 anos, as mulheres são consideradas velhas: «Vivemos no mundo da imagem e as mulheres mais velhas, a não que ser que sejam mesmo muito mais velhas, não interessam ao teatro português».

Vale a pena transcrever o notável testemunho da actriz Maria Emília Correia:

«A palavra senior vem do latim senex, que quer dizer idoso, velho, que passou de moda. O que nos acontece, actrizes dos 60, 70 e 80 anos, é que passámos de moda, causamos enfado. O tempo destrói tudo e também a beleza, a sagacidade, a agilidade e, como em todas as outras mulheres, a pele fica sem viço, a cintura aumenta, os lábios descaiem. Mesmo que permaneçamos atentas, argutas, capazes, somos rejeitadas e as oportunidades são menores porque, obviamente, os contratadores não nos consideram lucrativas e, como é sabido, o valor maior do sistema vigente é o do negócio. O que nos acontece não difere em nada do que sucede aos outros cidadãos, homens e mulheres, com mais alguma idade: nada se lhes reserva, não somos respeitados e a vida é, por vezes, indigna. Nas peças de teatro, nos trabalhos televisivos, no cinema, as intervenções que nos são atribuídas servem de um modo geral para compor ou enquadrar enredos que sempre pertencem aos jovens, cada vez mais jovens, cada vez mais belos, cada vez mais concorrenciais e comerciais. Não penso que haja propriamente discriminação em relação ao género. O que sei é que nós, mulheres em especial, não fomos informadas de que para ser artista também era preciso saber gerir a vida e que isso era o mais difícil, porque era um território de sobrevivência atribulada. E assim ficámos vulneráveis e inseguras porque o nosso trabalho é, no fundo, considerado irrelevante e sem préstimo para esta sociedade».

Símbolo sexual



«Símbolo sexual é todo e qualquer personagem que possua apelo sexual suficiente para ditar comportamentos na sociedade». (da Wikipédia)

(para a Mafalda)

Sicko

No médico, paga-se no fim. E nas putas paga-se no princípio. A amizade, julgo eu, não é um consultório nem um bordel.

Encargos

Com os anos, as escolhas tornam-se encargos. O afecto talvez seja o mesmo, mas o ânimo mudou.

A piedade

A piedade é uma forma de humilhação.

Nunca ninguém se esquece

Há experiências traumáticas das quais as pessoas nunca se libertam. Nunca ninguém se esquece de ter passado fome ou de ter sido torturado.

Mas da humilhação, mesmo a mais comezinha, também nunca mais nos levantamos.

Costumers who bought this item also bought

A gente mais vivida não tem que dizer com quem dormiu, mas talvez fosse útil uma informação do género «quem dormiu com esta pessoa também dormiu com».

Conhecer

Conversa a altas horas com Z., alegre e decidida como de costume, animada por uma espécie de espírito de aventura infantil. Ela diz que «conhece» as mulheres. Eu digo a Z. que «conhecer» as mulheres é um conceito inútil para os homens. Um homem nunca «conhece» uma mulher. É um conhecimento que nos está vedado. A mulher é absolutamente diferente do homem, fala outra linguagem e pensa de modo diferente. O nosso fascínio pelas mulheres deriva aliás dessa estranheza e desse desconhecimento. Z. «conhece» as mulheres porque não as deseja. Os homens desejam as mulheres porque não as «conhecem».

David, que nos fala de Whitney



Basta algum juizinho para transformar «the upside of down» numa «wonderful life».

A navalha

A verdade é que se morre de ambos os lados da navalha.

Amarrada

Em «Bound», bela amostra de pop orquestral incluída no álbum Beauty and Crime (2007), Suzanne Vega prova uma vez mais que o divórcio é uma excelente inspiração criativa.

8.7.07

O temível silogismo

J. conta que «as pessoas» dizem isto e aquilo por causa deste texto ou daquele. Explico a J. que me é indiferente o que «as pessoas» dizem. Mas depois percebo o temível silogismo. É que 1) se me é indiferente o que as pessoas dizem e 2) se J. é uma pessoa 3) então é-me indiferente o que J. diz. É nestes momentos que a amizade é um gelo muito fino.

As maravilhas

Só vi 1 das 7 maravilhas do mundo (e não durou muito).

O estado das coisas

A serenidade do inevitável. A destreza do adiável.

7.7.07

Lobo como eu



got a curse I cannot lift
shines when the sunset shifts
when the moon is round and full
gotta bust that box gotta gut that fish


TV on the Radio, «Wolf Like Me»

Em inglês no original

Outro dia um visitante (estrangeiro) deste blogue dizia que dois terços dos textos estavam em inglês. Um ligeiro, como é que se diz em português?, overstatement. Se há muitas passagens em inglês é apenas porque, como se diz em notas de rodapé, estavam «em inglês no original».

4840

So you've bitten the big one and instead of pushing up daisies your loved ones decided it would be best to sell your body to science. This survey will tell you approximately how much money they'd get for it. Cadaver values are primarily based on overall health and the level of interest your corpse holds to the medical research industry.

$4840.00The Cadaver Calculator - Find out how much your body is worth

Um mistério demasiado evidente

«(…) The fact is, we have all been a good deal puzzled because the affair is so simple, and yet baffles us altogether.»

«Perhaps it is the very simplicity of the thing which puts you at fault,» said my friend.

«What nonsense you do talk!» replied the Prefect, laughing heartily.

«Perhaps the mystery is a little too plain,» said Dupin.

«Oh, good heavens! who ever heard of such an idea?»


Poe, «The Purloined Letter« (1845)

6.7.07

Holofernes



Caravaggio, «Judite decapitando Holofernes» (c. 1598)

Amanhã na batalha pensa em mim

Combatemos todas as batalhas, assim tenhamos um mínimo de tropas. Ainda que a derrota seja inevitável, trezentos dignos espartanos descem pelo menos a terreno para dar luta a 1 milhão de persas. Mas quando no campo de batalha não há ninguém a nosso lado, nem um soldado, então o combate não tem sentido. Um homem sozinho não combate. Um homem sozinho já perdeu o combate.

16.43

Aquela solidão ontem às 16.43, uma solidão a que não faltava gente, que não nasceu no isolamento, que não tinha contexto sexual, que não vem na sociologia, essa solidão como um eclipse às 16.43, uma solidão que não conhecia, que nunca me tinha acontecido, e que foi num instante (às 16.43) a soma nula disto tudo.

O veredicto

Uma notícia agradável seguida de uma notícia calamitosa. Sem um hiato entre uma e outra. Aceito assim mais uma vitória inútil e uma derrota clamorosa.

SBSR Dia 3



The Gossip numa actuação Queima das Fitas, trio ruidoso com uma extrovertida gordalhufa de vestido curto que aliás citou Mamma Cass e disse a palavra «bunda»; TV on the Radio confirmando o hype, com guitarras autoritárias e inventivas e um vocalista quase gospel na sua entrega; Scissor Sisters num espectáculo que não se destinava a gente com a minha persuasão sexual; Interpol numa actuação empenhada e fria, rock razoavelmente claustrofóbico movido a poderosos riffs; Underworld dominando a linguagem html, mas eu já estava de saída.

5.7.07

Ouvido no café #73

Uma brasileira, quase trinta anos e cabelo pintado de louro, diz bem alto: «E quando acordámos ele confessou que tinha 16 anos».

Google

Quando procurava no Google uma imagem de Hugo von Hofmannsthal encontrei, nos resultados, uma foto de Jessica Alba. Quando pesquisei uma imagem da modelo indiana Padma Lakshmi, dei nos resultados com uma fotografia de Samuel Beckett.

SBSR Dia 2



(eu sou o primeiro a contar da esquerda)

Clap Your Hands Say Yeah estimulantes na inteligência trocista ao jeito David Byrne, mas prejudicados pela excessiva luz do dia; Maximo Park numa empenhadíssima actuação rock, com um vocalista animal de palco mas que depois fazia umas introduções biografistas algo magoadas; Jesus and Mary Chain soando demasiado eighties, com «Just Like Honey» como bónus para velhadas como eu; LCD Soundsystem moderníssimos na fusão entre electrónicas e canções (excelentes canções, nas electrónicas desliguei).

4.7.07

Dança

Mover o corpo cadenciamente, em geral ao som compassado da voz ou de instrumento de música; girar; rodopiar; mover-se; saltar.

«Mover o corpo»? É tão vago que aceito. Mas eu não «giro», não «rodopio» e, por Toutatis, nunca mas nunca salto. Ou seja: não danço. E quem diz o contrário espalha boatos.

SBSR Dia 1



Klaxons com garra mas sem originalidade; The Magic Numbers pífios até mais não; Bloc Party em piloto automático mas com uns ocasionais arrancanços de guitarra; Arcade Fire magníficos, elegias festivas com tubas, violinos, pandeireta e megafone.

3.7.07

Vaidades e vinganças

Desde que concluí o curso, assisti talvez a três provas públicas em Direito. Tinham todas um elevado grau de exigência e de hostilidade. Mas o que me impressionou foi a latitude com que os arguentes fazem considerações estranhas ao mérito académico. Ouvi mesmo um deles em inaceitáveis graçolas politiqueiras, em vez de discutir questões jurídicas.

É por isso que acredito piamente que um candidato (a qualquer grau ou estatuto) possa ser chumbado ou prejudicado por razões políticas. Os académicos são geralmente uma cáfila da pior espécie, e quando se juntam egos desmedidos e mesquinhices ideológicas, vaidades e vinganças, então a universidade é simplesmente um tribunal arbitrário e injusto.

A vida dos outros (4)

Nos meus posts «A vida dos outros» (1-3) critiquei discursos políticos com conteúdo moral. Sobretudo porque muitas vezes esses discursos estão na origem de legislação «moral». É a isso e apenas a isso que me oponho com veemência. As opiniões privadas (ainda que divulgadas em público), não me incomodam, por mais detestáveis ou patetas que sejam. A liberdade dos outros vale exactamente o mesmo que a minha liberdade.

Ivan

Acabo de ver (em DVD) Ivansxtc (2000), vagamente baseado na novela A Morte de Ivan Illich, aqui com um agente de Hollywood em vez de um magistrado de província. E constato que se misturamos Tolstoi e Bret Easton Ellis, é Ellis quem vem ao de cima. Literariamente, isso não diz grande coisa. Civilizacionalmente, temo que diga.

A obra de Deus

Compreendo a noção de «santificação pelo trabalho» (desde que não envolva a desgostante ideia de «santificação do trabalho»). Não acredito é que um grande empresário esteja exactamente no caminho mais propício à santificação. Quem lida com milhões lida com as facetas menos dignas da humanidade. Lida com a inveja e a ira e a avareza e os outros quatro também.

É curioso vermos agora empresários ligados ao Opus Dei em intrigas muito laicas e nada santificadas. Mas enfim, são intrigas normais no mundo dos negócios. Um mundo onde a «santificação» não entra nem à martelada.

O dinheiro é uma coisa excelente, mas nunca foi «obra de Deus».

2.7.07

Os letrados ignorantes

O analfabeto é feliz e não se arma em carapau. Já o letrado ignorante é convencido, logo idiota. Acha que sabe, mas está enganado. O letrado ignorante é como aqueles revisores que emendam palavras difíceis, garantindo que são gralhas, e grafam outros termos mais comuns. E mudam alegremente «cultual» em «cultural», «corográfico» em «coreográfico», «teleológico» em «teológico», «polução» em «poluição». Deus nos livre dos letrados ignorantes.

Presidentes da Junta



Desejo que a presidência portuguesa da UE seja eficaz na tradução simultânea e nos croquetes, que não aprove nenhuma «Constituição» com outro nome, e que se houver manifs que seja gente que tenha tonificado os glúteos.

Dicionário jurídico

Repristinação: Renascimento de uma lei revogada com a revogação ou caducidade da lei que a revogara. (Ana Prata, Dicionário Jurídico, 3.ª ed. Almedina, Coimbra, 1992)