31.1.08

As palavras proibidas

Há palavras proibidas, e muito justamente proibidas. Palavras que em determinado contexto evitamos, para não sermos insensíveis ou grosseiros.

Um exemplo: as pessoas que têm um cancro não gostam de ouvir essa palavra tão explícita. É como se a palavra tornasse a doença mais letal. Assim, uma pessoa sensata não diz «cancro» ao pé de um doente com cancro, ainda que utilize o termo em sentido figurado («este ministro é um cancro», etc).

Se uma pessoa (pelo menos uma pessoa que não seja íntima com o doente) usa essa «palavra proibida», há três hípóteses 1) é insensível e grosseira 2) foi esquecimento 3) foi um acto falhado.

Mas talvez haja uma quarta hipótese. Talvez a pessoa que disse «cancro» ignorasse que o seu interlocutor tinha um cancro.

Na última semana, três pessoas usaram «palavras proibidas» em conversa comigo, e duas delas de forma espalhafatosa. Sendo pessoas bem formadas e cuidadosas, julgo que a ausência de censura se deveu apenas à ignorância

E essa ignorância soou como genuína inocência.

O problema com esse argumento

WILSON: You don't want a healthy leg.

HOUSE: Oh, here we go.

WILSON: If you've got a good life, you're healthy, you've got no reason to bitch, no reason to hate life.

HOUSE: Well, here's the flaw in your argument: if I enjoy hating life, I don't hate life, I enjoy it.

(série 2, episódio 24)

Monotemático



Sempre que escrevo sobre outra coisa, tenham a certeza que são desvios, divagações, entretenimentos, estratagemas, álibis, alegorias, ilusões, água turva agitada com uma vara. Eu sou e serei sempre monotemático. E não quero ser mais nada na vida senão monotemático.

29.1.08

Christian Bale



Em cinema, o meu actor favorito da nova geração é Edward Norton. Mas já vi Edward Norton em interpretações falhadas (em comédias, por exemplo). Em compensação, nunca vi uma interpretação falhada de Christian Bale, e já vi muitos filmes maus com ele. Bale é dos poucos actores que sua sempre as estopinhas mas que não transmite aquela sensação mecânica dos actores «de composição» (género Jodie Foster). O que significa que vou ver todos os filmes com Bale, um elogio desmesurado em se tratando de um homem.

Expiação

Achei Atonement / Expiação intragável. É pena, porque adapta um romance excelente e tem Keira Knightley com um vestido verde comprido daqueles de acreditar em Deus e na Imaculada Conceição. Mas o que Joe Wright conseguiu com Jane Austen (Pride and Prejudice, 2005) não conseguiu com Ian McEwan. O livro é sobre o storytelling como auto-justificação, jogando maravilhosamente com a memória do romance inglês oitocentista. O filme já não goza da inocência sábia de Austen e não tem unhas para a metaficção novelística. McEwan tem dito que os seus últimos livros privilegiam a emoção em vez da ideia, mas Atonement (o romance) tem ainda assim muitas ideias, enquanto Atonement (o filme) não tem nenhuma. Confunde «metaficção» e «ponto de vista» e acha que a «justificação» e a «culpa» são a mesma coisa. Expiação (o filme) é apenas um pastelão romântico e bélico. É pena. Volta, Henry King, estás perdoado.

E na doença

Ninguém fica com um doente que não ame. Eu achava que isso era um defeito masculino. Estava, como é meu costume, enganado.

Stacy Warner

Stacy deixou o homem com quem vivia, Gregory House, depois de um acidente que o deixou aleijado. Casou então com Mark Warner. Quando Mark tem um acidente que o deixa aleijado, Stacy dorme com Gregory House.

25.1.08

Allison Cameron

Na faculdade, Allison Cameron casou com um homem que ela sabia que tinha cancro da tiróide. Ele morreu seis meses depois do casamento. Allison rejeita a ideia de que tenha cometido um acto heróico. Ela diz que simplesmente não queria que ele morresse sozinho.

Jugular



Jugular é o nome de uma veia que recebe o sangue do cérebro, do rosto e do pescoço; desemboca na veia subclávia, situada debaixo da clavícula. Provém do latim vulgar «jugularis», do latim clássico «jugulus, -i» (clavícula, garganta, pescoço), diminutivo de «jugum», esta vinculada a «jungo –ngere» (juntar, unir). A jugular é um dos principais vasos que se cortam ao degolar alguém; por essa razão, os clássicos latinos usavam o verbo «jugulo, -are» para referir-se ao acto de degolar, e «jugulator, -oris» significava degolador e, por extensão, matador, assassino.

A insignificância

Somos frágeis e fátuos e insignificantes. O amor às vezes reduz essa insignificância ou cria a ilusão de que significamos alguma coisa. Outras vezes é o mesmo amor que nos reduz à nossa insignificância. E de cada vez que aprendemos isto, aprendemos isto pela primeira vez.

21.1.08

Alan Shore



Arrogante, cínico & insolente, Alan Shore ostenta aquela aliança de lascívia e desprezo típica do Grande Advogado. Nem falta o ricto de mal do estômago, quase um emblema da classe. Ele reconhece que a profissão é muitas vezes «imunda», «desumana» e «cruel» e finge que não é afectado por isso. Mas os efeitos da profissão na sua «interioridade» são de facto irrelevantes, uma vez que ele vive da rasura da sua «interioridade». Nisso, a sua profissão de Grande Advogado é totalmente adequada à sua vocação. Uma técnica ao serviço de um resultado, mas não de uma vontade, ou antes, de uma emoção (essa coisa infantil). Quando ele diz a uma colega que é preciso «reconcliar o que somos e o que fazemos», é um simples conselho ad usum delphini; há muito tempo que Alan Shore é aquilo que faz, porque faz aquilo que é.

20.1.08

GFE

Os «especialistas» chamam-lhe GFE: The Girlfriend Experience. A categoria inclui beijos na boca (com língua), carícias, conversa carinhosa, preliminares demorados, orgasmos reais e «uma aparência de sentimento mútuo». Mas isso tanto descreve as putas que parecem namoradas como as namoradas que parecem putas.

18.1.08

Obrigado por este bocadinho



Nunca pensei que o fim da juventude fosse assim tão nítido. E que custasse assim tão pouco. Obrigado por este bocadinho.

15.1.08

The Blue Room (2)

Quando escreveu Reigen, em 1900, Arthur Schnitzler não imaginou que a peça fosse representada. Sabia que o tema era demasiado chocante, e achava que o texto seria apenas lido entre amigos. De facto, quando a peça estreou, em 1921, foi logo proibida e perseguida judicialmente. Mais tarde, tornou-se célebre numa versão cinematográfica opulenta e romântica magoada (La Ronde, 1950, de Max Ophüls). David Hare transpôs o texto para a actualidade em 1998, com personagens e referências dos dias de hoje, mas manteve intacta a estrutura em episódios: 10 encontros sexuais rotativos analisados com frieza absoluta. As personagens são estereótipos (o taxista bruto, a modelo estúpida, o dramaturgo pomposo) e talvez só uma delas (a actriz) tenha vida própria, porque ironiza a sua situação sexual com mais bonomia que sarcasmo. Mas o que importa aqui não é a subtileza: todas as personagens, inteligentes ou idiotas, revelam a mesma condição, que o próprio Hare define como o abismo entre o que imaginamos, aquilo que lembramos e aquilo que vivemos. A insatisfação sexual continua mesmo em clima de promiscuidade total, na Viena de 1900 como em Londres em 1998 ou em Lisboa em 2008. A sexualidade não diz respeito apenas à satisfação dos corpos mas à dança dos nossos fantasmas, e nesse aspecto a «promiscuidade» resolve pouco ou nada. Aliás, é curioso que alguém com um impecável currículo progressista como Hare reconheça com tal honestidade que a «revolução sexual» não mudou o essencial.

POLITICIAN: Personal liberation was such a wonderful idea (…) Oh, yes, freedom’s a wonderful thing, but I sometimes think you should have to pass a test to prove you deserve it.

MARRIED WOMAN: And do you deserve it?

POLITICIAN: Well, I think I probably do, yes.

MARRIED WOMAN: Goodness.

They both smile.


(da cena 5)

14.1.08

The Blue Room



''It would have been better on the bench,'' says the prostitute, after a brusque copulation on a riverside quay, with a mixture of defiance and forlornness. That, of course, is Mr. Hare's main point, that sex would always have been better somewhere else, at some other time, with another person; erotic satisfaction is a chimera, the elusive quarry of an eternal and fruitless hunt.

Ben Brantley, no New York Times (Dezembro 1998), sobre a peça The Blue Room, de David Hare, adaptação de Reigen de Arthur Schnitzler

10.1.08

The Woods / O Bosque

O ano passado vimos em Lisboa uma versão escusadamente revisteira da violentíssima peça Sexual Perversity in Chicago (1974). Agora, o Teatro Aberto apresenta um Mamet menos canónico mas tratado com mais seriedade: The Woods (1979), com encenação de João Lopes.

É uma peça intimista, com apenas duas personagens. Nick e Ruth vão para uma casa junto de um lago à espera de encontrar um «paraíso perdido» que restaure a sua relação problemática. Mas nem aí se entendem: contam histórias duvidosas para passar o tempo, interrogam-se sobre o futuro, agridem-se.

The Woods é uma fábula sobre a inefável «incomunicabilidade do casal», com uma alusão aos contos de fadas (as tais que acontecem em bosques). A grande debilidade do texto talvez esteja na dialéctica forçada entre uma situação que surge naturalmente dos diálogos (muitos deles insignificantes) e a necessidade alegórica que aparece em evocações e monólogos (quase sempre significativos).

Quando a peça estreou em Nova Iorque, Mamet foi acusado de estar a «fazer Pinter», e percebe-se porquê: monossílabos e repetições pontuam a escrita, além de algumas desagradáveis onomatopeias. Em inglês, os diálogos funcionam relativamnte bem, mas o português é avesso a conversas elípticas ou sincopadas.

O que não funciona, nem em inglês, é o desenlace, a necessidade de tornar emotivo o quase abúlico Nick, ainda para mais num movimento «regressivo» que torna demasiado explícita a tese de «conto de fadas». Mamet nunca foi um literato, e The Woods tem um artificialismo literato que nunca tinha visto no seu teatro e que não convence.

E no entanto, creio que encontramos no texto um clima muito verossímil de estagnação, de discursos descosidos noite dentro, de ciclotimia emocional.

Os dois actores desta versão têm limitações inultrapassáveis, mas isso não impede que The Woods revele uma verdade fundamental: se amamos é também porque temos medo.

9.1.08

Amanhã, dia 10, apresento o novo livro de poemas de Francisco José Viegas: «Se me Comovesse o Amor» (Quasi). A leitura estará a cargo de Ricardo Araújo Pereira. Na Casa Fernando Pessoa, às 18h30.

A generosidade

«Talvez seja falta de generosidade da tua parte». Talvez. O dicionário não ajuda, diz que generosidade é a característica das pessoas generosas e generosos são aqueles que praticam a generosidade. Mas enfim, eu conheço mais ou menos o significado, e não, de facto não sou habitualmente «generoso». Eu explico-te porquê: sempre que fui «generoso» fui humilhado. Já chega. Quero que a generosidade se foda.

Brighton Rock (3)

Há também quem se interesse pouco pela inocência e pecado e muito pelo perigo e a coragem inútil. Morrissey, por exemplo, sempre fascinado com rapazinhos e rufias, que na canção «Now My Heart is Full» entoa: «Dallow, Spicer, Pinkie, Cubitt / Rush to danger, wind up nowhere».

Brighton Rock (2)

É uma das preciosidades da minha estante. Um tio meu, diplomata, conheceu Graham Greene há muitos anos, julgo que num jantar no Casino Estoril. Aproveitou a ocasião e pediu-lhe que autografasse Brighton Rock, cuja tradução tinha saído na Livros do Brasil. Greene assinou e dedicou o romance, que em português se chamava A Inocência e o Pecado, mas riscou o título catequético e escreveu apenas um seco e forte «Brighton Rock».

Brighton Rock (1)

Entrei no novo ano a ver Brighton Rock, versão cinematográfica (1947) do romance homónimo (1938) de Graham Greene. Suponho que o filme não tem a fama que merece porque o seu realizador (Jonh Boulting) não é, digamos, nenhum Hitchcock; mas Brighton Rock é um filme a vários títulos magnífico. Não se trata apenas de um dos mais conseguidos «filmes negros» ingleses; Boulting mantém intacto o sentimento de perigo físico e perigo moral que existe no livro. Ao contrário por exemplo da versão Neil Jordan de The End of the Affair este filme não rasura as referência ao catolicismo, essenciais para entender Greene (que escreveu o argumento, em parceria com o dramaturgo Terence Rattigan). Brighton Rock (romance e filme) retira a sua força de uma aliança dificílima entre o realismo sujo e a alegoria moral. Boulting excede-se no primeiro aspecto, e a cidadezinha costeira de Brighton (ou a sua recriação no ecrã) conjuga a animação estival cockney com erupções das «mean streets». O bando do quatro marginais (Pinkie, Spicer, Cubitt e Dallow) é ao mesmo tempo juvenil, quase amadorístico, e assustadoramente letal, no meio de parques de diversões, de cafés e hotéis, ou na solidão já quase homicida de um pontão à noite sob chuva inglesa. Richard Attenborough, no papel da sua vida, encarna o psicopata Pinkie na sua ambiguidade extrema, da sexualidade mutilada à religiosidade tenebrosa, passando naturalmente pelos excessos que ultrapassam a «ética entre criminosos» e que os outros por iso toleram mal. Carol Marsh representa com uma candura pré-sixties a rapariguita sorridente, sofredora e católica. Mas não é apenas uma «alma santa»: Rose conhece os crimes que Pinkie cometeu e fica com ele, ela sabe que corre perigo e não o deixo, e nem sequer é porque o queira «converter». Ela simplesmente aceita que ama um homem com defeitos e está convencida que o amor dele ultrapassa tudo. O amor dele por ela, claro, não existe: Pinkie casa com Rose para evitar que ela testemunha contra ele. Quando Rose lhe pede que grave a voz dele num disco, ele diz para a gravação que a odeia. Mas o paradoxal Greene está interessado naquilo a que chama «the appalling strangeness of the mercy of God». Daí que no final o amor (inexistente) trinufe, através de um estrategema tão simples como um disco riscado. Como sempre no catolicismo de Greene, a alegoria não é devota, mas ambígua.

Loss leader, losing sight of the shore