31.12.06

Last year's words

For last year’s words belong to last year’s language
And next year’s words await another voice

T S Eliot

30.12.06

Biografia

No início do ano, eu não dava nada por 2006. Agora, nos seus últimos dias, sei que não tive nenhum ano assim tão importante na última década. A humilhação, em apoteose, com megafones e campaínhas. As grandes certezas todas pela janela, e as pequenas com elas, anacrónicas. Os cães negros solícitos, para que eu não pensasse que tinham escapado. A peça que faltava na engrenagem e a prova final na acusação, aprumadas. Um gosto amargo que não passa. A biografia feita agora apenas bibliografia. E coisas inevitáveis das quais tenho mais medo que pressa.

O tempo das cerejas



And when the cherries ripe with blossoms
be ready and be brave
and remember what we had here
when there was something left to save

(The Mountain Goats)

Assim alguém

Uma das minhas fotos do ano: Nicole Kidman com o seu marido, Keith Urban, que mal casou já estava a entrar numa clínica de desintoxicação do álcool. Ela ao lado dele, tranquilamente, sorrindo, ali «for better or for worse, in sickness and in health».

O amor cobre uma multidão de pecados e ultrapassa uma multidão de obstáculos. Assim alguém o entregue e alguém o aceite.

29.12.06

A multitude of sins (3)



Sobretudo, conservai entre vós um grande amor, porque o amor cobre uma multidão de pecados.

(Primeira Epístola de São Pedro, 4; 8)

A multitude of sins (2)

Estou a ler A Multitude of Sins (2002), o terceiro livro de contos de Richard Ford, que no género já tinha publicado Rock Springs (1987) e Women With Men (1997). Associado algo jornalisticamente ao «realismo sujo», Ford não se limita a descrever as vidas banais e tristes que Raymond Carver canonizou; na sua prosa há uma fascinante análise dos acontecimentos emocionais. As emoções das personagens, sejam triviais ou terríveis, são uma coisa que lhes acontece. Um exemplo: a noção de que uma relação amorosa acabou (e de que sedimentou na memória) é um acontecimento tão real como o actos físicos. Sem as minúcias proustianas de Harold Brodkey, mas também distante da alusão hemingwayesca, Ford consegue fazer os sentimentos tão concretos como acções num enredo. E isso não tem nada a ver com sentimentalismo; pelo contrário, é a emoção elevada ao estatuto de ideia.

A multitude of sins (1)

She had acted uncertain of herself at the beginning – though not shy, she wasn’t shy in the least: she was protected, disengaged, careless, which allowed her to seem uncertain, and thus daring.

(Richard Ford, A Multitude of Sins)

28.12.06

O ano 2007 (back to Sweden)

besvikelse (decepção)
galen (maluco)
kärlek (amor)
lögn (mentira)
medvetenhet (consciência)
ofullkomlighet (imperfeição)
orättvisa (injustiça)
självkänsla (amor-próprio)
tvivel (dúvida)
vinter (inverno)

O ano 2006

O ano 2006 moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar;
Não torne mais ao Mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o Sol padeça.

O contrato (2)

Tal como no sketch de A Night at the Opera, em que Groucho e Chico vão rasgando, uma a uma, as cláusulas de um contrato, assim me sinto, ano após ano, a rasgar todas as minhas convicções. Rasgo mais uma cláusula. E mais uma. E mais uma. Depois deste ano assassino, o contrato está praticamente todo rasgado.

O contrato (1)



DRIFTWOOD: (...) It says the, uh, «The first part of the party of the first part shall be known in this contract as the first part of the party of the first part shall be known in this contract» - look, why should we quarrel about a thing like this? We'll take it right out, eh?

FIORELLO: Yeah, it's a too long, anyhow.


(Groucho e Chico Marx em A Night at The Opera, 1935, de Sam Wood)

27.12.06

Tirando isso (2)

«Tirando isso, estou bem».

Tirando (1)

«Mas tirando isso, como estás?»

(vejam aqui o divertido e inquietante exercício Apart From That, 2006, de e com Harold Pinter, ostensivamente um ataque à comunicação por telemóvel mas mais latamente uma reflexão sobre todos os tipos de incomunicação)

22.12.06

2006, escolhas

DISCOS
Bob Dylan, Modern Times
Bonnie Prince Billy, The Letting Go
Cat Power, The Greatest
Clap Your Hands Say Yeah, Clap Your Hands Say Yeah
Johnny Cash, A Thousand Highways
The Mountain Goats, Get Lonely
Nina Nastasia, On Leaving
Simon Joyner Beautiful Loser
Sonic Youth, Rather Ripped
Tom Waits, Orphans

FILMES
Entre Inimigos, de Martin Scorsese
Eu, Tu e Todos os Que Conhecemos, de Miranda July
Uma História de Violência, de David Cronenberg
Lisboetas, de Sérgio Tréfaut
A Lula e a Baleia, de Noah Baumbach
Marie Antoinette, de Sofia Coppola
Match Point, de Woody Allen
Miami Vice, de Michael Mann
Nada a Esconder, de Michael Haneke
O Tempo que Resta, de François Ozon

LIVROS (estrangeiros)
Ruy Castro, Rio de Janeiro (Asa)
colecção Curso Breve de Literatura Brasileira (Cotovia)
Michel Houellebecq, Extensão do Domínio da Luta (Quasi)
Tony Judt: Pós-Guerra: História da Europa desde 1945 (Edições 70)
John Milton, Paraíso Perdido (Cotovia)
Flannery O'Connor, Um Bom Homem é Difícil de Encontrar (Cavalo de Ferro)
Rilke, Pasternak, Tsvetsaieva, Correspondência a Três (Assírio & Alvim)
W. G. Sebald, Os Anéis de Saturno (Teorema)
Wallace Stevens, Harmónio (Relógio d'Água)
Slavoj Žižek, Elogio da Intolerância (Relógio d'Água)

LIVROS (portugueses)
Agustina Bessa-Luís, A Ronda da Noite (Guimarães)
António Mega Ferreira, Por D. Quixote (Assírio & Alvim)
Fernando Echevarria, Epifanias (Afrontamento)
Gastão Cruz, A Moeda do Tempo (Assírio & Alvim)
Gonçalo M. Tavares, Água, Cão, Cavalo, Cabeça (Caminho)
João Miguel Fernandes Jorge, A Gravata Ensanguentada (Relógio d'Água)
Luís Quintais, Canto Onde (Cotovia)
Pedro Rosa Mendes, Lenin Oil (Dom Quixote)
Pedro Tamen, Analogia e Dedos (Oceanos)
Rui Tavares, Pobre e Mal Agradecido (Tinta-da-china)

(listas publicadas no suplemento «6ª» do Diário de Notícias; a bold o meu favorito em cada categoria)

O Sublime Objecto da Ideologia

Salman Rushdie já não está sozinho no concurso beauty & the beast. Apresento-vos a esposa do filósofo esloveno Slavoj Žižek, a modelo argentina Analia Hounie.

Shade and honey



Laurel Canyon (2004), de Lisa Cholodenko, tem uma excelente cena de sexo (sem sexo) e uma banda sonora muito apreciável, da qual se destacam três temas escritos por Mark Linkous. Dois deles («Someday I Will Treat You Good» e «It’s a Wonderful Life») apareceram em álbums anteriores dos Sparklehorse. «Shade and Honey» (cantado no filme por Alessandro Nivola, acompanhado por Lou Barlow) surge agora em Dreamt for Light Years in the Belly of a Mountain. As canções de Linkous, geralmente alt.country surrealista nas imagens e melancólico na mundividência, tanto se inclinam para baladas magoadas ou atmosféricas como para guitarras distorcidas. «Shade and Honey» é uma canção incrivelmente terna, a voz frágil e granulada de Linkous tentando ser inocente no meio do seu inato pessimismo, numa «guerra civil de aplausos e sofrimento».

Há uns anos, Linkous tomou acidentalmente demasiados antidepressivos, desmaiou, ficou sem circulação sanguínea nas pernas e o seu coração parou durante 3 minutos.

E quem já esteve morto 3 minutos tem autoridade para escrever canções de amor.

Numerus clausus

Segundo o mesmo inquérito, os casamentos entre jovens que acabam em divórcio duram geralmente entre 1 e 4 anos. Eu há muito que defendo o numerus clausus.

A crueldade e a falsidade

«Os adolescentes são muito maus uns para os outros, são muito cruéis, criticam qualquer defeito que vejam no corpo dos outros», dizia uma adolescente numa reportagem recente sobre os comportamentos dos jovens portugueses. Na verdade, os adolescentes apenas dispensam a suave hipocrisia dos adultos. Os «defeitos» no corpo dos outros são coisas intrinsecamente cruéis, e os adultos não gostam que os considerem cruéis, apenas porque parece mal. Mas pensam exactamente o mesmo que os adolescentes sobre os «defeitos no corpo dos outros». Suponho que é por isso que tenho alguma estima pelos adultos cruéis, ou seja, aqueles que dizem exactamente o que pensam. A crueldade vale mais que a falsidade.

Agenda 2007

21.12.06

Sem janelas

As pessoas têm cheiros diferentes, fumam, usam perfumes, usam roupas estranhas, têm hábitos alimentares desagradáveis, são rudes, antipáticas, indisciplinadas.

Subscrevo inteiramente este desgosto manifestado por Natascha Kampusch, a rapariga austríaca que viveu oito anos raptada numa cela sem janelas. Reconheço que é uma concordância preocupante. Mas digo-vos: há muitas maneiras de viver numa cela sem janelas.

Dumb blondes (& brunettes)



ROGER: I could tell you that what you think of as your personality is nothing but a collection of Vanity Fair articles. I could tell you your choice of sexual partners this evening was decided months ago by some account executive at Young & Rubicam.

Campbell Scott em Roger Dodger (2002), de Dylan Kidd.

Diferenças irreconciliáveis

Acho muito curioso o eufemismo jurídico «diferenças irreconciliáveis» usado nos divórcios. Mas não é preciso embarcar num casamento para encontrar essas tais diferenças irreconciliáveis. Basta sermos exigentes. E depois sofrermos as (justíssimas) exigências alheias.

2006, sinopse

Marx tinha razão nalgumas coisas.
Nietzsche tinha razão em muitas coisas.
Darwin tinha razão em tudo.

20.12.06

Londres (6)

Este mês fui três vezes ao teatro, tantas como costumo num ano inteiro. Eu explico: isto não aconteceu em Lisboa mas em Londres.

A cultura dramática dos londrinos impressiona. O hábito normalíssimo de ir ao teatro, como nós vamos ao cinema. A quantidade e diversidade das escolhas: doze páginas de títulos na revista “Time Out”, entre musicais, comédia, clássicos, alternativos e novos autores.

Na primeira noite, no Gielgud Theatre (Piccadilly), vi a estreia teatral de Peter Morgan, autor com experiência televisiva e que recentemente escreveu o argumento do filme “The Queen”. A peça “Frost/Nixon” é uma reflexão sobre a política mediatizada (...)


Nas próximas duas semanas, na revista NS, aos sábados com o DN e o JN.

18.12.06

Uma nuvem negra cheia de chuva

A minha grande descoberta (tardia) deste ano: The Mountain Goats (obrigado Jorge Mourinha). Este vídeo amador completamente dessincronizado regista uma interpretação do tema «See America Right» do magnífico álbum Tallahassee (2002).



If we never make it back to California
I want you to know I love you
But my love is like a dark cloud full of rain
That's always right there up above you

Cinefilia

É deprimente ouvir alguém que «gosta imenso de cinema» e que só conhece filmes de anteontem, como se o cinema não tivesse cem anos. Gosto por isso dos exercícios de memória, não apenas os que aconselham os clássicos indispensáveis, mas sobretudo os que propõem reavaliações ou descobertas.

O Observer de ontem publicou uma lista com «50 clássicos esquecidos», muitos deles indisponíveis em DVD. A escolha colectiva foi capitaneada pelo veterano (e algo entediante) Philip French. O conceito de «clássico» é tão discutível como, nalguns casos, o conceito de «esquecido», mas a lista tem várias exumações curiosas (incluindo quase vinte filmes francamente obscuros) e algumas ressurreições inesperadas. Eis os cinquenta, por ordem cronológica:

The Front Page, Lewis Milestone, 1931

Ace In The Hole, Billy Wilder, 1951
The Narrow Margin, Richard Fleischer, 1952
Salt Of The Earth, Herbert Biberman, 1953
Ride Lonesome, Budd Boetticher, 1959

The Damned, Joseph Losey, 1961
The Day The Earth Caught Fire, Val Guest, 1961
Petulia, Richard Lester, 1968
The Swimmer, Frank Perry, 1968
Quiemada!, Gillo Pontecorvo, 1969

The Hired Hand, Peter Fonda, 1971
Let's Scare Jessica To Death, John D Hancock, 1971
A New Leaf, Elanie May, 1971
Two-Lane Blacktop, Monte Hellman, 1971
Fat City, John Huston, 1972
49 Jeremy, Arthur Barron, 1973
Robin Hood, Wolfgang Reitherman, 1973
Cockfighter, Monte Hellman, 1974
The Parallax View, Alan J Pakula, 1974
3 Women, Robert Altman, 1977
Bill Douglas Trilogy, Bill Douglas, 1972-78
I Wanna Hold Your Hand, Robert Zemeckis, 1978
Newsfront, Phillip Noyce, 1978
Le Petomane, Ian MacNaughton, 1979
Wise Blood, John Huston, 1979

Babylon, Franco Rosso, 1980
The Ninth Configuration, William Peter Blatty, 1980
Cutter's Way, Ivan Passer, 1981
Lianna, John Sayles, 1982
The State Of Things, Wim Wenders, 1982
Breathless, Jim McBride, 1983
Terence Davies Trilogy, Terence Davies, 1984
Top Secret!, Jim Abrahams, David and Jerry Zucker, 1984
Dreamchild, Gavin Millar, 1985
Round Midnight, Bertrand Tavernier, 1986
Housekeeping, Bill Forsyth, 1987
Less Than Zero, Marek Kanievska, 1987
The Mad Monkey, Fernando Trueba, 1989

Twin Peaks: Fire Walk With Me, David Lynch, 1992
Safe, Todd Haynes, 1995
Beautiful Girls, Ted Demme, 1996
Grace Of My Heart, Allison Anders, 1996
Tin Cup, Ron Shelton, 1996
Under The Skin, Carine Adler, 1997

Bamboozled, Spike Lee, 2000
The Low Down, Jamie Thraves, 2000
The Beaver Trilogy, Trent Harris, 2001
Save The Last Dance, Thomas Carter, 2001
Millions, Danny Boyle, 2004
Day Night Day Night, Julia Loktev, 2006


Destes 50, vi apenas 9 (The State Of Things, Breathless, Top Secret!, Terence Davies Trilogy, Round Midnight, Less Than Zero, Twin Peaks: Fire Walk With Me, Safe, Millions), 3 dos quais detestei (Breathless, Twin Peaks: Fire Walk With Me, Millions), o que é um mau sinal. Mas, pelas sinopses e comentários, fiquei interessadíssimo em ver pelo menos uns 30 desta lista.

É nestes momentos que me envergonho de passar fraudulentamente por «cinéfilo». Mas talvez ter muita vontade de ver estes filmes já seja um sinal de «cinefilia».

17.12.06

Londres (5)

Espantosa e elucidativa, a possibilidade de ver no mesmo dia e quase lado a lado duas exposições de retratos: Diego Velázquez (1599-1660) na National Gallery e David Hockney (1937) na National Portrait Gallery. Nos quatrocentos anos de diferença, vemos que quase tudo mudou, excepto uma estranha distância entre retratista e retratados.



Velázquez, nesta exposição cheia de gente, é mostrado essencialmente como pintor da corte, muito solene e hierático, de um classicismo perfeito e insuperável, mas com a audácia de fazer passar mensagens às vezes não muito oficiais (o desprezo em Góngora, o apocalipse em Felipe IV). É um pintor que capta o catolicismo severo, as poses cheias de gravitas e desastre iminente, um mestre que se revela em cada traço de um brinquedo de uma criança ou nas franjas de um vestido. São umas dezenas de quadros austeros, com aristocratas e freiras e generais, ao mesmo tempo cheios de vida e cheios de morte, mesmo nas cenas devotas (inquietantes) ou nas cenas mitológicas, vivíssimas nas suas metáforas. Acho que é dos clássicos mais inatacáveis que já vi ao vivo, um dos que não envelheceu porque não envelhece nem a técnica nem a verdade humana que vemos nos quadros. Como diz uma nota no guia da exposição, se Velázquez tivesse vivido mais anos, não se imagina como poderia aperfeiçoar o seu estilo. Ou, acrescento eu, a sua visão dos homens.



Hockney nasceu noutro mundo, um mundo hedonista e colorido, e os seus quadros e desenhos exibidos na National Portrait Gallery (o mais antigo é um auto-retrato aos 17 anos, os mais recentes são de 2005) são como que a estética pop feita retrato. Teimosamente representativo, Hockney retratou os pais, os amantes, os amigos, as celebridades, os visitantes do seu estúdio, e em vários momentos sentimos uma celebração da vida que é também uma paradoxal forma de distância. Com efeito, e salvo duas ou três excepções (os retratos do seu companheiro, Peter Schlesinger, uma série mais exaltada sobre o circuito gay americano ou o azulíssimo «Mum»), Hockney mantém um distanciamento quase «inglês» face aos seus modelos. Não apenas se percebem relações tensas entre os retratados (Henry Geldzahler e um homem de gabardina, num quadro de 1969, ou o famoso casal de Mr. and Mrs. Clark and Percy,1970-71), como a persistente noção de «colecção» revela um Hockney algo vampiresco, magnificamente lúcido e ambíguo, mas sem alegria, mesmo num universo cheio de corpos e cumplicidades.

Talvez as coisas não tenham mudado assim tanto em quatrocentos anos, mesmo que o mundo tenha mudado tanto.
A petição «Contra a implementação da experiência pedagógica TLEBS» pode ser subscrita aqui.

The art of driving

You're quite precautious
I know which button should be pressed
Let's go out driving
I'll wait until you pass the test
We can get a hood down
Throw away those learner plates
You got the hang of steering
Now try stepping on the brakes


(Black Box Recorder, «The Art of Driving», álbum The Facts of Life, 2000)

Londres (4)

Achei melhor não incomodar Thom Yorke, que ao meu lado, na Foyles, folheava calmamente uns álbuns de arte. Pedi um autógrafo a Clive James, na Waterstone's, e ele perguntou se eu não o queria traduzir para português.

Branca de Neve

Em Déjà Vu (Tony Scott, 2006), um acto de terrorismo é investigado com o auxílio de um programa chamado Snow White, um dispositivo de vigilância, ligado a satélites, que recupera imagens em tempo real dos últimos quatro dias. Imagens captadas de um determinado ângulo, mas que podem ser desmultiplicadas em vários outros ângulos, atravessando o espaço e os obstáculos físicos. O conceito central deste sistema é que se pode dobrar o tempo, e assim ter uma perspectiva mais rica e plural sobre as imagens do passado. Infelizmente, isso descamba num «hormhole» e em viagens no tempo, com as impossibilidades e os paradoxos do costume. É pena, porque o conceito de desmultiplicação de planos é especialmente fértil e inquietante. Já não é apenas termos a nossa vida vigiada pelas imagens captadas: é multiplicar digitalmente os pontos de vista dessas imagens, de modo que cada uma seja omnipotente na sua variedade de perspectivas. É um princípio cinematográfico (o da pluralidade dos pontos de vista) aplicado à videovigilância, embora no domínio da reconstituição virtual dos planos. E é a tese de que o passado são as imagens do passado, essas que, vistas agora, são uma forma estranha de presente. Mas o que eu gosto mais é o nome do sistema.

16.12.06

Charles Michael Kittridge Thompson IV

«(…) but it had been the Lord’s will to make him enormously unprepossessing physically (…)»

Um elegante eufemismo de John Mendelssohn sobre o senhor Charles Michael Kittridge Thompson IV (aka Frank Black); na biografia Gigantic (2004, Omnibus Press).

O ano da morte de José Matias

Estou cansado do José Matias. Da sua dedicação poética e casta, da sua coreografia à distância, da sua fidelidade patética, da sua impotência elíptica. Estou cansado. Acho que chegou o ano da morte de José Matias.

Londres (3)

You left
Your tired family grieving
And you think they're sad because you're leaving
But did you see Jealousy in the eyes
Of the ones who had to stay behind?
And do you think you've made
The right decision this time?


(The Smiths, «London»)

Londres (2)

Enquanto esperava, sentei-me num café em Leicester Square, agarrado a uma chávena grande de café que me devolveu a sensibilidade na ponta dos dedos adormecidos pelo frio. Em frente, adolescentes gritavam numa roda giganta que se despenhava controladamente na praça. Numa cidade estrangeira, no momento em que ficamos sozinhos, podemos simplesmente desaparecer. Meter por uma rua, virar uma esquina, ir embora sem dizer nada a ninguém. Pensei em escolher uma das ruas em que desembocavam em Leicester Square e ir andando sempre, até que a cidade me engolisse. Como se a vida, imaginei, não continuasse, pesada como sempre, noutro lado qualquer, longe do mundo e da gente conhecida.

Dostoievski

Alguém dizia que as pessoas que lêem Dostoievski são geralmente parecidas com Dostoievski.

15.12.06

Ilha deserta

Starlite Walker (1994)



The Natural Bridge (1996)



American Water (1998)



Bright Flight (2001)



Tanglewood Numbers (2005)

A realidade

Philip K. Dick tem uma definição definitiva de «realidade». Escreveu ele que a realidade são as coisas que não desaparecem quando deixamos de acreditar nelas. Leio e repito alto esta frase, uma e outra vez, com assombro e tristeza.

Londres (1)

As casas de Londres, tão aquecidas que podemos escrever confortavelmente ensaios sobre o entendimento humano. As ruas de Londres, tão movimentadas que quase provocam grandes esperanças.

11.12.06

Agradeço aos leitores do Geração Rasca que votaram no Estado Civil nas várias categorias, especialmente naquela em que venceu, «Blogue Individual Masculino» e especialmente por causa do «individual» e do «masculino».

7.12.06

O futuro



Give me back my broken night
my mirrored room, my secret life
it's lonely here,
there's no one left to torture
Give me absolute control
over every living soul
And lie beside me, baby,
that's an order!

Give me crack and anal sex
Take the only tree that's left
stuff it up the hole
in your culture
Give me back the Berlin wall
give me Stalin and St Paul
I've seen the future, brother:
it is murder.

Things are going to slide, slide in all directions
Won't be nothing
Nothing you can measure anymore
The blizzard, the blizzard of the world
has crossed the threshold
and it has overturned
the order of the soul
When they said REPENT REPENT
I wonder what they meant
When they said REPENT REPENT
I wonder what they meant
When they said REPENT REPENT
I wonder what they meant.

You don't know me from the wind
you never will, you never did
I was the little jew
who wrote the Bible
I've seen the nations rise and fall
I've heard their stories, heard them all
but love's the only engine of survival
Your servant here, he has been told
to say it clear, to say it cold:
It's over, it ain't going
any further
And now the wheels of heaven stop
you feel the devil's riding crop
Get ready for the future:
it is murder.

There'll be the breaking of the ancient
western code
Your private life will suddenly explode
There'll be phantoms
There'll be fires on the road
and a white man dancing
You'll see a woman
hanging upside down
her features covered by her fallen gown
and all the lousy little poets
coming round
tryin' to sound like Charlie Manson
and the white man dancin'.

Give me back the Berlin wall
Give me Stalin and St Paul
Give me Christ
or give me Hiroshima
Destroy another fetus now
We don't like children anyhow
I've seen the future, baby:
it is murder.

As testemunhas

Pascal escreveu que nunca devemos confiar numa história cujas testemunhas não tenham sido degoladas.

Afterimage

É como aquela reacção óptica que em inglês se chama «afterimage» (não sei se há termo português). Quando olhamos fixamente alguma coisa (digamos: uma lâmpada acesa) e depois fechamos os olhos, surge uma imagem ou um brilho no interior dos olhos fechados durante uns segundos. É o brilho da imagem que já perdemos.

34

«(...) porque até aos 33 anos podemos exigir (...)».

(Scolari, seleccionador nacional, sobre a renovação etária da equipa, DN, 1/10/2006)

1.12.06

Volto para casa