30.6.08

RE: «COMMON GROUND»

(...)

the words that flow so freely
falling dancing from your lips
I hope that you don't cheapen them
with a racist slip

oh Common Ground
is Common Ground a word or just a sound

(...)

or is it true
the Common Ground for me includes you too

(...)

or is it true
the Common Ground for me is without you
or is it true
there's no ground common enough for me and you




(peço desculpa ao senhor Reed por ter «despolitizado» uma canção sua para fins pessoais, mas, hey, «the personal is political»)

A caridade semântica

Depois, há também o «princípio da caridade semântica» de Davidson (ando com umas leituras estranhas). A «caridade semântica» supõe que aquilo que as outras pessoas nos dizem é racional e argumentado, para que possamos conviver (semanticamente, ao menos) de um modo argumentado e racional.

Ou então (e esta ideia não vem em Davidson), a «caridade semântica» também supõe que aquilo que as outras pessoas nos dizem nos diz respeito, e não é apenas uma coisa que as outras pessoas acham no seu íntimo para si mesmas. Mas dessa «caridade» não devemos esperar grande coisa.

Coisas com palavras

«Amo-te» é uma performativa?, pergunta o Ivan. Se uma «performativa» é uma enunciação que faz coisas e não apenas diz coisas, então «amo-te» é de facto uma performativa. Porquê? Porque «amo-te», como explicou Barthes, é uma tautologia. «Amo-te» não tem conteúdo nem admite paráfrase: «amo-te» é uma expressão que quer dizer «amo-te» e que comunica que eu te amo. Uma frase que depois tem um efeito na pessoa a quem se diz. É certo que «amo-te» pode ter efeitos imprevistos. Se alguém diz «amo-te» e a outra pessoa responde «preferia que não tivesses dito isso», que coisa é que foi feita? Talvez alguma coisa tenha sido feita. Talvez desfazer uma coisa já seja fazer alguma coisa.

Achievements



BRUCE WEBER: «Despite his musical achievements, did he disappoint you as a son?»

VERA BAKER: (silêncio) «Yes.» (silêncio) «But let’s not get into that».


(Let's Get Lost, 1988, documentário de Bruce Weber sobre Chet Baker)

28.6.08

Tudo o que sempre quis saber sobre cinema mas teve medo de perguntar a Lacan



25.6.08

Como fazer coisas com palavras



Numa evocação escrita para o volume colectivo «Essays on J.L. Austin» (1973), Isaiah Berlin recorda a «felicidade intelectual» que experimentou no convívio com o seu amigo. Céptico e combativo, Austin detestava falácias argumentativas e tudo o que soasse vago ou obscuro. Isso fazia das suas aulas e tertúlias um excitante despique. Berlin conta que Austin queria ter sido engenheiro ou arquitecto, tal o seu gosto por fazer coisas. Como foi filósofo, fez coisas com palavras. Coisas precisas, dissecadas, comprovadas. Embora não acompanhasse algumas ideias de Wittgenstein, Austin investigou o mesmo tema que o vienense: o sentido da linguagem através do seu uso. Quando descobri «How to Do Things with Words» achei logo que havia ali matéria teatral. Também no teatro as palavras dizem coisas e fazem coisas. E também no teatro essas coisas não são simplesmente «verdadeiras» ou «falsas». Daí nasceu o conceito deste espectáculo e o desafio ao Ricardo. «Como Fazer Coisas com Palavras» é um exercício cómico de felicidade intelectual.

Texto: John Austin
Dramaturgia: Ricardo Araújo Pereira e Pedro Mexia
Direcção de actores: Dinarte Branco
Cenografia e figurinos: António Jorge Gonçalves
Música original: Armando Teixeira
Desenho de luz: Thomas Walgrave
Interpretação: Ricardo Araújo Pereira
(com Patrícia Resende e Estêvão Antunes)
Co-produção: Teatro Municipal São Luiz / Produções Fictícias
Teatro São Luiz
De 27 de Junho a 5 de Julho
Terça a sábado às 22h

Trauer und Melancholie

Esta noite sonhei com ela. Ela aparecia no sonho como uma pessoa detestável pelas coisas que dizia e fazia. Aqui em casa, no entanto, o sonho não comanda a vida, que eu não deixo. O meu cérebro quer que eu a deteste para completar o «luto» (é um cérebro que leu Trauer und Melancholie em alemão e tudo), mas eu não admito poucas vergonhas dessas. Ela não é nem de longe detestável; a única personagem detestável neste episódio foi a minha estupidez. O cérebro que se habitue.

24.6.08

Como ser actor, por Sir Ian McKellen



(para o Ricardo)

Quase uma vitória

Acumulei derrotas políticas nos últimos anos. Gato escaldado, nos últimos meses tomei partido em pouquíssimas controvérsias. 1) Estive contra a ratificação do «Acordo Ortográfico». O «Acordo» foi ratificado. 2) Estive contra a ala «social-democrata» nas eleições internas do PSD. A ala «social-democrata» ganhou. 3) Estive contra o «Tratado de Lisboa». O referendo irlandês rejeitou o «Tratado».

E confesso que estou tão mal habituado que perder por 1 é quase uma vitória.

23.6.08

O caminho marítimo para a Índia



Não sei se Geoffrey Hill é o melhor poeta inglês vivo: é certamente o mais «distinguished» numa «linhagem Eliot».

Hill tem um universo de referências vastíssimo, da Antiguidade ao Holocausto, e os seus poemas são sempre sérios e densos, monólogos culturalistas e meditações eruditas sobre assuntos com maiúscula. É um poeta difícil, que exige notas e reader's guide.

Comprei a última colectânea de Hill, A Treatise of Civil Power (2005), e vi que na contracapa traz elogios do Times, do Telegraph, da Spectator e da New Criterion. Ou seja: de toda a direita decente. E fico a imaginar que país estranho e fantástico é a Inglaterra.

A nossa «direita» fugiria a sete pés de um poeta português que escrevesse como Hill. A nossa «direita» quer uma poesia «acessível», «que se entenda», e, já agora, que fale do «caminho marítimo para a Índia». É por isso que o poeta favorito da direita portuguesa é um socialista.

Classe (2)

Parafraseando Churchill: nas outras classes estão os meus adversários, na minha classe estão os meus inimigos.

Classe (1)

Defendo a «consciência de classe» mas não acredito na «opção de classe». Uma pessoa sem consciência de classe é como uma pessoa que não se preocupa com as palavras que diz. Um idiota. Já a «opção de classe» me parece uma fantasia ética, porque supõe voluntarismo onde ele é ineficaz. O marxismo fornece aliás abundantes exemplos de como a suposta «opção de classe» é um subproduto da «consciência de classe». Da má consciência, naturalmente.

Elogio da insolência


Lenny Bruce foi muito importante no seu tempo, mas depois de Lenny veio George Carlin (1937-2008). O seu niilismo não embarcava na simples catalinária improvisada: tudo estava sempre primorosamente escrito. Carlin era um anarquista daqueles «contra tudo», ou antes, contra tudo o que é canónico nos Estados Unidos (consumismo, cristianismo, patriotismo, puritanismo). Em politica, mordia e não largava. As suas piadas sexuais não apostavam na libido mas no tabu. Menos demencial que Bill Hicks, Carlin foi no entanto o comediante incómodo por natureza. O autor de «Seven Words You Can Never Say on Television» (sketch que deu prisão e processo) sabia que tudo é linguagem e por isso desmontava os usos perversos da linguagem, da «obscenidade» ao eufemismo. E depois despejava com ferocidade aqueles textos torrenciais, como se estivesse a chamar a atenção de um touro.

Elogio da preguiça



Li 3 dos 8 romances que Albert Cossery (1913-2008) escreveu: Les fainéants dans la vallée fertile (1948), Mendiants et orgueilleux (1955) e La violence et la dérision (1964), todos em edição portuguesa da Antígona. O escritor franco-egípcio era uma espécie de «anarquista elegante», cronista dos meios destituídos do Cairo ou dos dandies que são igualmente «proscritos» da sociedade. O seu estilo é de uma invejável limpidez. Em vez da estridência natural nos revoltados, Cossery cultivou o tom lúcido e irónico dos aristocratas. Inimigo da «produção» e do «consumo», deixou um elogio da preguiça que bate Lafargue aos pontos.

21.6.08

Grandes esperanças

1. «O melhor é não pensar», diz o comentador televisivo. Portugal estava em desvantagem 1-2 frente à Alemanha e o ímpeto necessário à reviravolta não aconselhava grandes meditações cartesianas O futebol está mais sofisticado (já tem os seus «professores» e «intelectuais»), mas ganhar em campo continua uma actividade primitiva. É, como dizia o outro, uma questão de «raça».

2. Temos suportado com estoicismo a histeria dos media e os vagidos dos moralistas. O gosto pelo jogo jogado transformou-se numa febre de «casos» e «transferências», com uma atenção doentia ao insignificante («Bosingwa gosta de agriões»). E como os pregadores acompanham sempre o pecado, lá temos os inevitáveis Torquemadas explicando que o futebol é inaceitavelmente «fútil» e que as massas vivem alienadas. Entre dois ópios, venha o diabo e escolha.

3. «Falta alma», diz o comentador televisivo. Agora Portugal estava em desvantagem 1-3. Postiga (cuja entrada tínhamos assobiado) cabeceou então para o 2 a 3 e concedeu um «suplemento de alma» à pátria. O futebol é composto de mudança, e estamos sempre à espera daquele «momento coreano» em que damos a volta ao resultado. Mas desta vez não aconteceu. Não havia tempo nem alma. A máquina alemã ganhou e ganhou bem. Temos o melhor jogador do mundo mas não temos a melhor equipa do mundo. O comentador garantia: «Portugal é melhor que a Alemanha». Mas, como diria um alemão chamado Nietzsche, o melhor é aquele que ganha.

4. Quando desanimámos (eles no campo e nós em casa), o comentador televisivo ditou: «Portugal está partido ao meio». E logo emenda: «Portugal não, a equipa portuguesa». Qual é a diferença? Portugal já não é «uno e indivisível». Agora já nos partimos ao meio como a outra gente. Portugal e a equipa portuguesa são uma e a mesma coisa: peões no mercado global, pequenos mas talentosos, jeitosos e desorganizados, vítimas de entusiasmos e injustiças. É por isso que nos excitamos ou ficamos tristes com o futebol: eles são o que nós somos. Talentosos e injustiçados. Favoritos e derrotados.

5. Havia «grandes esperanças». Desde que fomos campeões do mundo sub-21 (1991) que tem havido jogadores de excepção e grandes esperanças. Mas a selecção A nunca ganhou nada. Morremos na praia em Lisboa (Euro 2004), e que coisa mais portuguesa do que morrer na praia? A «era Scolari» trouxe autoridade e «patriotismo» mas poucas vezes jogámos bonito e tivemos sempre muitas cautelas. Nada mais português do que ter muitas cautelas. Perdemos com a Alemanha porque falhámos naquilo em que não podíamos falhar: nos livres. Eis a História de Portugal abreviada: não podemos falhar e falhamos.

6. É com um sentimento de injustiça que vemos fugir as «grandes esperanças». Mesmo que essa injustiça tinha sido justa. Nenhuma justiça devia destruir uma esperança.


(no Público de hoje)

19.6.08

O Capital (fictício)

Ele explica que quando o Banco de Inglaterra emite notas que não correspondem às suas reservas metálicas está a criar um capital fictício. Essas notas não são apenas um «meio de circulação» do valor já existente: são um lucro adicional.

Vem no Marx, filha, vem no Marx.

A minha costela marxista

A diferença de classe é, depois da anatomia, a mais nítida e actuante distinção entre as pessoas. E não há diferença sem conflito. Acreditar na luta de classes não é uma «ideologia»: a luta de classes é uma lei tão evidente e tão férrea como a lei da gravidade.

Falta um mês

18.6.08

História

Dos fracos não reza a História: é por isso que temos que escrever a História.

17.6.08

Românticos

O «romantismo» tem uma estranha conotação «feminina». Talvez noutros tempos isso fizesse sentido, por causa do gigantesco universo das leitoras de romances. Hoje, numa grande cidade, as mulheres são gélidas. Acima de determinada «classe social», nenhuma mulher se aventura em arroubos sentimentais. Em compensação, conheço dúzias de homens perdidamente românticos, miseráveis, fungantes, tremendistas, encostados à parede com Yeats e bebidas espirituosas.

Fiquei reconfortado quando encontrei a mesma experiência (com sotaque irlandês) em Monster (2004), espectáculo ao vivo do impagável Dylan Moran (Black Books):



«Não quero fazer grandes generalizações sobre as mulheres. Não estou aqui para isso. Acho de mau gosto. Só digo isto: elas não têm sentimentos.

Porque na verdade os homens é que são românticos. Os homens é que dizem coisas como:

"Conheci uma pessoa. Ela é fantástica. Se eu não fico com ela, estou fodido. Não aguento mais. A sério. Ela transformou completamente a minha vida. Tenho um emprego, uma casa; e tudo isso já não vale nada. Não aguento mais. Tenho que estar com ela. Porque senão acabo entrevado, alcoólico e com umas calças piolhosas. E nunca mais saio à rua".

Ora isto é o que as mulheres dizem sobre
sapatos».

16.6.08

A montra da joalharia

I see the night sky as a jewelry store window
And my mind is half a brick

(Smog, «Natural Decline», álbum Rain on Lens, 2001)

[e o que eu gosto daquele «half»]

O nevoeiro fotoquímico



Desta vez foi ainda mais forte, um Bill Callahan nada «alt.folk» e decididamente «rock», acompanhado por uma banda quase liceal e com pouquíssima gente no Santiago Alquimista. Se eu gosto tanto de guitarras é porque permitem a um sujeito imóvel e taciturno uma descarga de energia assim: ferida em «River Guard», febril em «Diamond Dancer», implacável em «Natural Decline», fatalista em «Rock Bottom Riser», tétrica em «Blood Red Bird», ríspida em «Cold Blooded Old Times», patética em «Bathysphere» e demencial em «Bloodflow». Dizem que ele agora está «feliz» mas (felizmente) não se notou.

Link

No post anterior, esqueci-me do link.

Querida darwiniana

Não, minha querida, o darwinismo não é uma lei cega. Ouve esta passagem:

“Não há dúvida de que (…) as mulheres, tal como os homens, admiram aqueles que são mais fortes que elas. Mas admirar uma pessoa mais forte e viver dominada por essa pessoa são duas coisas diferentes. Os fracos podem não ser adorados ou admirados; mas isso não significa que as pessoas não gostem deles ou que os evitem (…). Talvez [eles] falhem nas emergências; mas a vida não é uma emergência contínua: é uma sucessão de situações para as quais não é necessária uma força excepcional, e que mesmo as pessoas fracas conseguem aguentar se tiverem um parceiro forte que as ajude”.

Não é Darwin (nem Strindberg): é George Bernard Shaw. Eu pensava que ele era cínico, mas afinal cínica és tu, minha querida darwiniana.

Emily «Jacks» Jackson














Emily vive num mundo totalmente «masculino» (mesmo quando o masculino é «feminino»): ideias de homem, situações de homem, conselhos de homem, estratégias de homem, traumas de homem e gostos de homem. E ela tão escusadamente feminina no meio dos destroços.

O muro da vergonha

No último Chabrol há um óptimo diálogo entre cinquentões entesoados. Eles comentam que as raparigas hoje exibem tudo («o cu, as mamas, o umbigo») mas que erguem um «muro» que impede o acesso ao que exibem. Um dos cinquentões nota que essa estratégia do muro começou logo depois da queda do Muro de Berlim. Consequência ou coincidência? Aos sociólogos o que é dos sociólogos, aos entesoados aquilo que a eles pertence.

15.6.08

Verão



James Blunt e Petra Nemcova na praia (foto desactualizada)

A ninfa Eco

Leio num ensaio sobre a mitológica ninfa Eco: «nessa altura ela ainda tinha um corpo e não era, como agora, apenas uma voz». É a frase mais triste dos últimos meses: «nessa altura ela ainda tinha um corpo e não era, como agora, apenas uma voz».

Homem não assumido

Numa daquelas traduções selvagens que aparecem com frequência na legendagem portuguesa, vejo «unassuming man» traduzido como «homem não assumido». É sem dúvida ignorância («unassuming» significa «despretensioso» ou «modesto»), mas desta vez também me parece um achado. Usamos «assumido» ou «não assumido» quanto à «orientação»; mas faz igualmente sentido quanto ao «género». Talvez um «homem não assumido» seja aquele que tem o cromossoma Y e demais biologia mas que não evidencia socialmente as suas características «masculinas». Um homem que não seja «competitivo» ou «agressivo», digamos, é um homem «não assumido». As minhas amigas, no entanto, garantem-me que um homem assim não é homem coisa nenhuma.

14.6.08

Recebi um sms dizendo que eu tinha «enfurecido os trekkies»; de facto, a minha crónica de hoje do «Público» tem um lapso de que só dei conta quando a página estava fechada: o famoso «teletransporte» aparece em «Star Trek» e não, gulp, no «Espaço 1999». A vós, trekkies, as minhas desculpas.

Da democracia na Europa

Dizem que agora é preciso um «plano B». Como assim, um plano B? Este «Tratado de Lisboa» já era o plano B. Não se esqueçam que o plano A, a infame «Constituição», foi rejeitado por países que ninguém se atreve a deixar para trás. Talvez apareça então um «plano C» que consista precisamente em deixar para trás a velhaca Irlanda. Já sabemos que quem discorda das ideias eurobeatas merece «castigo». Eis a «Europa democrática» destas santas cabeças.

13.6.08

Campeões europeus

12.6.08

Gente moderna

O deposto rei do Nepal abandonou ontem o palácio de Katmandu. Termina assim a centenária monarquia nepalesa, que segundo os novos governantes era uma instituição «arcaica» e «tirânica». O fim da monarquia foi festejado em comícios onde flamejavam as efígies de Marx, Engels, Lenine, Estaline e Mao. Gente moderna e democratas convictos todos eles.

11.6.08

As notícias da minha morte



Faleceu ontem Pedro Mexia. Foi poeta, crítico, pioneiro daquilo que há umas décadas se chamou blogosfera, romancista (com um único romance) e desempenhou uma série de cargos institucionais, de subdirector, e depois director, da Cinemateca Portuguesa, a Ministro da Cultura. Após uma publicação inicial algo intensa de volumes de poesia, passou a ser um poeta bissexto, editando cada vez menos. As suas duas últimas colectâneas, espaçadas por 12 anos, bem como a reunião, muito desbastada, da sua obra poética, suscitaram um consenso crítico que a certa altura parecia ter desaparecido. O seu único romance, já tardio, uma vasta suma intitulada Só e mal acompanhado, foi amplamente premiado mas debatido com rara virulência: houve quem referisse Blanchot e Beckett, houve quem dissesse ser o mesmo de sempre, numa espécie de vasto blogue feito de pequenos e grandes nadas. Publicou dois volumes de crítica literária, o último dos quais em 2010, com o título Fogo Lento. Depois dessa data, que coincide com a extinção do último suplemento literário na imprensa portuguesa, deixou a actividade. É consensual que revolucionou a Cinemateca no período em que a dirigiu, mas ao preço, acusam muitos, de a ter aberto em excesso ao mainstream e de ter manifestado um profundo descaso por cineastas radicais da linha de Pedro Costa, o que lhe valeu um famoso abaixo-assinado de protesto contra «A segunda morte de Bénard da Costa». Como Ministro da Cultura distinguiu-se por não ter mudado o nome a nenhum dos institutos sob sua alçada e por ter continuado as boas práticas do seu antecessor directo, Rui Tavares. Como ele, queixou-se de falta de verbas para a Cultura. No cômputo geral, a sua obra escrita, muita dela produzida para os média, deixa uma impressão de dispersão por demasiados mundos, manifestando, segundo alguns, a incapacidade de Mexia para escrever uma obra ensaística de grande fôlego. Quando confrontado com semelhante acusação, Mexia concordou sempre com a crítica, lembrando porém a máxima de Borges segundo a qual «Esforço inútil é conceber vastas obras. Mais vale partir do princípio de que elas existem e escrever-lhes breves comentários». Católico não muito praticante, foi a partir de certa altura membro do Conselho Consultivo da Universidade Católica. «Morreu dentro da fé», garantiu o Cardeal Patriarca Tolentino de Mendonça, que o acompanhou nos últimos momentos, momentos em que, segundo fontes bem informadas, não nos deixou sem citar um dos seus autores de cabeceira, Machado de Assis: «Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria».

Correio da Manhã, 2/06/48

Osvaldo Manuel Silvestre


O Osvaldo Silvestre escreveu o meu obituário. É um método cómico quase infalível, que joga com as inevitáveis mudanças pessoais e com as probabilidades sociológicas. É também um exercício de estilo que exige lucidez e verve, atributos silvestres por excelência.

O obituário foi abundantemente citado na blogosfera, divertindo em igual medida os meus amigos e os meus inimigos. Eu cito-o porque fiquei impressionado com a dimensão previsível das «informações» contidas no texto.

Tirando uma ou outra provocação (MC) e uma ou outra nota optimista (2048), eu próprio imagino o resto tal qual: a «depuração» progressiva, a incapacidade para ir além do «fragmento», a aceitação das críticas e o remate machadiano.

Nem me parece uma «necrologia»: é uma biografia prematuramente concluída. O texto está datado de 2048 mas pode perfeitamente ser escrito em 2008 porque no fundo em 2008 já está escrito.

As notícias da minha morte não são exageradas.

7.6.08

Londres chama

Um post sobre futebol

A final do Campeonato da Europa de 1976 acabou empatada 2-2 (após prolongamento). Pela primeira vez, a decisão vai a penalties. Quando um jogador alemão finalmente falha, o jogo fica dependente de Antonín Panenka. Então, o checo engana o colossal Sepp Maier (que mergulha) e pica a bola suavemente para o meio da baliza.



Já se escreveu que foi um dos golos mais poéticos de sempre, uma beleza meio audaz meio irresponsável. É isso mesmo: meio irresponsável, meio audaz.

E pouco importa se isto é um post sobre futebol.

6.6.08

É provável

LAURA: Eu não queria que isto acontecesse. Nunca pensei que o resultado fosse este. Tinha um vago desejo de me livrar de ti (…) e se tu vês um plano nisso então talvez houvesse algum plano, mas eu não tinha consciência disso.

O CAPITÃO: É provável.

August Strindberg, Fadren / O Pai (1887)

Num certo sentido

Friedrich Dürrenmatt apreciava o humor negro. Quando viu A Dança dos Mortos (1900) de Strindberg, achou a peça cheia de «literatice» escusada mas muito apelativa como objecto sarcástico. Pegou então no texto do sueco e fez de uma «tragédia matrimonial burguesa» uma outra coisa: «a comédia de uma tragédia matrimonial burguesa». A Dança da Morte já é de algum modo uma variação sobre temas de O Pai (1887), mas Dürrenmatt foi muito mais longe: reduziu a peça ao osso, cortou personagens, estruturou as cenas em «assaltos» (como no boxe) e orientou tudo para a agressão doméstica sem remissão (quem tem medo de Edward Albee?). O capitão (escritor falhado) e a esposa (actriz falhada) não são apenas mais um casal fracassado: a ideia é que todas as relações conjugais são uma guerra sem tréguas. A peça (ludicamente intitulada Play Strindberg, 1969) é um jeu de massacre que aproveita o convencionalismo do teatro burguês e o arrasta pela lama do absurdo verbal à Ionesco. Nada de naturalismo ou intensidade dramática: as personagens declamam o texto, mantêm as suas máscaras clownescas, e todos os diálogos filosóficos são satirizados como simples filosofice. É por isso que todas as perguntas (como «acreditas em Deus?») vão tendo uma mesma resposta: «Num certo sentido».

[«Play Strindberg» está em cena na Casa de Teatro de Sintra, com encenação de João de Mello Alvim]

«afastamento de um objecto que [ele] procurava apertar contra o seu coração»



Imagem de Wavelenght (1967), de Michael Snow, zoom sobre a fotografia de umas ondas.

Contra o coração

O senhor doutor usa uma expressão kitsch que no entanto apresenta como definição técnica: «afastamento de um objecto que [ele] procurava apertar contra o seu coração».

A Questão Sexual

Quando surgiu a Questão Sexual, ela foi admirável. Depois ficou claro que ela foi admirável porque mentiu. Não que fosse essa a sua intenção: certamente gostava de ser «admirável», e fez como se fosse, aliás com bastante jeito. Mas a verdade é em si mesma pouco «admirável». E a Questão Sexual tem demasiada substância. Ela mentiu quase por necessidade estilística.



(Liz Phair, «Flower», Exile in Guyville, 1993)

5.6.08



Dia 9, segunda, no Santiago Alquimista, vou apresentar o novo álbum de Carla Bruni, Comme Si de Rien n'Etait, com a presença da cantora.

(OK, esta é mentira).


Sexta, dia 6, Agustina Bessa-Luís é homenageada pela Guimarães Editores. Intervenções de Manoel de Oliveira, João Bénard da Costa, Aniello Avella (titular da Cátedra de Cultura Portuguesa na Universidade Tor Vergata), Laura Bulger, moderação PM. Auditório da Feira do Livro de Lisboa, 18.30.

3.6.08



É já dia 5 a minha converseta sobre a escritora americana Flannery O’Connor (1925-1964), integrada no ciclo «Asas Sobre a América». Lisboa, auditório da Fundação Luso-Americana, 18.30.

1.6.08






















OS LIVROS ARDEM MAL: Amanhã, 2 de Junho, estarei em Coimbra como convidado da tertúlia mensal animada por António Apolinário Lourenço, Luís Quintais, Osvaldo Manuel Silvestre e Rui Bebiano. Às 18h, no Teatro Académico Gil Vicente.