1. «O melhor é não pensar», diz o comentador televisivo. Portugal estava em desvantagem 1-2 frente à Alemanha e o ímpeto necessário à reviravolta não aconselhava grandes meditações cartesianas O futebol está mais sofisticado (já tem os seus «professores» e «intelectuais»), mas ganhar em campo continua uma actividade primitiva. É, como dizia o outro, uma questão de «raça».
2. Temos suportado com estoicismo a histeria dos media e os vagidos dos moralistas. O gosto pelo jogo jogado transformou-se numa febre de «casos» e «transferências», com uma atenção doentia ao insignificante («Bosingwa gosta de agriões»). E como os pregadores acompanham sempre o pecado, lá temos os inevitáveis Torquemadas explicando que o futebol é inaceitavelmente «fútil» e que as massas vivem alienadas. Entre dois ópios, venha o diabo e escolha.
3. «Falta alma», diz o comentador televisivo. Agora Portugal estava em desvantagem 1-3. Postiga (cuja entrada tínhamos assobiado) cabeceou então para o 2 a 3 e concedeu um «suplemento de alma» à pátria. O futebol é composto de mudança, e estamos sempre à espera daquele «momento coreano» em que damos a volta ao resultado. Mas desta vez não aconteceu. Não havia tempo nem alma. A máquina alemã ganhou e ganhou bem. Temos o melhor jogador do mundo mas não temos a melhor equipa do mundo. O comentador garantia: «Portugal é melhor que a Alemanha». Mas, como diria um alemão chamado Nietzsche, o melhor é aquele que ganha.
4. Quando desanimámos (eles no campo e nós em casa), o comentador televisivo ditou: «Portugal está partido ao meio». E logo emenda: «Portugal não, a equipa portuguesa». Qual é a diferença? Portugal já não é «uno e indivisível». Agora já nos partimos ao meio como a outra gente. Portugal e a equipa portuguesa são uma e a mesma coisa: peões no mercado global, pequenos mas talentosos, jeitosos e desorganizados, vítimas de entusiasmos e injustiças. É por isso que nos excitamos ou ficamos tristes com o futebol: eles são o que nós somos. Talentosos e injustiçados. Favoritos e derrotados.
5. Havia «grandes esperanças». Desde que fomos campeões do mundo sub-21 (1991) que tem havido jogadores de excepção e grandes esperanças. Mas a selecção A nunca ganhou nada. Morremos na praia em Lisboa (Euro 2004), e que coisa mais portuguesa do que morrer na praia? A «era Scolari» trouxe autoridade e «patriotismo» mas poucas vezes jogámos bonito e tivemos sempre muitas cautelas. Nada mais português do que ter muitas cautelas. Perdemos com a Alemanha porque falhámos naquilo em que não podíamos falhar: nos livres. Eis a História de Portugal abreviada: não podemos falhar e falhamos.
6. É com um sentimento de injustiça que vemos fugir as «grandes esperanças». Mesmo que essa injustiça tinha sido justa. Nenhuma justiça devia destruir uma esperança.
(no
Público de hoje)