27.8.07

Homenagem a Sophie Calle

1) Vai aos mails que lhe mandas a ele. 2) Reencaminha esses mails para mim 3) com o meu nome em vez do nome dele.

O que não existe

Lacan tem aquela frase extraordinária que cito muitas vezes: «O amor é darmos uma coisa que não temos a alguém que não precisa dela». O mesmo Lacan também explicitou que amamos no outro precisamente aquilo que ele não tem. E o outro fica fascinado com esse objecto de fascínio que é aquilo que imaginamos nele. O que o outro deseja não é aquilo que lhe podemos dar, mas aquilo que imaginamos nele. E que de facto não existe.

26.8.07

L'argent



Ela visita o marido na prisão e diz: «acabámos sem nunca termos discutido».

(Christian Patey e Caroline Lang, em «L’Argent», 1983, de Robert Bresson)

Sete rosas mais tarde (2)

Gostava de acrescentar ao texto mais «jornalístico» do Público uma nota pessoal.

Eduardo Prado Coelho era um homem culto, inteligente e pessoalmente afável. Tirando umas picardias menores (ideológicas), escreveu um dos poucos textos atentos sobre a minha poesia (um elogio que me valeu acusações de «estar feito com a esquerda», vindas dos idiotas do costume). Embora fizesse questão de nos seus textos recordar sempre (mas sempre) as minhas ideias políticas, disse coisas simpáticas a meu respeito e tivemos alguns conversas e debates civilizados (o último foi sobre Sarkozy).

O EPC que me interessa é o crítico literário. Especialmente os textos da década de 80, depois das guerrilhas teóricas de 70 e antes do abaixamento da bitola estética dos últimos anos. Se EPC não tivesse escrito os ensaios contidos nos livros que já citei (A Mecânica dos Fluidos e A Noite do Mundo), não teria sido importante para mim.

Disse-lhe uma vez que discordava dele de segunda a sexta e concordava com ele ao sábado. Não era exacto: gostei de muitas de suas crónicas, embora discordasse sempre em matéria política; e estava longe de alguns dos seus gostos e pressupostos em literatura «hard» e em literatura «soft». Mas foi o crítico português que mais li, o que me chamou a atenção para mais autores e um dos que escreveu textos mais fascinantes sobre temas de «história das ideias».

Não gostava do EPC «mandarim». Não gostava de uma altivez de quem já leu os livros que nós nem conhecemos, não gostava do modo como desqualificava as pessoas dizendo «não sei quem é», não gostava das bençãos papais e dos anátemas que lançava, não gostei do tom de algumas polémicas (com Rui Knopfli, Eugénio Lisboa, António Guerreiro), não gostava da sua obsessão pela novidade, não gostava de algumas cedências mediáticas.

Além disso (peço desculpa aos panglossianos), não me identificava nada com a sua proclamada ausência de angústia, que não compreendo numa pessoa inteligente e num mundo pavoroso como este que temos.

Em literatura, o que conta é a obra. EPC não deixou uma obra original (quase tudo o que se refere às ideias foi mais antecipação e divulgação do que pensamento novo), mas deixou estudos importantes sobre os autores da segunda metade do século, sobretudo portugueses. Para mim, que gosto de literatura acima de tudo, isso tem mais interesse do que o seu percurso político errático ou os defeitos que advêm do «excesso» de influência ou de visibilidade.

Termino com uma nota cómica. Muitas vezes me compararam (mais por mal do que por bem) a EPC. Tenho os recortes e as citações. E muitas vezes me incentivaram (mais por bem do que por mal) a ser «anti-EPC» ou mesmo «o anti-EPC». Ignorei a comparação maldosa e o pedido insistente. Achava essas coisas patetas ou preguiçosas.

Não tenho a cultura de Prado Coelho. Não tenho a ambição de Prado Coelho. Os meus interesses são mais limitados, nunca pretendi fazer «carreira» em coisa nenhuma, não sou sociável como ele, não tenho estofo académico, etc, etc.

Além do mais, EPC era um «intelectual dominante», o último que tivemos. As mudanças culturais e mediáticas ocorridas nos últimos anos tornam impossível o surgimento de uma figura semelhante a ele.

Discordei de EPC. Concordei com EPC. Tive irritações com textos dele e conversas agradáveis com ele. Nunca foi um dos meus «mestres» nem uma das minhas «bêtes noires». Tinha respeito por ele. Lamento a sua morte precoce. E regresso aos seus textos sobre Sophia e Herberto, sobre Barthes e Rohmer, porque as miudezas políticas e pessoais não interessam ao futuro.

Sete rosas mais tarde (1)

Eduardo Prado Coelho foi o último crítico. O último com influência e prestígio, o último que desencadeava verdadeiros amores e ódios, o último conhecido mesmo por quem não lia os seus textos. Filho de um dos grandes ensaístas portugueses, escrevia na imprensa desde finais dos anos 60, desde os tempos da faculdade, em jornais cultos e combativos como o Diário de Lisboa.

Na última década e meia escreveu no Público, o cume da sua visibilidade como comentador de todas as realidades. Censuram-lhe muitas vezes essa voracidade do “nada que é humano me é estranho”; mas provavelmente era acima de tudo essa capacidade de risco (e de ridículo) que fazia dele um intelectual, ou seja, uma pessoa com uma imensa curiosidade pelo mundo.

Começou com textos de escrita complexa e áspera, recolhidos nos livros editados em início dos anos 70 (O Reino Flutuante e A Palavra sobre a Palavra), ainda com polémicas sobre cânones e correntes, as questiúnculas dentro do neo-realismo e o avanço do estruturalismo. A sua dupla condição de académico e de crítico impediu a habitual suspeição com que a universidade vê os textos jornalísticos. Em 1983, com Os Universos da Crítica, Prado Coelho deixou a sua única grande monografia, uma vez que se especializou em colectâneas de artigos.

Nos anos 80, encontrou o equilíbrio exacto entre densidade e acessibilidade, e foi aí que se revelou um ensaísta notável, nomeadamente em duas recolhas editadas pela Imprensa Nacional: A Mecânica dos Fluidos (1984) e A Noite do Mundo (1988). São textos sobre “literatura, cinema, teoria”, três das suas preocupações mais consequentes. Escreveu sobre “Blade Runner” e Amiel, sobre Rohmer e Ruy Belo, sobre Bruno Schulz e Blanchot. No livro de 84, apareceu um dos primeiros textos de fundo sobre o “pós-modernismo”, expressão que existia desde 1979 e que mais tarde ia cair na linguagem corrente. O mérito objectivo de Prado Coelho foi também esse: acompanhou e divulgou os grandes debates intelectuais das últimas décadas. Se havia uma sensação de excesso bibliográfico, de obsessão pela novidade, de resumos de badanas, também encontrávamos um genuíno entusiasmo pela discussão das ideias, um entusiasmo que manteve até ao fim, em livros como O Fio da Modernidade e Situações de Infinito (ambos de 2004). Ouvimos quase todos pela primeira vez o nome de autores importantes nos textos de Prado Coelho. E não apenas os estrangeiros: os leitores dos jornais descobriam igualmente autores nacionais brilhantes e complexos como Fernando Gil ou Miguel Tamen.

Prado Coelho escreveu duas dezenas de ensaios importantes sobre literatura portuguesa, essenciais em qualquer bibliografia secundária, como “Sophia, a lírica e a lógica”. E apadrinhou pessoas como Maria Gabriela Llansol, conseguindo transformar uma escritora hermética numa autora premiada. As colectâneas recentes como O Cálculo das Sombras (1997) e A Escala do Olhar (2003) mostram que continuou sempre um crítico bastante sistemático do panorama português, talvez o último, lendo demoradamente Herberto ou Gonçalo Tavares. Nunca escondeu o seu gosto por uma literatura “exigente”. Uma literatura que foi perdendo terreno na sociedade portuguesa e de que ele foi um dos últimos teóricos.

Conhecido essencialmente pelas suas polémicas (tinha o gosto jornalístico da polémica), Prado Coelho foi descobrindo cada vez mais o prazer da escrita, primeiro com os dois volumes dos diários (criticados por serem “excessivamente culturais”) e depois com a dificílima e oscilante prática da crónica diária, antologiada em Crónicas no Fio do Horizonte (2004). Descobriu o impacto que têm os temas “banais” e “mundanos”. Continuava com alguns traços do intelectual aguerrido, capaz de frases assassinas e sobranceiras, pontificações pontifícias e um sarcasmo escondido pela bonomia. Mas também começou a dar voz a pequenas irritações e pequenos prazeres, das repartições públicas aos pastéis de nata. Na literatura, foi-se aproximando mais da crónica (elogiosa) e afastando-se da crítica, atitude que decepcionou alguns seus leitores antigos. Sempre enfrentou imensa animosidade, sendo habitualmente retratado como um intelectual estrangeirado, vácuo, um carreirista político e um promotor dos seus amigos lisboetas. Mas ele, que dizia não ter “vida interior”, vibrava com a exterioridade dessa vida combativa e com o prazer da afirmação dos seus prazeres.

Nunca deixou de publicar: em 2004 editou livros de crítica literária, de crónica, de teoria, de textos sobre artes plásticas. Depois de um hiato por doença grave, regressou recentemente às crónicas diárias. E ainda anteontem apareceu na redacção do Público, anunciando o título da sua nova coluna literária, que não chegou a estrear. Tinha um título inspirado em Celan: Sete Rosas Mais Tarde.

(Público, 26 de Agosto)

25.8.07

O que é que anda a ler

Beckett mode

B. diz que eu estou em «Beckett mode». Ou seja, que aceitei a apatia e a inacção como estética, coisa que ela considera uma herança negativa do modernismo. É possível: Beckett é um dos meus autores. Há no entanto uma ironia nessa inacção que me agrada. Aquela atitude de Vladimir e Estragon do «vamos» («não se mexem»). É também isso que eu gosto no modernismo: o sintoma e o diagnóstico simultâneos. B. acha isso exasperante. Eu, mais pessimista e mais envelhecido, acho divertido.

A câmara clara (2)

Fico sempre pessimamente nas fotografias. O material é fraco, e os fotógrafos não se esforçam nem um bocadinho. Em geral, as pessoas têm uma ou duas fotografias um bocadinho melhores do que elas são na realidade, fotos que usam em badanas de livros ou em sites ou seja onde for. Eu não tenho tido essa abébia. As minhas fotos são tão más como o fotografado. O que significa que muita gente me reconhece pelas imagens, uma coisa uma nadinha desagradável.

Assim que alguém me tirou uma fotografia aceitável, ficou logo a foto «oficial», para ser usada em casos em que é mesmo indispensável uma foto (e em mais nenhuns). Não é uma foto boa, mas (como me dizem) pareço eu, o que imagino que seja um elogio (e daí não sei). Os meus agradecimentos ao Jorge Simão, do Expresso.

A câmara clara (1)

Durante demasiado tempo, a foto minha que aparecia no Público (uma vez por ano) era sempre a mesma: um grande plano meio esquinado, comigo esgalgado, zombie, com uma barba tétrica e com dezassete vezes mais olheiras. A foto foi tirada antes do lançamento de um livro, em 2000, imediatamente depois de uma discussão com a minha namorada. Eu, que odeio discussões, estou ainda com os traços do conflito no rosto. E sempre que vejo essa foto, é nessa circunstância que penso. Mas há quem diga que nessa fotografia eu pareço «masculino». Eu acho que pareço jagunço. Mas reconheço que para as maioria das pessoas «masculino» quer dizer «jagunço».

24.8.07

Vem na Agustina

Vem na Agustina: «(...) sondando o incurável das nossas relações em que o amor perdia sempre. Perdia para dar lugar ao ressentimento e à aversão; para deixar lugar à cólera e à tristeza». Itálico meu.

This is hardcore



O mais fascinante no álbum This Is Hardcore (1998) é que é uma vingança do sucesso. Que alguém se vingue do fracasso, isso nada tem de incomum; mas para os Pulp a vingança do fracasso (que durou entre 1978 e1995) foi o sucesso. E o sucesso chamou-se Different Class (1995), zénite do cinismo social com «kitsch Eurovisão. This is Hardocore é um disco da ressaca. Não apenas a ressaca da festa, mas a ressaca da ideia estúpida do «sucesso». Aquilo que se procurou durante anos afinal não é nada. Não vale nada. Jarvis Cocker usa como imagem o comércio sexual; ele não quer ser «malicioso», ou outra parvoíce dessas: ele quer ser cruel consigo mesmo. Um álbum que abre com um tema chamado «The Fear» não veio para brincalhotices.

This is Hardcore é um álbum cheio de medo e escuridão, mesmo quando é dançável numa matiné de subúrbio. É um álbum cheio de misantropia e decadência e nojo. Se os nossos sonhos de felicidade são tantas vezes sexuais, ou usam a sexualidade como metáfora, então Jarvis dá-nos o lado nauseabundo da sexualidade. Este é um disco que acolhe «homens com gabardinas manchadas»; mas tudo aqui está machado, até os pianos e as cordas e os versos. O teatro sexual grotesco da pornografia (que também está em todas as fotos do disco) é a imagem exacta de tudo o que é grotesco, começando pelo «sucesso».

A «hardcore life» que a canção-título «celebra» é a vida dos desejos que são amargos quando concretizados, as fantasias que perdem todo o gosto quando tornadas reais. «This is hardcore / this is me on top of you & / I cant believe that it took me this long», canta Jarvis, como um adolescente que quis perder a inocência mas não ganhou nada com isso. É por isso que This Is Hardcore é um massacre. O som de alguém que se vinga do sucesso.

A misoginia

Atacar uma mulher é que é misoginia. Atacar todas as mulheres pode ser apenas uma constatação.

23.8.07

Organismos

Não tenho nada contra os «organismos geneticamente modificados». Eu próprio gostava de ter um.

O falso culpado



The Wrong Man (1956) é um dos filmes mais católicos de Hitchcock, talvez aquele que tem mais referências religiosas depois de I Confess (1953). É um espantoso exercício moral com artíficios reduzidos e soluções muito engenhosas (as cenas na cela).

No entanto, há qualquer coisa que não me agrada completamente no filme. Ballestreros, o músico de jazz interpretado por Henry Fonda, é confundido com outro homem e acusado de um crime que não cometeu. E se Fonda dá com grande intensidade o sofrimento quietista do «falso culpado» (título do filme em português), confesso que sinto falta de uma perversidadezinha adicional.

Seria interessante que Ballestretos fosse inocente dos crimes de que o acusam mas fosse culpado de outra coisa. De alguma coisa que não fosse crime e que ninguém descobrisse.

Seria interessante se o falso culpado fosse um marido infiel.

Cenas da vida conjugal

Alguns jornais americanos têm o hábito de terminar as críticas de cinema com alguns avisos por causa da moral. Mas nunca tinha lido nenhuma advertência como esta do San Francisco Chronicle a propósito do segundo Hostel: diz o jornal que o filme inclui «adult language, decapitations, drug use, eviscerations, gore, involuntary castration, massive head wounds, massive leg wounds, massive torso wounds, more gore, nudity, sexual content, severe beat-downs, torture and other assorted violence». Ou seja: cenas da vida conjugal.

Os recortes

Ian McEwan, numa entrevista, sobre o seu divórcio: «I mean, I've had fantastic unhappiness in my private life, as the clippings will tell you».

Da infidelidade (4)

A Igreja é (mais ou menos) amiga. «Adultério», para a Santa Madre, é apenas o coito vaginal. Acontece, senhores canonistas, que coitos há muitos. E mesmo os que não matam, moem como o caraças.

Da infidelidade (3)

OK, a novidade sexual é excitante; mas se o adúltero faz do adultério um hábito, o próprio adultério se torna uma simples rotina. Rotina por rotina, o casamento dá menos chatices.

Da infidelidade (2)

Os clichés costumam ser «reaccionários». Mas há imensos clichés «progressistas», sobretudo no domínio dos costumes. Um dos mais insuportáveis é este: «Não gosto da expressão "fidelidade"; fiéis são os cães; eu exijo é honestidade». Sujeito que diz isto está catalogado: é um machista progressista (também conhecido como «machista-leninista»). A honestidade é uma virtude adjectiva e não substantiva. Um canalha honesto continua um canalha. A «fidelidade» pode ter significado coisas nada agradáveis (como a submissão da esposa ao marido, etc), mas tem um núcleo positivo indiscutível. A honestidade, em si mesma, é apenas uma desculpa. E as desculpas são formas de desonestidade.

Da infidelidade (1)

Agosto, moglie mia non ti conosco (provérbio italiano).

22.8.07

Os humilhados















Os humilhados serão exaltados. Vem na Bíblia. Os humilhados terão a sua vingança. Digo eu.

Cavalheiros

Talvez, como sugeriu Hawks, os cavalheiros prefiram as louras. Mas, como comentou Anthony Burgess, será que as «louras» preferem «cavalheiros»?

Death Proof (2), the dateless wonder



Camilo escreveu uma novela chamada O Que Fazem Mulheres. Em Death Proof, Tarantino escreveu o seu «o que dizem mulheres». A atenção à lógica e às inflexões das conversas femininas revela um homem fascinado e atento e nunca um misógino (um misógino não teria filmado Jackie Brown). Vale a pena comprar o guião de Death Proof, para poder recordar os diálogos, incluindo vários que foram cortados no produto final (divagações sobre broches & programas de tv e outros mimos), bem como as didascálias adolescentes mas exactas de Tarantino. O meu diálogo cortado favorito é o «dateless wonder».


ARLENE: Oh, you’re stuck with a dateless wonder.

PAM: I like the sound of that. What’s that?

ARLENE: A dateless wonder is a guy who thinks about girls a lot but doesn’t have much social skills. So he doesn’t go out a lot. But he’s not like his geeky friends, or his fat friends, or his confused sexuality friends, he goes out…every once in a while. Every once in a while he gets the balls to ask a girl out. Now dateless wonders usually make it a point to ask girls out of their league. Since thy don’t expect to get the date anyway, why not aim high. And every once in a while, they get their shit together long enough to get a pretty girl to say yes. And you’re that pretty girl.

Death Proof (2)

O que verdadeiramente me encanita na recepção crítica a Tarantino é a ideia do «vazio». Alguém diz que ele não sabe filmar? Ninguém. Alguém diz que ele não sabe dirigir actores? Não se atrevem. Alguém diz que ele escreve mal? Nada disso. Apenas se queixam que ele regurgita fórmulas das séries B a Z, destila «guilty pleasures», se compraz na violência. E, pecado dos pecados, afocinha no «vazio». Como se o «vazio» não fosse um dado cultural (e filosófico) tão importante como a «incomunicabilidade», a «angústia metafísica» ou a «transferência de culpa», para refereir três exemplos clássicos. E, sobretudo, como se as considerações morais fossem pertinentes na actividade crítica. Não por acaso, quase todos os anti-Tarantino são soissante-huitards. Talvez tenham estado um dia «cheios» de mais e agora se sintam eles mesmos vazios.

Acrílico

whilst children play outside
and wait for their mothers to finish with lovers


(Pulp, »Acrylic afternoons»)

O segundo casamento

Conheço imensos primeiros casamentos miseráveis, uns ainda vigentes e outros que deram em divórcio. Mas não conheço um único segundo casamento mau (embora acredite que haja). A verdade é que estatisticamente o 2º casamento é o mais sólido de todos. A minha questão é esta: porque é que as pessoas não dispensam simplesmente o 1ª casamento e começam logo pelo 2º?

Tagarelas

Lumiares fornicava com a distância do que é humano; Pedro Dossém, com as suas manias aristocráticas; enfim, Osório, com as gatas dos congressos e as assistentes sexuais dos hotéis, sem mais tempo do que fazer gemer a cama e não as mulheres. Eram tagarelas e mais nada.

(Agustina Bessa-Luís, Vale Abraão, 1991)

Bovarinhos

Há burgueses tão oitocentistas que parece que casam apenas para poderem cometer adultério.

A entrevista sociológica

As «traições» são mais comuns no Verão, o que é aliás mais que visível a olho nu. Pergunto a C. como é que ela se mantém fiel ao namorado no Verão. Acho que ela entendeu a pergunta como um convite. É o problema das entrevistas sociológicas.

21.8.07

Yet



It happened. It just hasn't happened yet.

Philip K Dick

Tábua cronológica

No biénio 2006/2007 «tomou decisões».

Laos

(…) girls you secretly like but can’t get at ‘cause they’re dating somebody, maybe a friend, and so you file’em away and hope the guy joins the army and gets sent to laos or something

Neil LaBute, «a gaggle of saints, in bash (1999)

Jews for Jesus

Se existe uma agremiação chamada Jews for Jesus, porque não uma outra intitulada Losers for Nietzsche? É uma associação urgente. Eu venero cada linha de Nietzsche, mas estou sempre do lado que ele despreza: do lado cristão, compassivo, fraco, derrotado ou, como ele dizia, «feminino». Eis então um desafio: seguirmos grandes ideias que levam ao nosso extermínio. Contem comigo.

20.8.07

Vai e vem

O avião é como prata
que leva os dois
ao México debaixo do sol

em direcção ao divórcio.
Desembarcam e logo implicam
em coisas pequenas: Ela

quer divorciar-se
de manhã, fresca,
mas ele diz esquece essa treta da

manhã, quero que seja já.
Seu merdas, gostas mesmo que me rebaixe,
diz ela, meu Deus

como quero este divórcio. Ele diz óptimo,
vais ter o que queres: e é já.
Ela responde que gostava de esperar até

de manhã. E continuam assim.
Os dois desbastam o ódio
até que fique como uma estrela reduzida

às dimensões de uma jóia.
O aeroporto está calmo. A vassoura
do homem da limpeza murmura no chão,

o dia fala com a noite,
dizendo o que o oceano diz
à terra, o que o sangue diz agora

ao coração, que se contém
mas vai e vem.



(Denis Johnson, «The Two», do livro Inner Weather, 1976, trad. PM).

Johnson é o autor de Jesus’ Son (1992), adaptado ao cinema com uma magnífica interpretação de Billy Crudup.

Dedicado aos leitores do EC que se já se viram desbastados de estrela a jóia.

34

Já tinha mais que idade para estar divorciado.

A pergunta que se impõe

Um leitor do Brasil pergunta se eu gosto de «mulheres problemáticas».

19.8.07

Querias mais nada



Mary McCarthy (1912-1989), romancista e crítica americana

Qual?

No mesmo dia em que revi um dos meus filmes favoritos (Le Genou de Claire, Eric Rohmer, 1970) apanhei na TV5 uma entrevista a Fabrice Luchini, então um adolescente e agora um senhor de meia idade com aspecto juvenil. A entrevista foi uma sessão de charme contínua. Mas por uma vez isso não deu em parvoíce. Como o actor é discreto acerca da sua vida pessoal, a entrevistadora tentou descobrir coisas íntimas. E ele entrou no jogo à grande: falou da relação umbilical com a mãe, dos bordéis que frequentava, do mau pai que foi e hoje já não é. Mas falou sobretudo da sua recusa do casamento. Ou mesmo da recusa da ideia de casal. Ele não gosta da necessidade que os casais têm de mostrar que são um casal, usando plurais na conversa ou presumindo a opinião um do outro. Luchini acha o casal uma coisa demonstrativa, feita para os outros, quando as relações lhe interessam para si mesmo. Além do mais, diz, não lhe agrada a noção de conjugalidade. Diz que felizmente nunca teve que ir «comprar pão». E tem uma frase genial sobre o casamento: «no casamento os dois são um: mas qual?».

Dialéctica

When it comes to girls, I’m mostly hypothetical
If I list their names, it’s purely alphabetical
When it comes to girls, I’m truly theoretical
If I test their nerves, it’s merely dialectical

Maximo Park

Elodie

Elodie fugiu com os elogios e na manhã seguinte trocou de camisa com a irmã.

12.8.07

Três elegias e um elogio



Morreram exactamente no mesmo dia, em 2007. E nesse fim de Julho morreu também «uma certa ideia de cinema». Ingmar Bergman, sueco de Uppsala, nascido em 1918. Michelangelo Antonioni, italiano de Ferrara, nascido em 1912.

Bergman é um dos meus cineastas de cabeceira. Antonioni suscita mais admiração intelectual que adesão emocional. Mas são ambos autores importantes ma minha memória cinéfila.

Bergman é o teatro. O miúdo que leu o Strindberg todo na adolescência (uma brutalidade inimaginável) fez todo o seu mundo no teatro: encenou peças, casou com actrizes, cultivou os seus actores fetiche, escreveu argumentos sobre meios teatrais. É um cineasta da palavra.

Antonioni é um cineasta da imagem. O que acima de tudo retemos dos seus filmes são avenidas largas, ilhas desertas, postes de electricidade, gruas. É um cinema visual, um cinema de arquitectura, que ao tempo (à palavra) sempre preferiu o espaço (a distância).

Bergman era um nórdico típico, nascido antes do aborrecimento social-democrata. Educado na austeridade e na desumanidade luteranas, sempre se interessou pela intimidade. Os seus temas são por excelência temas «sérios» (como julgo que já não se diz). O sexo (Um Verão de Amor, 1950; Mónica e o Desejo, 1954; Sorrisos de Uma Noite de Verão, 1955). A família e o casamento (Morangos Silvestres, 1957; Lágrimas e Suspiros, 1972; Cenas da Vida Conjugal, 1973; Sonata de Outono, 1978; Fanny e Alexandre, 1982). A morte (acima de todos O Sétimo Selo, 1957). E, naturalmente, a metafísica, na sua trilogia sobre o silêncio de Deus (Como Num Espelho, 1961; Luz de Inverno, 1961; O Silêncio, 1963), todos eles com um invulgaríssimo agnoticismo inquieto.

Antonioni era um italiano atípico e um intelectual típico. Foi o cronista da burguesia gélida e alienada. Dizem que inventou um cliché – a «incomunicabilidade» – mas é um dos clichés mais verdadeiros que conheço. É verdade que Antonioni não escapou aos modismos e a algumas derivas simbólicas. Mas a sua desolação ainda nos afecta: o desaprecimento em A Aventura (1960), o enfado literato em A Noite (1961) ou o final mudo de O Eclipse (1962). E ninguém para quem o cinema seja importante esquece as diversas figurações da ilusão em Blow Up (1966), especialmente a fictícia partida de ténis.

Bergman foi um autor da gravidade. O grande plano sobre o rosto humano atingiu a perfeição quase insustentável em Persona (1966). Antonioni preferia uma certa indicibilidade. O crítico do Corriere della Sera, Tullio Kezich, conta que em finais dos anos cinquenta o produtor Dino de Laurentiis quis trabalhar com Antonioni. Este apresentou a seguinte sinopse: um grupo de amigos vai para uma ilha e uma rapariga desaparece. Laurentiis perguntou: e o que é que lhe aconteceu? Antonioni: «A quem, à rapariga? Não sei». Talvez fosse essa a grande diferença: Bergman tinha dúvidas, Antonioni não sabia.

Ambos amavam as mulheres. Nunca fui especialmente sensível à musa de Antonioni, a beldade anémica e existencialista Monica Vitti. Mas acho curioso que depois de ter perdido a mobilidade e a fala, em 1985, Antonioni tenha colaborado em dois filmes com grande carga erótica. Talvez perseguindo ainda (é um título seu) o perigoso fio das coisas.

As mulheres de Bergman (suas actrizes e companheiras) são a galeria mais inesquecível da história do cinema, juntamente com as louras frígidas de Hitchcock. A mais memorável talvez seja Liv Ullmann. Mas há também a androginia de Bibi Andersson. A maturidade deslumbrante e magoada de Ingrid Thulin. E Monica (Harriet Andersson), a imagem mesma do desejo, a boca carnuda, os olhos decididos, o pescoço e os ombros molhados.

Retirado há anos numa ilha ao largo da Suécia, Bergman ameaçou várias vezes deixar o cinema. Mas o miúdo quem tinham dado uma fascinante lanterna mágica (como conta na sua autobiografia), só nos deixou com o magnífico Saraband (2003), prova de que todos os temas continuam vivos na velhice, ou seja, na mortalidade. Sobre Antonioni, recordo agora uma belíssima frase, salvo erro de Fellini: «É o unico de nós que merece chamar-se Miguel Ângelo«.

(Público, 4 de Agosto)



Lee Hazlewood (1929-2007) era «kitsch» e brilhante, coisa que não acontece com muita frequência. Ele foi um daqueles produtores que são igualmente criadores, um Phil Spector que em vez de cabelo ridículo tinha um bigode retro, bem de acordo com a sua masculinidade um pouco fora de moda. Felizmente, Hazlewood estava-se nas tintas para a moda, para o mundo da música e (de certo modo) para o que pensavam dele. Começou por produzir putos rock’n’roll e depois tornou a pacata Nancy Sinatra numa cabra estilosa («canta como uma miúda de 16 anos que fode camionistas», foi a sua instrução à diva oxigenada). Se existem «clássicos», então «These Boots Are Made for Walkin» e «Some Velvet Morning» merecem essa designação.

Descobri Hazlewood porque ele fez em 1970 um álbum chamado Cowboy in Sweden (título que eu gostava para a minha autobiografia) e por causa de Requiem for an Almost Lady (1971), um «break-up album» magnífico, sem medo do sentimentalismo e da piroseira (introduções faladas e tudo) e com uma pontinha de ironia e vingança. A Hazlewood devemos a cunhagem de uma particular variante do «country pop» (sofisticado e pires, por oposição ao «country rock», supostamente genuíno e e genuinamente grunho). E também lhe devemos essa dança com o «kitsch» que lhe valeu a admiração de putos como Jarvis Cocker, que muito contribuiram para a sua ressureição («Thank God for kids that love obscure things», confessou). Crooner da série B, como lhe têm chamado, o barítono Hazlewood tinha talento melódico e orquestral, e escrevia uma letras «no-nonsense» mas por vezes bastante bizarras. A sua despedida, com Cake or Death, no final do ano passado, foi um espécie de chamada ao palco com todos os artistas, incluindo «covers» dos seus clássicos e um dueto com a neta.

Lee Hazlewood foi um homem que gozou a vida e que gozou com a vida. Bless him.



Entre muitas, três características fazem o génio e o fascínio de Agustina.

Desde logo, a improvável aliança entre os universos de Camilo e de Musil. Histórias nortenhas com ancestralidade, velhas casarões, matriarcado e pundunores desagravados (mas sem melodrama nem domésticas como leitoras). E digressões ensaísticas, agudas farpas sociais e finíssimas análises de carácter. Em Agustina, o narrador é Agustina, uma força da natureza, tão perspicaz como implacável, e que não discute nunca a sua autonomia.

Depois, Agustina inventa uma classe social, uma alta burguesia meditativa, uma aristocracia aforística, que tem e teve sempre pouca correspondência na vida real. É um Lampedusa mais selvagem que imagina as suas personagens demasiado inteligentes para conviverem com outras pessoas, demasiado cruéis para gostarmos delas, demasiado sexuais para serem confiáveis. Não há naturalismo nos seus romances, mas um realismo algo mental e tão concreto como a inveja ou o desprezo.

Finalmente, Agustina disseca aquilo a que se chamava antigamente a “alma humana” (antes desses bisturis que a procuravam sem jeito nenhum). É um freudismo com prática clínica e tudo. Agustina gosta de provocações, mesmo as subtis. E nunca procura agradar. A sua máxima é o máximo de boas maneiras e o mínimo de lisonja. Nenhuma verdade é amável, e mesmo a “verdade” não é alicerce que se recomende. A angústia é em Agustina uma forma de alegria porque, como escreveu, sem imperfeições não existe beleza.

(Visão, 9 de Agosto)