Não é impunemente que alguém intitula um dos seus livros
Advertisements for Myself. Nessa colectânea de artigos, ensaios e provocações publicada em 1959, e que inclui o manifesto existencialista marginal «The White Negro», Norman Mailer estabeleceu a sua figura pública: judeu e esquerdista, machão e egotista, sempre contra o sistema e sempre a favor da notoriedade. Mailer, aliás, foi uma celebridade logo aos 25 anos, com um romance,
The Naked and the Dead (1948), que retratava a sua experiência de guerra com grande brutalidade descritiva e verbal Os romances seguintes não teriam a mesma aceitação da crítica, mas entretanto nasceu um dos mais idiossincráticos jornalistas individualistas. O aguerrido Mailer escreveu em jornais e revistas textos sobre temas políticos e pessoais, depois recolhidos em vários volumes. O seu fascínio ambíguo pelos Kennedy deu
The Presidential Papers (1963); os ataques ao meio literário, entre outras zangas, apareceram em
Cannibals and Christians (1966); e houve ao longo das décadas ensaios sobre tourada, a ida à lua e o boxe, bem como perfis de Marilyn ou Picasso.
Impacto notório teve uma espécie de trilogia da Nova Esquerda americana:
Why Are We in Vietnam? (1967), alegoria contra a guerra;
The Armies of the Night (1968), relato da marcha sobre o Pentágono; e
Miami and the Siege of Chicago (1968), sobre a tumultuosa Convenção Democrata. Os dois últimos são momentos altos do jornalismo combativo, com Mailer actor e retratista dos anos de chumbo da política americana. No
New York Times de ontem, Michiko Kakutani escreveu que Mailer tinha «um olho rápido e aguçado; um talento para as aparições fugazes; um radar de morcego para atmosferas e ambientes; e uma prosa tempestuosa e belicosa». Escrevendo sobre si mesmo na terceira pessoa («Mailer»), ele descrevia os estudantes que protestavam e eram presos mas também os seus próprios protestos e detenções. Nunca se punha de fora daquilo que escrevia. Um estilo próximo do «New Journalism» de Tom Wolfe, mas notoriamente menos patrício e mais misturado com o pó e cascalho das ruas.
The Armies of the Night, em especial, cujo subtítulo é
History as Novel, The Novel as History, inventa uma «ficção não-ficcional» que se alimenta dos factos jornalísticos mas que constrói um texto literário. Para Mailer, esses livros eram «romances» porque «observavam o observador». Ou seja: ele mesmo.
Depois de uma candidatura fracassada à câmara de Nova Iorque (1969), Mailer continuou a vir a terreiro para os mais diversos confrontos. Combateu as feministas que o achavam um ogre misógino (
The Prisoner of Sex, 1971); fez campanha contra a pena de morte (
The Executioner's Song, 1979); investigou o assassino de John Kennedy (
Oswald’s Tale, 1995). O seu fascínio com políticos e celebridades foi uma constante: escreveu sobre a Mafia, o Watergate e a CIA, sobre Cuba e Hollywood, sobre Madonna e Jesus Cristo (
The Gospel According to the Son, 1997). E terminou com uma fantasia (decepcionante) sobre Hitler e o Diabo (
The Castle in the Forrest, 2007). Nunca ninguém o acusou de falta de ambição. Mas muita gente o acusou de excesso.
Também nunca ninguém o acusou de ter uma vida pacata. Mailer foi casado seis vezes e pai de oito filhos; andou à pancada com gente conhecida, às vezes à cabeçada; bebia até se tornar violento; esfaqueou uma das suas mulheres; apareceu em inúmeros debates e programas de televisão; tinha opiniões sobre tudo, muitas delas estapúrdias; fundou a bíblia da contra-cultura,
Village Voice; ganhou duas vezes o prémio Pulitzer; fez cinema e entrou num filme de Godard. Aos oitenta, ainda militou contra a guerra do Iraque, com
Why Are we at War? (2003), e teve tempo para se estrear no novo fórum das ideias: a blogosfera (colaborou no blogue The Huffington Post).
Não era um romancista brilhante como Saul Bellow, nem um ensaísta elegante como Gore Vidal. Apesar de ter tido o sonho de escrever outro Grande Romance Americano como
The Naked and the Dead, nunca mais acertou, de
An American Dream (1965) ao entretenimento
Tough Guys Don’t Dance (1984), passando pelo interminável delírio egípcio
Ancient Evenings (1983). Alguns dos seus ensaios mais teóricos revelam excesso de testosterona ou mitomania e algumas digressões psico-sexuais indigestas. Mas como «historiador de presente», sempre impulsivo e opinitivo, é um dos colossos contemporâneos: veja-se a antologia de 1300 páginas,
The Time of Our Time (1998). É possível que sem a sua presença mediática e polémica, os escritos de Mailer envelheçam, também à medida que os temas sobre os quais escreveu vão sendo esquecidos pela memória colectiva; mas enquanto se discutir os acontecimentos americanos das presidências de Kennedy, Johnson e Nixon, Norman Mailer é uma referência obrigatória. Como na maldição chinesa, coube-lhe viver em «tempos interessantes»; mas nunca se meteu em casa, alheio e elitista; mergulhou nos tumultos contemporâneos e deles deixou o mais poderoso testemunho.
(no
Público de hoje)