31.1.07

A ocultação

Heidegger escreveu que um amigo falso não é falso por ser «desconforme ao mundo» (e essa é a noção comum de falsidade). Assim, por exemplo, um amigo que nos trai não é falso; mas é um falso amigo aquele que nos oculta coisas, porque (cito Heidegger) a falsidade é a ocultação.

O «meio intelectual»

«Saiba V. Exa. que temos uma ampla variedade de cores em catálogo: amarelo, amarelo claro, amerelo torrado, amarelo vivo, amarelo desmaiado, amarelo chichi, amarelo limão, amarelo dourado, amarelo candelabro, amarelo escrete, amarelo icterícia e amarelo banana.

Então, que cor é que V. Exa. vai levar hoje?»

Democracia

Somos todos (naturalmente) pela democracia. Conviver com opiniões diferentes das nossas é que já custa o seu bocado.

Popularidade

B., decepcionado com uma intervenção minha pelo «não» ao aborto, avisa que posições dessas não me trarão grande popularidade entre os intelectuais. Extraordinário aviso.

Explico a B. que as minhas «posições» são convicções e não estratégias. Que a «popularidade» é coisa que nunca me preocupou. E que há «intelectuais» que respeito e outros que me são indiferentes.

Acho absolutamente legítimo ter «posições» ou estar preocupado com a «popularidade» e «os intelectuais». Mas não contem comigo.

Desconto de tempo



Aceitei enfim, a soberania do Árbitro, mas pedi desconto tempo.

A teoria

Robin Wood, um prestigiado crítico inglês, escreveu nos anos 60 e 70 intrincadas análises cinematográficas sobre Hitchcock, Hawks, Bergman, Chabrol ou Antonioni.

Em 1977, Wood assumiu a sua homossexualidade e passou a escrever ensaios adoptando um ponto de vista «gay». Além disso, acrescentou posfácios e prefácios aos textos antigos, «revendo» as suas posições passadas à luz da sua nova «identidade».

Aquilo que acho espantoso neste caso é reconhecimento de que uma alteração biográfica pode alterar todas as nossas teorias sobre o mundo. Ao revelar a sua sexualidade, Robin Wood não mudou apenas de perspectiva daqui em diante: os textos antigos também já não valem.

Ou seja: a «teoria» é uma emanação da biografia.

Conservadorismo

Gostava de conservar, mas tenho sido perpetuamente obrigado a esquecer.

30.1.07

Off the record



O jovem contrabandista (Leonardo DiCaprio) para a atraente jornalista (Jennifer Connelly) que lhe pediu informações sobre o tráfico de diamantes:

«Well, off the record, I like to get kissed before I get fucked».


[Alguns leitores notam que a frase é também dita por Michael Douglas no filme Black Rain, 1989]
Este mês, excepcionalmente, o «É a Cultura, Estúpido» acontece um dia mais cedo, numa terça-feira. É hoje, dia 30, às 18.30, no Jardim de Inverno do Teatro São Luiz. Em debate: «O fim dos partidos políticos?» O convidado é Mário Soares, entrevistado por Anabela Mota Ribeiro, Daniel Oliveira e Pedro Mexia. Entrada livre.
Actualizei os links, eliminando alguns blogues de que gosto mas que tenho visitado com menos frequência e outros que entretanto cessaram actividade. Acrescentei dois: o Caderno I (sucessor do Memória Inventada) e o Provas de Contacto (de João Lisboa).

29.1.07

«Exibicionismo moral»

Numa lancinante polémica sobre o oposicionismo checo (nos anos 60), Milan Kundera acusou Vaclav Havel (e outros intelectuais) de «exibicionismo moral». Não interessa aqui esmiuçar os contornos exactos de tal acusação, mas gostava de sublinhar esse conceito fortíssimo: «exibicionismo moral».

Escrever em público sobre o sofrimento será um caso de «exibicionismo moral»? Tudo indica que sim: eis alguém que revela aos outros algo que é por natureza privado. A reação de cada um a isso depende do grau de identificação ou de complacência.

Mas também me parece que esse «exibicionismo» só é «moral» quando se pretende moral.

Explico: o exibicionismo («vejam como eu sofro») pode ser simplesmente um dado de facto, uma contigência ou uma condição. Nesse caso, não estamos perante nenhum «exibicionismo moral». Se, pelo contrário, a divulgação do sofrimento for uma forma de propaganda daquele que sofre, uma espécie de mérito que ele possui, nesse caso existe exibicionismo moral.

O qual me merece a mesma repugnância que Kundera, noutro contexto, exprimiu.

28.1.07

Cinismo

Agora posso e devo ser cínico. Devemos sempre ser cínicos depois de termos sido ingénuos.

Qual é a diferença?

Já me tinham cuspido algumas vezes, mas nunca tinha sido cuspido. É essa a diferença.

A fila dos derrotados

Quem entrou na fila dos derrotados é tratado como um derrotado. E nenhuma vitória altera isso nunca.

A duzentos

Não há relações «a dois». Não no meio em que vives. Não é o que tu «és», o que tu «sentes», o que tu «desejas». É o que os outros são, sentem, o que os outros aceitam, o que os outros comentam, o que os outros invejam. Todas as relações são a duzentos.

Vida social

Neste meio em que nasceste não há vida pessoal: há vida social. Tudo é virado para o exterior, tudo é uma prova, um sinal, uma confirmação ou um fracasso. E tudo o que esteja virado para dentro é visto como uma doença. Não venhas agora dizer que não sabias.

Acrylic afternoons

Como se estivesses sentado num chão gelado e sem hipóteses nenhumas de evitares toda a verdade. E a sua conclusão, de contraplacado e acrílico.

27.1.07

Vesalius

Man in a war

Men in a war
If they lost a limb
Still feel that limb
As they did before

(Suzanne Vega)

A vida sem ti

Na vida sem ti a noite nunca é amável. Na vida sem ti todo o movimento é ruído. Todos os livros são tinta, toda a comida é celofane, toda a música tem duas notas (e uma desafinada), todas as conversas são conversa de taxista. Só mesmo o sarcasmo chama «vida» a esta vida sem ti.

Área não segura

O computador avisa: «está a entrar numa área não segura». E eu desligo.

Estado policial

Não podes passar nesta rua. Não podes frequentar aquele restaurante. Não podes entrar nessa loja. Não podes fazer determinadas perguntas. Não podes nem imaginar determinados gestos. Não podes ler aquele texto. Não podes marcar este número nunca. Não podes fazer aquilo que mais queres. Não podes mais viver assim.

25.1.07

Stranger song

And then taking from his wallet an old schedule of trains
he'll say I told you when I came I was a stranger


Gatwick

Não era aquela a nossa porta de embarque, alguém tinha lido mal, e estava na hora, corremos pelos corredores do aeroporto de Gatwick, a porta certa ficava no outro extremo, já não o apanhávamos, estava perdido, o avião, mas corremos, corremos, cheios de sacos, o meu amigo naturalmente mais leve e mais veloz desapareceu num corredor, e eu corri mais cinco ou seis corredores, desajeitado, ofegante, cheio de sacos, e com uma picada nos rins do esforço, já não o apanhava, estava perdido o avião, estava mais que na hora, nos últimos três corredores já não corria, andava, a passo, conformado, arfante, no aeroporto de Gatwick, dando o avião por perdido, impossível de apanhar, pensando o que fazer depois da partida do avião, a passo nos corredores, conformado e exausto e pensando nessa fatal metáfora.

A ética da convicção

A «ética da convicção», meu Deus, como se as coisas não obedecessem todas à fisica e à química e aos clichés sociais.

Grandes alegrias

CRESCENCE: (...) mas, claro está, também descobriu, como eu, as tuas fraquezas; ele adora a decisão, a força, o definitivo, ele odeia a hesitação, nisso é como eu.

HANS KARL: Dou-te os parabéns pelo teu filho, Crescence. Tenho a certeza que terás sempre grandes alegrias com ele.

Hugo von Hofmannsthal, Der Schwierig / O Indeciso, 1921

23.1.07

Takes one to know one

O apocalipse

Quem diria que alguém tão insuspeito experimentaria alguma vez sensações extremadas, radicais? Uma espécie de intoxicação cerebral, uma névoa mental, a progressiva destruição de tudo, como uma folha encarquilhada no meio de uma lareira. Nunca nada tinha sido tão concentrado, todas as engrenagens funcionando, produzindo efeitos para os quais há poucas palavras e nenhumas certezas. Sabemos como funcionam as drogas, mas não é menos abissal a capacidade que o cérebro tem de fazer sozinho todos os elementos de uma necessidade, de uma adicção, de uma falta, de uma degradação, de um colapso. Os ditos de circunstância sobre sermos todos «um abismo» não são clichés, são num repente o terreno que se pisa, ou que não se pisa, que se desfaz, que resvala, toda uma série de cordilheiras e quedas, de espaços sem fundo e de uma atmosfera que não nos agarra, que nos deixa, inclemente como a natureza. Quem diria que o apocalipse é um espectáculo privado, um filtro de luz dentro da cabeça, sem marcas exteriores, sem ruídos, apenas o mundo a confirmar que não será mundo por muito mais tempo.

19.1.07

Monólogo (a dois)

O «sofrimento» (vamos poupar no melodrama) deve ser visto de fora (usa aspas, ou itálicos, meu pavão). E visto de fora (aspas) este é o sofrimento mais engraçado que já conheci (não és tu que contas, é o caso em si, o resultado). Uma quase perfeição no eterno retorno («o eterno retorno», haja paciência). Quase não falta nada (falta o mais importante, já lá vamos). Aconteceu tudo, do entusiasmo ao erro trágico (teoria da literatura, és um merdas), os pormenores biográficos irrepetíveis repetidos quase ao milímetro, e alguns ainda escondidos à espera de acontecer (antropomorfismos, diz as coisas como gente). Fiz a fanfarra e agora não consigo dormir com o barulho (bem pensado). Tudo é muito mais lúdico e menos sôfrego, não tem nada a ver com palavras (tarde piaste), tudo tem as suas regras e passos de dança e vestimentas (meu labrego), não se vai por aí adiante sem licença, até porque tudo aquilo de que escapamos nos apanha mais à frente (meu Deus, metáforas de caça). O «sofrimento» (adiante) tem graça porque se a história acontece uma vez como tragédia e se repete como comédia, à terceira é uma farsa (tragam macacos, violinos, sombras chinesas). Uma farsa é uma comédia que se repete tragicamente (grande fraseador, Ega dos blogues, pedaço de asno). Cortei o passado aos bocados para não o viver de novo, e ele voltou, com pormenores mais nítidos, mais cortantes (alvíssaras, chegou o nosso menino). Um castelo de cartas (muito batido), e caiu todo ao mesmo tempo, não ficou nada, um terramoto que arrancou até as fundações (eu diria alicerces). E isso tem graça (tem). Achei que era capa e espada (mas sem espada) e sou o clown. Achei que era um archeiro (mui precioso) e sou o louco da aldeia. Tem alguma graça, tudo isto (incrível como gostas da retórica). A graça que isto tem não se pode ficar pela graça (continua). Há um momento em que não há progressão, não há saída para fora do círculo, porque por dentro e à volta ele está em chamas (literatices e poucas conclusões). Não é possível continuar depois disto (até que enfim), nada ficou como dantes (estás quase lá), depois da farsa não se volta atrás (continua), não se refaz o percurso, não se sai do círculo (reiterativo, o moço). Deitei tudo a perder e de nada serve o teatro subtilmente encenado dos últimos anos (o que ele demorou a dizer esta frase, o que ele demorou). Se Deus está nos pormenores o Diabo está nos parêntesis (sou um coro grego, nada de rótulos). Há um momento a partir de qual o «sofrimento» (aspas) visto de dentro (aspas?) é uma tragédia insuportável, e visto de fora uma farsa abominável (e outros sinónimos). Tenho que seguir quem me chama (ainda vais dizer que sou eu). A representação terminou, no sítio onde estou já nem há palco, estou fora do espaço do teatro (tanto imagismo para dizer uma coisa tão simples). Acabou a corrida em que fugia de mim e do Diabo (what’s in a name?). Agora, tenho que tirar conclusões (disse isso mesmo umas linhas acima). Agora chega (vá lá), i can’t go on i will go on i can’t go on (citação apócrifa), agora chegou o tempo (tanto floreado), agora já não tenho desculpa (facto), agora (continua)

Terrorismo



«Podes fugir mas não te podes esconder». Eu pensei que sim. Pensava. Agora não. Agora não fujo nem me escondo: negoceio. Mais tarde ou mais cedo, é sempre a isso que os terroristas nos obrigam.

Moratória

Em não podendo eliminar a pena de morte, é possível pelo menos pedir uma moratória.

18.1.07

Segunda opinião

Não preciso de uma «segunda opinião». Já tive uma terceira.

Anotações marxistas (2)

Uma derrota social que se transforma numa derrota de sociabilidade.

Anotações marxistas (1)

Todas as derrotas são derrotas de classe.

Objecto

É verdade que vivemos o «crepúsculo do dever» e tudo isso que os sociólogos têm estudado. Mas elementos como o dever, o trabalho, o esforço e (nalguns casos) o sacrifício ainda vão sendo valorizados como provas de mérito. A humilhação, pelo contrário, não tem cotação nenhuma. E, no entanto, a humilhação partilha de muitas das virtudes que se atribuem ao trabalho, ao dever, ao esforço e ao sacrifício. Num mundo que ainda se alimenta desses fragmentos de valores mais ou menos cristãos, convém lembrar que Cristo não foi apenas sujeito de um sacrifício: foi objecto de escárnio.

Darkest green



I raised my gun so carefully
and fired into the trees
then saw it was my true love fell
in a dress of darkest green
a dress of darkest green


The Handsome Family, «Hunter Green», álbum Last Days of Wonder (2006)

The kindness of strangers

Achava a frase de efeito, eficaz mas terrivelmente «teatral» (no mau sentido). Agora, se não «vivo» exactamente da «gentileza de estranhos», é pelo menos um dos meus maiores, mais constantes e mais inesperados sustentos.

Obrigado.
O programa «Voz Alta», da responsabilidade de Alexandra Lucas Coelho, passa todos os dias úteis, às 23h, na Antena 2.

Em «Voz Alta» poetas de língua portuguesa dizem os seus poemas. Os registos são feitos expressamente para o programa. Cada programa tem cerca de cinco minutos, mas no caso de sequências mais longas pode exceder essa duração.

Os poetas vão mudando todos os dias e cada um regressa duas ou mais semanas depois. Hoje, dia 18, repete o programa em que sou convidado.

Do direito penal

A humilhação não é uma agravante nem um pena acessória, como se julga. A humilhação é parte integrante e indispensável da pena. Sem humilhação, isto é, sem publicidade, não há prevenção geral.

17.1.07

Regine

Kierkegaard achou que não era digno de casar com a sua noiva Regine Olsen e escreveu o Diário de um Sedutor para a chocar e afugentar. Mas podia ter sucedido que Regine achasse que Kierkegaard não era digno de casar com ela; nesse caso, Kierkegaard não precisava de escrever livro nenhum.

Disciplina

Tenho seguido ao milímetro a disciplina que me impus. Eu que detesto o conceito de disciplina. E logo esta tão mas tão desumana.

Mas sem disciplina não se cresce, como sabem os monges de todas as religiões. A disciplina é, queiramos ou não, uma forma de punição. E sem punição ninguém aprende nada.

Uma opinião

Pediu-me uma «opinião masculina» sobre o assunto. Prometi que ia perguntar a alguém.
Felizes aqueles que têm uma crónica ilustrada pelo E Deus criou a mulher, pois deles será o Reino dos Céus (obrigado Miguel)

A província de Hunan

Ele chega a casa e percebe que ela mudou. A única prova material é uma misteriosa embalagem vinda da província de Hunan, na China. Mas a China e a embalagem são pretextos. Ela mudou. Ela e o vento entoam uma canção nova.



when i got home i meant to give you some sweet chrysanthemum
the wind chimes were ringing all wrong and you were standing
in the doorway singing along
and i tried to remember how nice it had been
a long long time ago
but i couldn't remember.
i honestly could not remember

and a package came for you today, from the hunan province
the postmark burning jet black in the summer sun
someone was changing. someone was changing from the inside out
and i turned around to face you.

sweet peas in the garden, all in full bloom
and i thought i heard the traces of an old song murmuring in the room
like a half-remembered conversation, i let it slip away
and then i could not remember
i honestly could not remember

and a package came for you today, from the hunan province
the postmark burning jet black in the summer sun
someone was changing. someone was changing from the inside out
and i turned around to face you.



(«Nine Black Poppies», tema do álbum homónimo (1995) dos The Mountain Goats, numa versão compreensivelmente dessincronizada e histérica)

The descent of man

No seu trigésimo quarto ano, foi enfim ler Darwin.
Compreendeu.

O fácil e o difícil

Não há nenhum problema que não tenha uma solução fácil. Tens é que pagar um preço dificílimo.

O justo e o injusto

Não é justo que digas da tua humilhação que foi «injusta». A humilhação de uns serve como divertimento de outros. E o divertimento nunca é injusto.

Saúde pública

A frieza atempada evita o nojo anunciado.

Flow My Tears, The Policeman Said (2)

Assim como o «amor» é um «exagero poético», isto é apenas «água», «sais minerais», «proteínas» e «gordura».

14.1.07

Flow My Tears, The Policeman Said

Um homem

Imagino que seja um tipo viril, atlético, forte, corajoso, agressivo, experiente, frio, estóico, lógico, racional, objectivo, prático, dominador, independente, ambicioso, orgulhoso, decidido, competitivo, desinibido e aventuroso. Imagino, em suma, que seja um homem.

Nuvem

Como aquelas nuvens escuríssimas que aparecem na meteorologia e que mal se afastam deixam o continente ver de novo o céu azul.

Esquecer

Sou um péssimo «namorado» mas um óptimo ex. Entre outras coisas, porque sou facílimo de esquecer. Uma virtude frouxa mas muito útil.

13.1.07

O veredicto

Também eu fico esmagado com o tremendo «securus judicat orbis terrarum» («o veredicto do mundo é conclusivo») de Santo Agostinho. A desistência tornou-se uma urgência.

Liars in love

Richard Yates tem dois livros de contos: Eleven Kinds of Loneliness (1962) e Liars in Love (1981). O segundo título é extraordinário pela sua ambiguidade. Desde logo, porque presumimos uma contradição entre a falsidade e a sinceridade dos apaixonados. Depois, porque imaginamos que os mentirosos deixam de ser mentirosos quando se apaixonam. Ou então o título refere as pessoas que mentem no amor, ou seja, as pessoas que o amor tornou mentirosas.

12.1.07

Tudo menos aquilo

«A tragédia grega inventa não apenas um espectáculo e um género literário, mas transporta também um homem trágico: ela inventa o homem atormentado, o homem que se interroga sobre os seus actos, que percebe depois que fez tudo menos aquilo que acreditou fazer... É isto que continua a ter ressonância em nós». (Jean-Pierre Vernant (1914-2007), helenista, citado no Público de ontem).

My love life (segundo o INE)

100 por cento de 49 por cento.

20 por cento de 80 por cento.

80 por cento de 20 por cento.

E, de súbito, 100 por cento de 100 por cento.
Ou, como depois percebi, cem por cento de zero.

11.1.07

Homem invisível



De um homem invisível nunca se pode dizer que desapareceu.

Amargo

Vivo em estado de «self-fulfilling prophecy»: tudo o que eu achava que ia acontecer aconteceu, do modo como eu achava que ia acontecer. Nunca imaginei que ter razão fosse tão amargo.

As árvores & o fogo

The trees forgave the fire that went on burning
Until hope was all that was left when the smoke cleared
And I'll forgive her body for deserting
As soon as I recall why mine is still here


(Simon Joyner)

10.1.07

Audrey

Notícias da meia-noite

Cavaco Silva promulga nova Lei de Bases da Segurança Social

Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado descontente com reforma dos serviços sociais

ETA reivindica autoria do atentado em Barajas

PS vai chumbar comissão de inquérito sobre voos da CIA proposta pelo PCP

EUA confirmam ataque aéreo contra alvos da Al-Qaeda no Sul da Somália

Governo garante que obras no túnel do Rossio terminam até ao final do ano

Défice externo agravou-se 1,7 por cento entre Janeiro e Outubro

Ex-presidente da ERSE vai ser ouvido no Parlamento na próxima semana

E outras coisas assim, prosaicas e penosas, na vida sem ti.

9.1.07

Sexytime

Os quarentões mais cool do pedaço, Dean Wareham e Britta Phillips, tocam de improviso o lânguido «Knives From Bavaria» (do álbum L'Avventura, 2003) na estação de metro de Prince Street, Nova Iorque, em Agosto de 2006. Não sei bem se isto são preliminares ou se já é tecnicamente sexo.



I dreamed you were riding
a train to astoria
I dreamed that you swallowed
a pill called euphoria
lips are for lying
your eyes are a kill
spoons come from denmark
the knives from Bavaria

a plateful of promise
a spoonful of fun
a thimble of drowsy
a face full of charm
send me a rainbow
send me the word
spoons come from denmark
the knives from bavaria

comb me and brush me
divide me in two
drink me and drown me
I like you I do
I’m orange I’m orange
I’m orange and blue
I love him I love him
I love him I do

Narcisismo

I was born into the Hebrew persuasion, but when I grew up I converted to narcissism.
Woody Allen

Inegociável

No documentário, Greenaway também explica que sendo o sexo e a morte os dois grandes temas da arte, a morte é o mais interessante dos dois. É que, desde a revolução sexual, o sexo tem imensas possibilidades, é uma actividade negociável. Enquanto que a morte continua, como sempre, inegociável.

A ilusão da ilusão

Num extra que acompanha a edição portuguesa em DVD do fascinante The Belly of an Architect (1987), Peter Greenaway, fluente, seguro e sofisticado como sempre, explica por que razão se afastou totalmente do chamado «realismo britânico». Ele diz que o cinema tem andado entretido a contar histórias e não tem explorados outras alternativas mais interessantes. Mais interessantes e mais verdadeiras: Greenaway acha que a narrativa não existe na vida real, pelo menos com a nitidez que tem na ficção; por isso mesmo ele prefere que os seus filmes tenham como princípio de composição a pintura (a arte que nos ensinou a olhar) e como princípio de organização as classificações (números, palavras, conceitos). Greenaway contesta a arrogância dos que acham que o cinema consegue capturar a realidade. Ele considera impossível capturar a realidade num filme, e por isso o seu cinema assume conscientemente a ilusão. É porque recusa o cinema como ilusão da realidade que abraça tão euforicamente a ilusão como ilusão.

Ciência (2)

A natureza fez com que ele não a satisfizesse. A civilização fez com que ela não o desejasse.

Ciência (1)

Só uma «ciência» genial é que inventava uma expressão como «desmoralização no que diz respeito ao papel masculino».

8.1.07

A melancolia da anatomia




Quem reconhece em «Old Jerusalem» o título de uma canção de Will Oldham imediatamente imagina uma genealogia de melancólicos americanos (essa que inclui Bill Callahan, Damien Jurado, os Mountain Goats e outros). Francisco Silva, o mentor deste grupo de geografia variável chamado Old Jerusalem, nunca escondeu as suas influências e afinidades. Mas, ao terceiro álbum, essas comparações não são mais necessárias. Na verdade, o novo disco de Old Jerusalem é mais interessante visto em confronto com os anteriores, April (2003) e Twice the Humbling Sun (2005), do que com os seus mestres e modelos.

No essencial, nada mudou: são canções tendencialmente narrativas, um lamento gentil e às vezes desolado, um melodismo dolente que acompanha textos longos, uma espécie de confessionalismo tímido. No entanto, há elementos novos, ou mais desenvolvidos. Estas onze canções são como que um diagnóstico dos estádios de uma relação amorosa. Mas é um diagnóstico em acto, como um doente a quem se tirasse a temperatura várias vezes ao dia. Quem associa a melancolia confessional a inclinações adolescentes encontra aqui um desmentido completo: uma relação não é um objecto imóvel, e Francisco Silva acompanha com minúcia os cambiantes de saudade, cumplicidade, afastamento, aceitação e mesmo alguma crueldade (com ou sem dolo) que os amantes vivem. Não é justo descrever estas canções como sendo simplesmente sobre «o sofrimento», porque o sofrimento é um conceito estático e nada é estático neste disco. O amor é composto de mudança, e «The Temple Bell» está cheio de mudanças, incluindo no sentido literal (as caixas de «Boxes»). A monotonia e a rotina (elementos inevitáveis de qualquer experiência com alguma duração) estão aqui espelhadas de modo insólito, porque menos ostensivamente «poético»; mas é também isso que nos faz compreender os efeitos da passagem do tempo, os avanços e recuos, a incerta certeza que é sabermos realmente o que queremos. Isso e a atenção comovente aos pequenos gestos e aos pequenos símbolos (como um lenço, em «Her Scarf»), constante metáfora material das nossas emoções.

O estilo de Francisco Silva não tem nenhuma semelhança com a tensão minimalista nem com a associação livre que são métodos comuns em tantos escritores de canções intimistas. Os textos raramente procuram o aforismo emblemático, mas também se afastam do prosaísmo, mesmo quando descrevem situações prosaicas. Há um lado antiquado nalgumas passagens, como se ouvíssemos ecos de um Yeats ainda não modernista, em parábolas como a balada marítima «Ruler of My Heart» ou o ancestral «Time Time Time». O inglês nunca é usado pela sua simplicidade e ductilidade: mas as construções rígidas e os termos algo rebuscados que surgem nos textos são surpreendentemente melódicos no contexto da canção, sobretudo por causa do modo nada enfático como são cantados. Dois exemplos: «I’m but a piece here / A fragment of truth / Hence here a lie / Stands in forced oath before you» (de «Grasshoppers»). Ou o elegante: «May our ennui dissolve / May our boredom be recalled in lace and sepia / A stage into our splendour» (em «Lunar Calendar»). Versos que no papel parecem hieráticos mas que são fluentes e naturais aos ouvidos. O que não significa que não apareçam alguns artifícios literários: em «Refusing to give yourself in now meant knowing / Coldly what lived and what died» («Time Time Time») aquela mudança de linha é eminentemente poética. E a mudança de linha, como sabemos, nem sempre se ouve na voz. As palavras, diz Francisco Silva numa das canções, são coisas físicas. E neste disco isso também se comprova com as discretas mudanças rítmicas e com o modo melodioso como terminam alguns versos. Além de que em «The Temple Bell», Old Jerusalem conta com cordas e teclas, que acrescentam intensidade e textura ao material.

No entanto, talvez a novidade mais evidente neste álbum seja o humor e ironia de algumas canções (o snobismo paródico de «Arts Center» ou a deliciosa candura de «Love & Cows»). Como Francisco Silva explica, não existe desolação («gloom») onde há movimento, e este disco tem mais movimento que os anteriores, mesmo quando analisa a imobilidade. Isto não é um jogo, é uma confissão, mas as canções cruzam com grande inteligência o desencanto com o distanciamento. «Love & Cows», logo no início, mostra como os «conceitos» escondem realidades mais comuns e dolorosas: «We fabricate the concepts but fundamentally fail to connect / We find awkward our true feelings and give them shapes more ‘politically correct’ / Like when you are bored of me and you won’t take another night / Becomes “we are not communicating, something isn’t right” / Well, it is, that is just the way things are / The end of love sometimes find us sobbing in the car». Mas depois a história envereda pela auto-depreciação em tom assumidamente ligeiro: ele não sabe cozinhar, não gere bem o orçamento, é desarrumado, é míope, dizem que está a ganhar barriga e ainda por cima partiu uma vaca de louça, imagem da banalidade doméstica. E tudo termina não na anatomia da melancolia mas na melancolia da anatomia, ao mesmo tempo gráfica e carinhosa: «And our minds and bodies just sensually click / I fall between your boobs and you on my dick». Os romanos diziam que depois do coito todo o animal fica triste. Mas isso é apenas meia verdade. E Francisco Silva, como este disco confirma, não se contenta com meia verdade.

The Temple Bell é editado a Fevereiro de 2007

Acontecer Taça (2)

É verdade que as mulheres (ao contrário dos homens) não se importam em jogar com clubes de outras divisões. Às vezes, com as mulheres, «acontece Taça». Mas convém não esquecer que a Taça é um sorteio, ou seja, um jogo de acaso.

7.1.07

O programa «Voz Alta», da responsabilidade de Alexandra Lucas Coelho, passa todos os dias úteis, às 23h, na Antena 2.

Em «Voz Alta» poetas de língua portuguesa dizem os seus poemas. Os registos são feitos expressamente para o programa. Cada programa tem cerca de cinco minutos, mas no caso de sequências mais longas pode exceder essa duração.

Os poetas vão mudando todos os dias e cada um regressa duas ou mais semanas depois. Desde dia 3 de Janeiro já ouvimos António Ramos Rosa, Rui Pires Cabral e Manuel António Pina.

Amanhã serei eu. E até ao fim da semana teremos Luís Quintais, Jaime Rocha, José Tolentino Mendonça e Maria Andresen.

Acontecer Taça (1)



Quando um «pequeno» elimina um «grande» na Taça de Portugal (como sucedeu hoje com o Atlético e o FC Porto) diz-se que «aconteceu Taça». Ou seja: que se concretizou o objectivo dessa competição, que é supostamente fazer com que clubes de diferentes dimensões se encontrem, possibilitando jogos inéditos e algumas surpresas, que vão acontecendo de vez em quando.

Na vida sexual das pessoas é que poucas vezes «acontece Taça».

5.1.07

Lisboa (2)

Don't want to hear about it
Every single one's got a story to tell
Everyone knows about it
From the Queen of England to the hounds of hell


(The White Stripes)

Lisboa (1)

A conhece B que viu C com D que contou a E que soprou a A.
Merda de cidade.

Sucesso

Nenhum dos homens sexualmente arrogantes que conheço é monogâmico. A arrogância vem com o sucesso. E o sucesso (dizem) vem com a acumulação.

Felizes



«É belo aquilo que, se fosse nosso, nos faria felizes, mas que continua a sê-lo, apesar de pertencer a outro», escreve Umberto Eco na sua Storia della Bellezza (2002). Talvez esta formulação seja mais correcta: «É belo aquilo que, se fosse nosso, nos faria felizes, mas que nos faz felizes apesar de pertencer a outro».

Something so stupid



She’s a knockout. But beauty is overrated.

É o que Brad (Patrick Wilson) diz à amante, a propósito da sua mulher, Kathy (Jennifer Connelly). O narrador comenta:

Brad had meant this to be comforting. Only someone who took his own beauty for granted could say something so stupid.

(Little Children, Todd Field, 2006)

Pesquisa (2)

Pesquisa

I used to refer to my twenties as «the lost years», and then I realized it was research.

(Amy Hempel, contista americana)

We believe

É um princípio das Nações Unidas: «we believe» (etc etc).

Eu só me revejo em organizações que tenham como princípio «we don’t believe».

O sofrimento objectivo

Adquiri toda uma série de empatias baseadas em correspondências ou analogias. Assim, embora nunca me tenha metido nas drogas, consigo perceber exactamente o desespero dos drogados. E, embora seja da classe média, não me é estranha a situação do proletário sem pão na mesa. É óbvio que os motivos são muito diferentes, que eu não tenho as mesmas experiências dessas pessoas; mas o tipo de sofrimento é muito semelhante. Como se o sofrimento pudesse ser desligado das suas causas concretas e estivesse concentrado nos seus efeitos, nos esquemas mentais que desencadeia. Eu leio ou ouço drogados e proletários e nada daquilo me é estranho, ainda que as condições de vida me seja desconhecidas. Há mecanismos de sofrimento que são transversais e objectivos, e é curiosamente isso que me isola um pouco menos dos «irmãos humanos».

Halley

Tratar o optimismo como o cometa Halley. A última vez que vimos o Halley foi em 1986. Segundo os cientistas, regressa em 2061. Também eu não tenciono voltar ao optimismo até 2061. Até porque em 2061 já cá não estou (aí está uma ideia optimista).

4.1.07

Ano novo



Gostava de lembrar
a gerência
que as bebidas estão aguadas
que a rapariga do bengaleiro
tem sífilis
que a banda é formada
por facínoras SS
No entanto como é
véspera de Ano Novo
vou pôr um
chapéu de papel
na minha concussão e dançar


Leonard Cohen
(trad. PM)