30.5.08
As academias de Sião
Há uma certa insolência narrativa que eu aprecio nos grandes contistas. Um exemplo magnífico é este começo de um conto de Machado de Assis que se chama «As academias de Sião»:
Conhecem as academias de Sião? Bem sei que em Sião nunca houve academias: mas suponhamos que sim, e que eram quatro, e escutem-me.
Conhecem as academias de Sião? Bem sei que em Sião nunca houve academias: mas suponhamos que sim, e que eram quatro, e escutem-me.
29.5.08
Como ser interessante
Edward de Bono é um daqueles «sábios» com jeito para os negócios e com «ideias» sobre tudo. O guru da «criatividade» escreveu um livro chamado How to Be More Interesting, e ontem espreitei a coisa, apostado também eu em ser «mais interessante». Debalde. Aquilo é simples musculação mental, muita energia e pouca sensatez. Ainda não foi desta que fiquei «interessante», uma das minhas grandes aspirações na vida. Gorada a opção bibliográfica, tenho apenas as vias comuns que tornam «interessantes» os homens: cozinhar peixe fresco, ser da AMI, subir os Himalaias, contar histórias infantis aos filhos das divorciadas ou ter vivido num galeote em Montevideo. Acho que não vou longe.
Blade Runner (2)
Decidimos ir ver o Blade Runner, mas não antecipámos que passasse em italiano (Harrison Ford: «Sono stato scaricato da tante altre persone, ma non quando ero stato così amabile»). Decidimos ir ver o Blade Runner, e o cinema, amplo e esplêndido, chamava-se Gambrinus, e fizemos logo piadas sobre o Vasco. Decidimos ir ver o Blade Runner e no início do filme, triste notícia, anunciaram que o cinema Gambrinus fechava ali suas portas ao fim de décadas. E logo com Blade Runner, o futuro muito negro no meio do magnífico passado florentino.
(para C & P)
(para C & P)
Blade Runner (1)
Decidimos ir ver o Blade Runner, na versão «final cut» (não confundir com a versão «director’s cut»). Blade Runner é menos superficial que Star Wars & companhia e menos pretensioso que 2001 & associados. É uma distopia em registo noir e cheia daqueles efeitos publicitários aos quais Ridley Scott nunca escapou. Ninguém escreveu sobre o futuro da tecnologia como futuro do humano como Philip K. Dick, e Blade Runner faz justiça a Do Androids Dream of Electric Sheep? Há estilo visual, montes dele (já não me lembrava daquele elevador tétrico subindo pelo prédio degradado acima) mas também há personagens (o cinismo vítreo de Rutger Hauer e a fragilidade malabarista de Daryl Hannah) e algumas ideias (não demasiadas, algumas chegam). Ainda é o melhor Dick no cinema (passe a expressão). Convenhamos que a ficção científica no cinema não tem dado para muito mais: num extremo estão os videogames todos deste mundo, e no outro um punhado de filmes metafísicos (os Tarkovskis) em que a FC é um pretexto. Há também Matrix, bem sei, mas eu (desculpe, camarada Zizek) acho o projecto muitíssimo sobrevalorizado. Gosto mais dos Aliens, que aliás são westerns. E o que eu gostei do Terminator, quando o vi no Fonte Nova em 1984 e achei que se podia vir do futuro para corrigir os erros do passado.
27.5.08
Caravan Girl
What is her name / That Caravan Girl / What is her name? / (…) Barefoot and game / That stranger on the hill / What is her name?
O adjectivo e o substantivo
Numa entrevista recente, Tom Stoppard define-se como «intelectual» («I think of myself as being intellectual almost as a biological fact»). Mas um «intelectual» não é o mesmo que «um intelectual»:«the noun as opposed to the adjective has different connotations for me». É isso mesmo: viva o adjectivo e abaixo o substantivo.
Catarse no Coliseu
Os concertos de Cat Power são sempre happenings emocionais. Quer as coisas corram mal (como no seu primeiro concerto português) quer corram bem (como no segundo), a intensidade está garantida. Não pude estar presente na sua estreia portuguesa, a tal que descambou numas fitas alcoólicas. Na altura do segundo espectáculo (triunfal) estava eu em prisão domiciliária e também não fui. Ontem, no Coliseu esgotado, vi finalmente a georgiana da franjinha, e nem sei que vos diga. Foi muito bom, embora tenha sido fraquinho. Explico: a rapariga estava nervosa, a voz cansada, os gestos desconexos, os movimentos erráticos. Há notas que ela dá nos discos e que ao vivo nem tentou. Não faltava entrega, mas faltava segurança, e várias vezes ela pediu desculpa, ou conversou com os técnicos ou cirandou indecisa. Cat Power teve a ingrata tarefa de apresentar um disco de covers (Jukebox, 2008), mas felizmente tem uma banda bestial (Dirty Delta Blues Band) que vai de Billie Holliday a Jagger, e de Otis Reading a Sinatra, com grande brio e bravura. Ela passarinhava pelo palco, às vezes cantava a meia voz, outras vezes tentava uma descontracção jazzística, outras ainda apostava numa tensão emotiva e gingante muito seventies. O concerto ia vogando entre medíocre e médio, com visitas a The Greatest (2006) pontuais arrancanços. O mais consistente foi «Metal Heart» (álbum Moon Pix, 1998), uma descarga de energia pulsional capaz de desfazer as pedras da calçada. O mais estranho foi o final do concerto, já não um momento musical mas uma catarse colectiva, com a mais longa saída de palco a que já assisti (e sem encores). Cat Power tinha vindo contorcer-se e condoer-se no meio da plateia, e o público apoteótico ficou asism até ao fim, todos em pé e ela dando mais uns passinhos e agradecendo mais uns segundos, mais uns minutos, recebendo flores, aos saltos teatrais, vénias e salamaleques, os aplausos não acabavam e a banda já estava no duche e as luzes já estavam acesas, e já se ouvia a música de debandada e ela ainda ali a agradecer, a agradecer, as pessoas entusiasmadas porque ela não saía do palco, ela que não saía do palco porque as pessoas estavam entusiasmadas, estranha rapariga de feições estranhamente belas e vincadas, que agradecia mais e mais, essa rapariga de quem gostamos porque sofreu, de quem gostamos porque se engana e pede desculpa, de quem gostamos e que aplaudimos porque teve a coragem da sua fragilidade.
26.5.08
Não muitas vezes
For there are brighter sides to life
And I should know, because I've seen them
But not often
The Smiths, «Still Ill»
O apego
O budismo ensina que a felicidade consiste no desapego dos sentidos e das emoções. Tenho uma vaga simpatia pelo budismo, como toda a gente, mas detesto esse conceito. A felicidade (whatever that means) passa obrigatoriamente pelo apego aos sentidos e às emoções. Já lá estive e garanto.
23.5.08
Idades
A minha infância acabou quando devia ter acabado, à entrada do liceu. A minha adolescência acabou quando devia ter acabado, aos vinte anos (e oito meses). A minha juventude acabou quando devia ter acabado, aos 33 (a idade de Cristo). Agora estou numa idade que só a custo consigo chamar «adulta» mas que é certamente a última idade (duas décadas ou assim antes do AVC). Impossível agora voltar atrás ou saltar em frente, menino, agora vive com o que tens nos dias que te faltam.
Se não é
If it isn't doom it'll do until a proper doom comes along.
(o xerife em No Country for Old Men, de McCarthy/Coen)
(o xerife em No Country for Old Men, de McCarthy/Coen)
Além da melancolia
Ontem (bad day at black rock) ouvi os dois álbums dos Joy Division na elegante Collector’s Edition que saiu no «ano JD» de 2007 (que também deu o filme Control, um Best Of + Peel Sessions e inúmeras bandas miméticas).
Há um amigo meu que diz que nunca conseguiu gostar de JD porque ele não vai «além da melancolia». E estes discos vão sem dúvida muito além da melancolia. Jon Savage, nas notas à reedição de Unknown Pleasures (1979) alinha as palavras essenciais: «culpa», «medo», «raiva», «claustrofobia», «repulsa», «ódio de si mesmo» e «fatalismo». Nem vale a pena avançar nesta noite escura se isto tudo for alheio a quem ouve. Cada um tem as suas razões para este calvário (as de Ian Curtis chamavam-se «Manchester» e «epilepsia», «rotina» e «adultério»), mas a melancolia não chega, a melancolia não é entrada suficiente nestas canções. É preciso ter passado por aqueles sete pecados mortais. Ou então não reparar de todo nas letras, como os 3 instrumentistas juram que faziam (Stephen Morris: «He seemed fine most of the times»).
Em Unknown Pleasures ainda espreita uma dureza punk (visível nos concertos que vêm como bónus), embora toda interiorizada (nada de «agitação política», até porque Ian Curtis sempre votou Tory). A inteligente produção de Martin Hannett baixou as guitarras e acentuou a batida e o barítono, os efeitos de estúdio, os sons casuais, tornando o disco abstracto mas ainda assim «cinemático» (o termo certeiro é de Savage).
As distopias ballardianas reflectem uma paisagem interior de negrura e isolamento. Ouço de novo «New Dawn Fades» e «Shadowplay» e lembro-me que quando cheguei aqui, já então visitante de terrenos muito «além da melancolia», me senti completamente em casa, uma casa inóspita mas uma casa. E gostei logo da crueza do material aliada a uma frieza na apresentação (as fotos de Corbijn, as capas de Saville), uma espécie de sofrimento hermético e decantado.
Closer (1980) já é outra coisa, um disco funéreo com um túmulo na capa, «Twenty Four Hours» ou «Decades» numa calma densa, gótica, numa distância que afinal não é distância mais a mais doce proximidade. Daquilo que não conheceis não deveis dizer nada.
22.5.08
Torcato Sepúlveda (1951-2008)
Conhecíamo-nos dos jornais e de jantarmos na mesma mesa no poiso do costume. Tratou-me sempre com estranheza e delicadeza, com uma grande disponibilidade para as nossas imensas diferenças de opinião, sem que alguma vez tivéssemos discutido uma coisa assim tão banal como as «diferenças de opinião». Eu respeitava o Torcato porque ele era um jornalista de um mundo em extinção, exaltado nas convicções, culto, castiço na prosa e íntegro nas atitudes. Nos seus textos, o Torcato foi, como lhe chamou o Francisco José Viegas, um «céptico entusiasta». No convívio, um anarquista educado. Mesmo nas suas fúrias mantinha um inabalável sentido de justiça. Separava as ideias das pessoas que defendem certas ideias, o que é um índice de civilização. Camiliano de Braga e surrealista lisboeta, era vivo e polémico, mas algumas vezes dei com ele perdido num silêncio lá longe, talvez meditativo ou talvez melancólico. Era um jornalista que eu gostava de ler e um homem que eu gostava de encontrar. À mesma mesa.
21.5.08
Arte & beleza (2)
O crítico americano Andrew Sarris escreveu: «[Vincente] Minnelli believes more in beauty than in art». É a crítica habitual ao decorativismo irrealista de Minnelli, de quem aliás não direi mal porque idolatro Some Came Running. Mas é verdade que existe muita gente com o gosto da beleza mas sem interesse pelas artes ou, mais que isso, pela dimensão artística da beleza. São essas pessoas «pobres de espírito»? Ou elevar toda a beleza à categoria de arte é que é uma conduta malsã?
20.5.08
Arte & beleza (1)
O quadro dos 21 milhões («Benefit's Supervisor Sleeping») é uma imagem francamente feia, uma mulher disforme deitada brutamente num sofá. Mas Lucian Freud herdou do avô um compromisso radical com a verdade e mostra a carne como ela é, e não como ela se vende no cinema e na publicadade. De desconhecidos à Raínha Isabel, passando por Kate Moss grávido e por ele mesmo nada favorecido, fez a carne humana frágil, manchada, enrugada, flácida, estriada, compacta. Bacon foi mais visceral, mas ninguém pintou a carne assim, nem memso Schiele. Com Lucian Freud a arte não equivale à beleza, porque a beleza não equivale à beleza. Mas desta verdade nua e crua nasceu uma terrível beleza.
Troféus
Roman Abramovich comprou um Lucian Freud pelo valor recorde de 21 milhões de euros. Antes, já tinha adquirido um tríptico de Bacon. E certamente terá outros leilões em agenda. Nada de anormal: a arte é um bom investimento e comprar quadros dá uma legitimação cultural que as classes endinheiradas geralmente apreciam.
O mais interessante é que a ideia talvez tenha partido da namorada do milionário russo, a modelo Dasha Zhukova, que pelos vistos tem gostos artísticos e até pretende abrir uma galeria na Rússia. Uma mulher-troféu que compra troféus (por interposta fortuna), eis um conceito genial.
O mais interessante é que a ideia talvez tenha partido da namorada do milionário russo, a modelo Dasha Zhukova, que pelos vistos tem gostos artísticos e até pretende abrir uma galeria na Rússia. Uma mulher-troféu que compra troféus (por interposta fortuna), eis um conceito genial.
19.5.08
Maio #4: as betas maoístas
Caroline de Bendern, aristocrata «revolucionária», não prova nada? E que tal a Princesa Anne Wiazemsky (dos príncipes russsos Vyazemsky), neta do romancista católico François Mauriac, actriz em La Chinoise, «maoísta» e namorada de Godard?
Ao início
Um dirigente catalão disse que «os processos de independência passam por três fases: ridicularização, hostilidade e aceitação».
Eu já passei por alguns «processos de independência» e garanto que depois da «aceitação» volta tudo outra vez ao início.
Eu já passei por alguns «processos de independência» e garanto que depois da «aceitação» volta tudo outra vez ao início.
Miss Blinking Eyelids
Tenho encontrado poucas mulheres que sejam caricaturas (homens, muitos). Ela é uma das poucas. Vem em todos os dicionários em «arrivista». Botões desapertados e um imparável batimento de pestanas, traz toda a gente pelo beicinho. Como nunca sofreu, finge que é sensível. Como sabe que não dura mais que 4 ou 5 anos, age como se tivesse mil anos de reinado. É tão esperta que fez toda a gente acreditar que é inteligente. Como tem poucas convicções, abusa da veemência. E como suspeita de que as pessoas suspeitam dela, escolheu uma espécie de cinismo aguado, característico dos sentimentais. Vai longe. E depois, como os outros da sua laia, não vai longe.
17.5.08
O tonto-tropicalismo
Entre os argumentos mais tontos dos acordistas, um deles apareceu com a sua especial histeria. É aquilo a que Vasco Graça Moura chamou o «tonto-tropicalismo». Há um contigente de intelectuais e outros cidadãos que vivem em adoração pelo Brasil e adoptam a regra bacoca de que «o Brasil tem sempre razão». Nos nossos jornais, os discos brasileiros, por exemplo, são todos óptimos. Como o Acordo é tido como um bom negócio para o Brasil, os nossos tonto-tropicalistas vieram todos gritar a plenos pulmões pelo Acordo, coisa que não preocupava nenhum cidadão nacional. O argumento é de que a língua não é nossa, porque a antiguidade não conta nada. É claro que a antiguidade não conta nada: mas a quantidade também não conta nada. A língua portuguesa é de todos os falantes da língua: não é nossa por sermos mais antigos nem dos brasileiros por serem mais numerosos.
O Acordo
O Acordo Ortográfico de 1990 foi ontem oficialmente adoptado em Portugal. Estive contra e continuo contra. Os apologistas do Acordo invocam uma plêiade de argumentos pragmáticos (alguns deles respeitáveis), mas não encontrei motivos realmente culturais para mexer na ortografia do português. E eu não subscrevo as críticas «nacionalistas» ou «económicas» ao Acordo: sou adversário do Acordo apenas por razões culturais: não concordo que se abandone a etimologia em favor da fonética. É uma machadada na história da língua e mais um passo no abastardamento da linguagem. Agora tudo vai sendo legítimo «desde que se perceba».
Sou contra o Acordo como fui contra a TLEBS e como achei discutíveis algumas decisões do Dicionário da Academia. Se não somos exigentes com a língua não somos exigentes com nada. O Acordo pode vir a ter alguma utilidade prática, mas não contribui para uma política da língua portuguesa. Quem acha que a política se faz com decretos ficou naturalmente contentinho com este Acordo. Mas uma verdadeira política da língua não depende de medidas fáceis e superficiais como um Acordo Ortográfico: precisa de medidas urgentes e difíceis como um currículo decente nas Humanidades, uma edição acessível e cuidada dos clássicos, uma promoção empenhada da cultura portuguesa no estrangeiro, uma atenção aos leitorados desamparados, tudo isso que custa esforço e dinheiro e não se faz com umas simples assinaturas.
Sou contra o Acordo como fui contra a TLEBS e como achei discutíveis algumas decisões do Dicionário da Academia. Se não somos exigentes com a língua não somos exigentes com nada. O Acordo pode vir a ter alguma utilidade prática, mas não contribui para uma política da língua portuguesa. Quem acha que a política se faz com decretos ficou naturalmente contentinho com este Acordo. Mas uma verdadeira política da língua não depende de medidas fáceis e superficiais como um Acordo Ortográfico: precisa de medidas urgentes e difíceis como um currículo decente nas Humanidades, uma edição acessível e cuidada dos clássicos, uma promoção empenhada da cultura portuguesa no estrangeiro, uma atenção aos leitorados desamparados, tudo isso que custa esforço e dinheiro e não se faz com umas simples assinaturas.
16.5.08
Jennifer Jason Leigh
Foi cega e surda e muda em «Eyes of a Stranger» (1981), uma anoréxica com 39 kg em «The Best Little Girl in the World» (1981), uma adolescente que aborta em «Fast Times at Ridgemont High» (1982), raptada e violada por bandidos medievais em «Flesh & Blood» (1985), desmembrada por um camião em «The Hitcher» (1986), violada em grupo em «Last Exit to Brooklyn» (1990), junkie em «Rush» (1991), uma «flatmate» psicótica em «Single White Female» (1992), uma operadora de sexo por telefone em «Short Cuts» (1993), uma viciada em comprimidos em «Dolores Claiborne» (1995), uma cantora frustrada e drogada em «Georgia» (1995), uma pequena criminosa em «Kansas City» (1996), uma dependente da realidade virtual em «eXistenZ» (1999), barbaramente assassinada em «In the Cut» (2003) e mais uma vez prostituta em «The Machinist» (2004). Se há actriz que tenha assumido como sua missão a representação das vítimas, essa actriz é Jennifer Jason Leigh. [...]
(no Público de amanhã)
(no Público de amanhã)
15.5.08
You can't always get
Mick Jagger explicou que «you can’t always get what you want», acrescentando que «if you try sometime» talvez «you get what you need».
Umas vezes acho esta ideia lúcida e outras vezes moralista. É verdade que reconhece uma «sabedoria da vida» acima de nossa ignorância. Mas aquele «what you need» definido por terceiros é terrivelmente paternalista.
Hoje, num filme de 1953, ouvi esta frase simples dita por Robert Ryan: «A man needs what he likes». E na sua escorreiteza sem pretensões, achei o aforismo mais consequente.
Nenhum de nós sabe aquilo que merece (conceito estúpido, «merecer»). Todos nós sabemos (mais ou menos) aquilo que queremos. E aquilo de que precisamos é aquilo de que gostamos. Há convenções e sacrifícios e tal, mas isso são regras que aceitamos. No mais, «a man needs» apenas «what he likes».
Umas vezes acho esta ideia lúcida e outras vezes moralista. É verdade que reconhece uma «sabedoria da vida» acima de nossa ignorância. Mas aquele «what you need» definido por terceiros é terrivelmente paternalista.
Hoje, num filme de 1953, ouvi esta frase simples dita por Robert Ryan: «A man needs what he likes». E na sua escorreiteza sem pretensões, achei o aforismo mais consequente.
Nenhum de nós sabe aquilo que merece (conceito estúpido, «merecer»). Todos nós sabemos (mais ou menos) aquilo que queremos. E aquilo de que precisamos é aquilo de que gostamos. Há convenções e sacrifícios e tal, mas isso são regras que aceitamos. No mais, «a man needs» apenas «what he likes».
Networking
«Ela outra dia telefonou-me inesperadamente e jantámos juntos».
«E o que é que ela queria?»
«Networking».
«E o que é que ela queria?»
«Networking».
O hífen
Sendo eu politicamente um conservador-liberal, subscrevo quase inteiramente (excepto a segunda metade do primeiro parágrafo) este texto liberal-conservador que o Pedro Lomba assina hoje no DN:
O liberal-conservador não é nem um liberal puro, nem um conservador puro. Aliás, o principal inimigo do liberal-conservador é o purista de qualquer tendência. A verdade é que o liberal-conservador embirra com os liberais puros que nos dão uma má fama ao fazerem-se passar por nós, liberais-conservadores. Os liberais puros reduzem a política à economia, não toleram desvios ao que defendem e vendem o liberalismo como um plano quinquenal. (…) O liberal-conservador também não vai à bola com o conservador puro. O conservador puro tem a dificuldade de conviver mal com a liberdade dos outros (…) Um liberal-conservador está sempre a vigiar a temperatura das suas convicções. Se o termómetro dispara para cima ou para baixo ele age logo com medidas temperadoras. Como liberal preza a independência pessoal contra todas as formas de sujeição, servilismo e pobreza. Como conservador reconhece que a independência absoluta é um projecto impossível e que há um módico de autoridade e hierarquia que temos de aceitar. Como liberal é individualista e pelo mercado. Como conservador reconhece que os indivíduos vivem melhor em comunidades socialmente coesas e organizadas. Como liberal é optimista. Como conservador é pessimista sobre o seu optimismo. Como liberal aprecia a cultura de massas. Como conservador não diz que é arte qualquer saloiice. Como liberal acredita. Como conservador desconfia.
O hífen é importante porque, como o Pedro indica, os conservadores e liberais «puros» têm vícios imutáveis: o pouco amor à liberdade de um lado e o determinismo económico do outro. Eu, que sou conservador por educação e liberal por aprendizagem, prefiro por isso esse estatuto periclitante do «hífen». Claro que a ordem dos factores (antes e depois do hífen) não é arbitrária. Explico a minha preferência citando Tocqueville: «aristocrate de coeur mais démocrate de raison».
O liberal-conservador não é nem um liberal puro, nem um conservador puro. Aliás, o principal inimigo do liberal-conservador é o purista de qualquer tendência. A verdade é que o liberal-conservador embirra com os liberais puros que nos dão uma má fama ao fazerem-se passar por nós, liberais-conservadores. Os liberais puros reduzem a política à economia, não toleram desvios ao que defendem e vendem o liberalismo como um plano quinquenal. (…) O liberal-conservador também não vai à bola com o conservador puro. O conservador puro tem a dificuldade de conviver mal com a liberdade dos outros (…) Um liberal-conservador está sempre a vigiar a temperatura das suas convicções. Se o termómetro dispara para cima ou para baixo ele age logo com medidas temperadoras. Como liberal preza a independência pessoal contra todas as formas de sujeição, servilismo e pobreza. Como conservador reconhece que a independência absoluta é um projecto impossível e que há um módico de autoridade e hierarquia que temos de aceitar. Como liberal é individualista e pelo mercado. Como conservador reconhece que os indivíduos vivem melhor em comunidades socialmente coesas e organizadas. Como liberal é optimista. Como conservador é pessimista sobre o seu optimismo. Como liberal aprecia a cultura de massas. Como conservador não diz que é arte qualquer saloiice. Como liberal acredita. Como conservador desconfia.
O hífen é importante porque, como o Pedro indica, os conservadores e liberais «puros» têm vícios imutáveis: o pouco amor à liberdade de um lado e o determinismo económico do outro. Eu, que sou conservador por educação e liberal por aprendizagem, prefiro por isso esse estatuto periclitante do «hífen». Claro que a ordem dos factores (antes e depois do hífen) não é arbitrária. Explico a minha preferência citando Tocqueville: «aristocrate de coeur mais démocrate de raison».
14.5.08
Bananas
Parece que nos livrámos em definitivo do régulo ilhéu. E logo com uma declaração pública saída de um romance neo-realista da década de 1940: «(…) uma burguesia inculta, autopromovida nos errados convencionalismos sociais vigentes e alimentada pela propaganda (...)».
Maio #3: figli del popolo vs figli di papà
Março de 1968. Roma assiste a violentos confrontos entre estudantes e a polícia. Marxista paradoxal (um bem escasso), Pier Paolo Pasolini escreveu um poema sobre a luta de classes que inclui os seguintes versos: «vós, amigos (mesmo estando / do lado certo), éreis os ricos, / enquanto os polícias (que estavam do lado / errado) eram os pobres. Bela vitória, / a vossa».
13.5.08
Apagão
Não sou entusiasta de Robert Rauschenberg (1925-2008), mas gosto muitíssimo de Erased de Kooning Drawing (1953), que consiste, como o nome indica, num desenho de Willem de Kooning laboriosamente apagado (com a concordância do mestre). O «apagão» deu origem a um objecto híbrido composto por «traces of ink and crayon on paper». É uma das maneiras mais notáveis de «matar o pai» que conheço. Uma iconoclastia consentida pelo próprio ícone.
12.5.08
A coisa amada
É evidente que às vezes os imagino na cama. Não se transforma o amador na cousa amada, mas transformo o que dela sei e imagino, tudo o que eu disse e nem tive tempo de dizer mais, agora em lábios que ela deseja, os pequenos abandonos controlados dela, geografias que conheço. Por virtude do muito imaginar vejo o corpo dela, entre sombras e lençóis, e o corpo dele, mais destapado, digno de, aquilo que o meu corpo deseja também desejam eles os dois em uníssono, eu imaginando e eles transformados, duas pernas no meio de duas, uma pressão no ombro, o fôlego contagioso. E nessa imaginação estou transformado. Por virtude daquele corpo que ela recebe sem defesas vejo uma justiça feita com sombras e lençóis, matéria material, e eu imaginando o que imaginei, e transformado não na cousa amada mas em simples cousa. Imaginando e transformado em coisa.
Aos trinta e tantos
Aos trinta e poucos, trinta e tantos, os jogadores de futebol cessam actividade. Aos trintas, já falta condição física que aguente meses de competição, noventa minutos em campo, a concorrência de jogadores mais jovens. Aos trinta e tantos, é boa idade para abandonar o jogo.
9.5.08
Relâmpagos (2)
Há momentos como este (uma efeméride) em que custa mais aquele all quiet on the western front que se exibe como defesa. A memória dói tanto como a realidade. Mas é como um relâmpago: conto os segundos e espero que passe.
Relâmpagos (1)
(…) I cross the street, I run into the movies or a bar, I buy a drink, I speak to the nearest stranger—anything that can blow your candles out! —for nowadays the world is lit by lightning! Blow out your candles Laura (…).
(Tom Wingfield sobre a sua irmã Laura Wingfield, The Glass Menagerie, 1944)
(Tom Wingfield sobre a sua irmã Laura Wingfield, The Glass Menagerie, 1944)
8.5.08
Bidé
We were great in bed. It was usually on the way to the bidet when the trouble began. Assim descreveu Frank Sinatra a sua relação com Ava Gardner.
Connosco, foi um bocado ao contrário: o «bidé» sempre mais proveitoso que a «cama». Cada um tem as tragédias que merece.
Connosco, foi um bocado ao contrário: o «bidé» sempre mais proveitoso que a «cama». Cada um tem as tragédias que merece.
7.5.08
Tem hoje início mais uma edição do ciclo A Justiça no Cinema, organizado pela Associação Jurídica do Porto, a Associação Sindical dos Juízes Portugueses, o Cineclube do Porto e a Medeia Filmes. Esta noite, às 21.30, no Cine-Estúdio do Teatro do Campo Alegre (Porto), será exibido o filme Ruptura (2007), de Gregory Hoblit, seguido de um debate com a participação do juiz-desembargador Artur Oliveira, do advogado Duarte Nuno Correia e do licenciado Pedro Mexia.
Já não há valores
A secção Gay da Time Out traz uma entrevista à coreógrafa Olga Roriz que contém algumas revelações chocantes: «Neste momento, a maior parte das companhias [de dança] está cheia de heterossexuais. Quando comecei eles eram mesmo todos gays». E mais: «(…) muitos homens hoje vão para o Conservatório porque sabem que vão encontrar miúdas giras».
Homens que se tornam bailarinos para conhecerem miúdas giras. É toda uma civilização em crise.
Homens que se tornam bailarinos para conhecerem miúdas giras. É toda uma civilização em crise.
Maio #2: «mas pelo menos foi uma revolução sexual»
Um estudo sobre comportamentos sexuais do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa chegou a algumas conclusões curiosas. Apenas 1/3 das mulheres inquiridas disseram ter sempre prazer nas relações sexuais. 1/3 das mulheres manifestaram desinteresse pela actividade sexual. O terço que falta, suponho, tem prazer de vez em quando.
Maio #1: Direito de visita
Um movimento que começa com uma reivindicação do «direito de visita» aos dormitórios das raparigas não pode ser totalmente mau.
5.5.08
Política
Ricky Gervais não é um sujeito especialmente politizado. Em algumas entrevistas assume o seu ateísmo e a defesa dos «direitos dos animais», e chega. Também não é exactamente uma agenda «reaccionária». Como se explica então que o volume 2 do seu espectáculo a solo, Politics, esteja cheio de piadas reaças? Exemplos: farpas a Gandhi e aos seus «óculos do National Health Service», farpas à mudança da «idade do consentimento» gay («não vi ninguém de 16 anos nessa marcha»), farpas a John Lennon e a esse acto de «resistência» que consiste em ficar na cama. Em certos momentos vemos que Gervais choca a plateia, porque a plateia tem alguns valores «de esquerda» como os valores decentes. Se o Ocidente «virou à direita» desde a queda do bloco soviético, os objectos de hagiografia (Che) e escárnio (a religião) ainda são em grande medida ditados pela esquerda. É uma vaga noção de «sentido da História» que sobreviveu e não creio que alguma vez se extinga. Daí que seja aliciante fazer humor «de direita» (mesmo quando não se é de direita): porque isso choca muita gente. E o humor que não choca ninguém não vale nada.
Dice qualcosa di destra
Totalmente de acordo. Não sei se Pedro Passos Coelho é um bom candidato. Sei aliás muito pouco sobre Passos Coelho. Mas sei que ao Correio da Manhã disse: « (…) nada justifica que o Estado detenha bancos, estações de televisão ou que detenha outras empresas». E sei que um partido que quer os votos da direita devia de vez em quando dizer assim alguma coisa de direita.
E agora uma canelada
Dizia esta senhora que enquanto se não demonstrasse que as mulheres seduziam os homens, havia de ser indulgente com as seduzidas.
(Camilo)
(Camilo)
4.5.08
Desacordo
(...) não podemos deixar de manifestar o nosso desacordo e a nossa mais profunda indignação acerca das modificações previstas para a ortografia portuguesa que, além de contraditórias, só irão causar mais confusão para quem aprende e, mais importante, fala o português.
O próprio acordo entra em contradição variadas vezes. Está previsto que se retirem os “c’s” e os “p’s” mudos, desprezando a etimologia das palavras, mas também está previsto que se mantenham os “h’s” mudos (“homem”, “harmonia”), devido à etimologia das palavras. Onde está a coerência nisto?
Para além deste facto, a eliminação dos “c’s” e dos “p’s” mudos irá causar imensa confusão para quem aprende e fala a língua portuguesa em Portugal, visto que vai contra as regras da pronúncia do português nesse país. Isto porque, apesar de não se lerem explicitamente, os “c’s” e os “p’s” são essenciais para indicar a abertura da vogal que lhes precede. Eis alguns exemplos práticos que o demonstram claramente:
• Na palavra “cação”, o primeiro “a” é fechado; lê-se, portanto, “câ-ção”. Na palavra “facção”, o primeiro “a” é aberto pela letra “c” que lhe sucede; lê-se, portanto, “fá-ção”. Ora, o acordo estabelece que se escreva “facção” como se escreve “cação”: “fação”. Mas nesse caso, qual a pronúncia correcta desta palavra? Segundo as regras da pronúncia do português de Portugal, deveria ler-se “fâ-ção”, visto que não há nenhum “c” que abra a vogal “a”!
• Na palavra “adoçar”, a letra “o” tem o valor de “u”; lê-se, portanto, “a-du-çar”. Na palavra “adopção”, a letra “o” é aberta pela letra “p” que lhe sucede; lê-se, portanto, “a-dó-ção”. Ora, o acordo estabelece que se escreva “adopção” como se escreve “adoçar”: “adoção”. Mas nesse caso, qual a pronúncia correcta desta palavra? Segundo as regras da pronúncia do português de Portugal, deveria ler-se “a-du-ção”, visto que não há nenhum “p” que abra a vogal “o”!
• Na palavra “tropeção”, a letra “e” é muda; lê-se, portanto, “tru-p’-ção”. Na palavra “inspecção”, a letra “e” é aberta pela letra “c” que lhe sucede; lê-se portanto, “ins-pé-ção”. Ora, o acordo estabelece que se escreva “inspecção” como se escreve “tropeção”: “inspeção”. Mas nesse caso, qual a pronúncia correcta desta palavra? Segundo as regras da pronúncia do português de Portugal, deveria ler-se “ins-p’-ção”, visto que não há nenhum “c” que abra a vogal “e”!
Evidentemente que poderíamos continuar com um vasto rol de exemplos, mas estes parecem-nos bastante elucidativos das graves consequências que estas modificações irão trazer.
(assine aqui a petição contra o Acordo Ortográfico)
O próprio acordo entra em contradição variadas vezes. Está previsto que se retirem os “c’s” e os “p’s” mudos, desprezando a etimologia das palavras, mas também está previsto que se mantenham os “h’s” mudos (“homem”, “harmonia”), devido à etimologia das palavras. Onde está a coerência nisto?
Para além deste facto, a eliminação dos “c’s” e dos “p’s” mudos irá causar imensa confusão para quem aprende e fala a língua portuguesa em Portugal, visto que vai contra as regras da pronúncia do português nesse país. Isto porque, apesar de não se lerem explicitamente, os “c’s” e os “p’s” são essenciais para indicar a abertura da vogal que lhes precede. Eis alguns exemplos práticos que o demonstram claramente:
• Na palavra “cação”, o primeiro “a” é fechado; lê-se, portanto, “câ-ção”. Na palavra “facção”, o primeiro “a” é aberto pela letra “c” que lhe sucede; lê-se, portanto, “fá-ção”. Ora, o acordo estabelece que se escreva “facção” como se escreve “cação”: “fação”. Mas nesse caso, qual a pronúncia correcta desta palavra? Segundo as regras da pronúncia do português de Portugal, deveria ler-se “fâ-ção”, visto que não há nenhum “c” que abra a vogal “a”!
• Na palavra “adoçar”, a letra “o” tem o valor de “u”; lê-se, portanto, “a-du-çar”. Na palavra “adopção”, a letra “o” é aberta pela letra “p” que lhe sucede; lê-se, portanto, “a-dó-ção”. Ora, o acordo estabelece que se escreva “adopção” como se escreve “adoçar”: “adoção”. Mas nesse caso, qual a pronúncia correcta desta palavra? Segundo as regras da pronúncia do português de Portugal, deveria ler-se “a-du-ção”, visto que não há nenhum “p” que abra a vogal “o”!
• Na palavra “tropeção”, a letra “e” é muda; lê-se, portanto, “tru-p’-ção”. Na palavra “inspecção”, a letra “e” é aberta pela letra “c” que lhe sucede; lê-se portanto, “ins-pé-ção”. Ora, o acordo estabelece que se escreva “inspecção” como se escreve “tropeção”: “inspeção”. Mas nesse caso, qual a pronúncia correcta desta palavra? Segundo as regras da pronúncia do português de Portugal, deveria ler-se “ins-p’-ção”, visto que não há nenhum “c” que abra a vogal “e”!
Evidentemente que poderíamos continuar com um vasto rol de exemplos, mas estes parecem-nos bastante elucidativos das graves consequências que estas modificações irão trazer.
(assine aqui a petição contra o Acordo Ortográfico)
O esqueleto
Conheço pessoas que imaginam que o pessimismo (como categoria) varia com a «disposição» ou com os «acontecimentos», mas o pessimismo não é nada disso, mesmo nada disso, o pessimismo está cá sempre, como o esqueleto, não muda, não progride, não desiste, e quem testa o meu pessimismo convém que não tenha medo de esqueletos.
No sentido da corrente
Nunca conheci ninguém que nadasse em sentido contrário à corrente. Conheço gente que faz coisas complicadas, corajosas, espantosas, mas sempre sempre no sentido da corrente. Toda a gente aceita um «sistema» e exerce a sua liberdade dentro desse sistema. Ninguém nada em direcção à nascente, vão sempre para a foz. Há pessoas de quem gosto, que admiro, que invejo, mas todas sem excepção agiram de modo previsível, de acordo com certas leis sociais ou biológicas, nunca ninguém fez nada que um «especialista» não explicasse como exemplo de manual. Talvez perguntem se fico triste com essa evidência. Talvez eu prefira não responder.
Azar ao jogo
The Cooler (2002) é um filme que oferece a William H. Macy mais um dos seus típicos papéis de «loser» (como em Fargo, Edmond, etc). Neste filme de Wayne Kramer, Macy é um «cooler», funcionário de um casino cuja função é trazer azar aos jogadores que estão em noite sortuda. Ele é um tipo naturalmente azarado, e parece que contamina aqueles de quem se aproxima. O método talvez seja duvidoso, mas funciona: os jogadores que ganhavam começam a perder quando ele chega. Quando Macy decide deixar aquela vida, o seu patrão (um estupendo Alec Baldwin) paga a uma atraente empregada de mesa (Maria Bello) para que ela o mantenha pelo beicinho. O que não estava previsto é que ela se apaixonasse por aquele desgraçado e lhe trouxesse sorte, uma sorte que depois também contagia toda a gente. «Mr Cooler» encontrou essa figura mítica das salas de jogos, «Lady Luck». Mas sorte ao amor & sorte ao jogo é demasiado, sobretudo tendo em conta que a profissão de Macy consistia especificamente em ter azar. The Cooler não está isento de fragilidades, mas como «character study» é mais um triunfo para Macy (um dos actores fetiche de David Mamet). E consegue dar a volta ao provérbio do jogo e do amor, com alguma dose de romantismo e outra de fatalismo.
Uma questão de perspectiva
Não, é claro que Caroline não tem o «braço direito em volta da cintura», aquilo é o casaco atado com um nó, e eu já tinha visto a foto tantas vezes e sabia isso, mas quando escrevi o texto, com uma reprodução pequenina da foto ao lado do teclado, vi um braço onde estava um casaco, e descrevi mal a foto, baseado nos sentidos e não na memória. E no dia seguinte quando li a crónica no jornal pensei «mas qual braço?». E sei que não foi a primeira nem a última vez que errei por uma questão de perspectiva.
3.5.08
Maverick
Boris Johnson, o menos «respeitável» dos Tories, é o novo mayor de Londres. De entre os políticos europeus concorrentes a eleições directas para cargos unipessoais, apenas Sarkozy e Cavaco foram eleitos com mais votos.
2.5.08
Caroline de Bendern
Os revolucionários veneram símbolos e multidões. A revolução é uma mitologia, e a mitologia também consiste em adequar uma realidade a uma ideia. Pensemos em Caroline de Bendern, a “Marianne” do Maio de 68. Uma rapariga loura de cabelo curto (ou apanhado?), pescoço e feições esculturais, braço direito em volta da cintura, casaquinho com botões, sentada aos ombros de um homem que não vemos, agitando uma bandeira vietnamita. É a mais memorável das raparigas de 1968, uma Julie Christie da rue Saint-Antoine. Uma mulher revolucionária é uma coisa, mas uma mulher bonita é sempre outra coisa. [...]
(no Público de amanhã)
«Eles»
David Mamet nasceu em 1947, em Chicago, numa família judaica. Fundador da Atlantic Theater Company, tornou-se conhecido com The Duck Variations (1972), Sexual Perversity in Chicago (1974) e American Buffalo (1975). Essas três peças têm a mesma matriz: enredos minimais centrados em diálogos bruscos e obscenos entre homens (Mamet tem o melhor ouvido do teatro americano). Sexual Perversity e The Woods (1977) são textos sobre a «masculinidade» e a sexualidade nas sociedades actuais; mas Mamet sempre teve também uma costela mais especificamente «política»: em American Buffalo os pequenos criminosos não passavam da fase de discussão dos seus pequenos crimes, esquema aperfeiçoado em Glengarry Glen Ross (1984), que ganhou o Pulitzer, e que segue as conspirações de agentes imobiliários corruptos, e em Speed-the-Plow (1988), com dois produtores de Hollywood que discutem a arte & o sucesso. Todos eles congeminam os mesmos esquemas fraudulentos e soltam as mesmas frases ofensivas. Essa veia mais polémica atingiu o auge com uma peça sobre o assédio sexual, Oleanna (1992), odiada pelas feministas. Algumas peças mais recentes apostam numa maior complexidade narrativa e em mudanças do esquema básico: Cryptogram (1995) passa-se nos anos 1950 e Boston Marriage (1999) é uma história de mulheres. Mas há muito que David Mamet já não é apenas um dramaturgo.
Na verdade, desde 1981 (O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes) que ele trabalha como argumentista, muitas vezes para ganhar dinheiro que financie projectos pessoas. Colaborou na versão cinematográfica de várias peças suas (como o inferno sexual de Edmond, baseado num texto de 1982) e também se tornou um cineasta de dramas labirínticos, uma carreira prolífica que começou com os vigaristas de House of Games (1987) e cujo último capítulo é um drama de artes marciais, Redbelt (2008). Escreveu ainda três romances, pequenos ensaios, textos sobre o anti-semitismo e contra o Método. Teve uma série de televisão (The Unit) e colabora no blogue de celebridades The Huffington Post. A preguiça não é um dos seus defeitos.
Politicamente, tem sido uma caixinha de surpresas. Depois de uma sátira ao bushismo (November, 2007), escreveu um artigo no esquerdista Village Voice dizendo que já não é um «brain-dead liberal» (sic) como noutros tempos. Ainda não se percebeu bem o que é agora. “Liberal” ou não, Mamet sempre teve (e mantém) uma visão crítica dos mecanismos sociais e económicos do capitalismo, como víamos já em Um Conto Americano / The Water Engine (1977), que agora estreia em Lisboa. The Water Engine nasceu como peça radiofónica e em 1978 chegou à Broadway, juntamente com um monólogo afim (Mr. Happiness). A personagem principal da peça é Charles Lang, que inventou um motor que trabalha a água. Quando tenta registar a patente da sua criação, cai nas malhas de dois advogados mafiosos que não olham a meios para se apropriarem daquela máquina revolucionária. Num texto chamado “Concerning ‘The Water Engine’” (recolhido na colectânea A Whore’s Profession, 1994), Mamet explica que entre os mitos mais frequentes está a ideia de que «eles» 0 suprimem por todos os meios as ideias que beneficiam o cidadão comum. Quem são «eles»? São o Governo, as Grandes Empresas, enfim, as instituições, esses colectivos que Mamet acha que levam sempre a uma grande amoralidade. Para acentuar a perversidade do «sistema», a acção de The Water Engine decorre durante a Grande Depressão, quando o American Dream era tudo menos um sonho.
(no Ipsilon de hoje)
Na verdade, desde 1981 (O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes) que ele trabalha como argumentista, muitas vezes para ganhar dinheiro que financie projectos pessoas. Colaborou na versão cinematográfica de várias peças suas (como o inferno sexual de Edmond, baseado num texto de 1982) e também se tornou um cineasta de dramas labirínticos, uma carreira prolífica que começou com os vigaristas de House of Games (1987) e cujo último capítulo é um drama de artes marciais, Redbelt (2008). Escreveu ainda três romances, pequenos ensaios, textos sobre o anti-semitismo e contra o Método. Teve uma série de televisão (The Unit) e colabora no blogue de celebridades The Huffington Post. A preguiça não é um dos seus defeitos.
Politicamente, tem sido uma caixinha de surpresas. Depois de uma sátira ao bushismo (November, 2007), escreveu um artigo no esquerdista Village Voice dizendo que já não é um «brain-dead liberal» (sic) como noutros tempos. Ainda não se percebeu bem o que é agora. “Liberal” ou não, Mamet sempre teve (e mantém) uma visão crítica dos mecanismos sociais e económicos do capitalismo, como víamos já em Um Conto Americano / The Water Engine (1977), que agora estreia em Lisboa. The Water Engine nasceu como peça radiofónica e em 1978 chegou à Broadway, juntamente com um monólogo afim (Mr. Happiness). A personagem principal da peça é Charles Lang, que inventou um motor que trabalha a água. Quando tenta registar a patente da sua criação, cai nas malhas de dois advogados mafiosos que não olham a meios para se apropriarem daquela máquina revolucionária. Num texto chamado “Concerning ‘The Water Engine’” (recolhido na colectânea A Whore’s Profession, 1994), Mamet explica que entre os mitos mais frequentes está a ideia de que «eles» 0 suprimem por todos os meios as ideias que beneficiam o cidadão comum. Quem são «eles»? São o Governo, as Grandes Empresas, enfim, as instituições, esses colectivos que Mamet acha que levam sempre a uma grande amoralidade. Para acentuar a perversidade do «sistema», a acção de The Water Engine decorre durante a Grande Depressão, quando o American Dream era tudo menos um sonho.
(no Ipsilon de hoje)
Tories 44% Lib Dems 25% Labour 24%
Gordon Brown, exemplo acabado do político respeitável, teve ontem o pior resultado eleitoral do Labour desde 1968.
1.5.08
A respeitabilidade
O projecto político de Manuela Ferreira Leite é sobretudo um projecto de respeitabilidade. Respeitável tem dois significados diferentes na língua portuguesa e, já agora, na política. Há aqueles políticos que são respeitáveis porque são merecedores de respeito, embora não votemos neles. E há aqueles políticos que são respeitáveis porque se tornam suficientemente excepcionais e motivadores para nos convencerem a votar neles. O problema de Manuela Ferreira Leite é ser uma política respeitável apenas neste primeiro sentido.
Pedro Lomba, no DN de hoje
Pedro Lomba, no DN de hoje