Os Sex Pistols, entre dois urros e um incisivo cariado, juravam que «
she ain’t no human being». Mas estavam redondamente enganados. Ao longo do seu reinado, Isabel II passou por tempos difíceis e mudanças radicais, e tem tido mais dignidade a enfrentar esses desafios que vinte e três famílias reais e trinta e duas famílias republicanas juntas.
Uma das mais divertidas «homenagens» aos 80 anos da Rainha foi
The Uncommon Reader, uma ficção de Alan Bennett que saiu em 2006 na
London Review of Books e foi publicada em livro este ano (Faber & Faber). Embora seja mais abertamente uma sátira, o texto tem alguma afinidade com
The Queen(Stephen Frears/Peter Morgan), nesse tom respeitoso face ao enigma sereno que é a Rainha.
Bennett é perito naquilo a que um crítico chamou «crueldade benevolente», e
The Uncommon Reader segue precisamente esse caminho. A história é simples: a Rainha entra uma vez, meio por acidente, numa biblioteca itinerante, e requisita um livro por simples cortesia. Em poucas semanas, ganha o bichinho da leitura. E não quer ler apenas os clássicos ou ou contemporâneos inócuos: quer ler tudo o que apanhe. A princípio, esse novo hábito é visto como uma bizarria inócua; mas aos poucos a sua Casa Civil vai ficando verdadeiramente inquieta com o vício real. Os cães roem-lhe um Ian McEwan, a segurança detona um romance de Anita Brookner que tomam por uma bomba. E num banquete oficial, a Rainha embaraça o presidente francês ao perguntar que opinião tem ele sobre Jean Genet.
A Rainha percebe que está rodeada de incultos. Confessa aliás que só conheceu um político que lia livros: MacMillan. E, como refúgio e protesto, desata também a escrever. Quando decide publicar um livro da sua autoria, reconhece que é uma decisão inédita e melindrosa. E anuncia a sua abdicação.
Bennett capta os pormenores deliciosos de snobismo e filistinismo, os tiques de linguagem, o enfatuado príncipe consorte, os nervosíssimos chefes do «staff», os intelectuais sem jeito. O mais delicioso é talvez o confronto da Rainha com um universo – o da literatura – que lhe é intrinsecamente estranho, e por isso mesmo fascinante. Ela reage de acordo com a sua classe social, a sua experiência de vida, a sua educação antiga. Assim, perante os vagares narrativos de Henry James exclama enfadada «
Oh, do get on». E explicando quem foi Proust, tem esta magnífica tirada: «
Terrible life, poor man. A martyr to asthma, apparently and really someone to whom one would have wanted to say, ‘oh do pull your socks up’. But literature is full of those. The curious thing about him was that when he dipped his cake in his tea (disgusting habit) the whole of his past life came back to him. Well, I tried it and it had no effect on me at all».