30.9.07

Your stupid little doll



Um grande momento da série de animação The Critic (1994): Don Corleone como mordomo de criancinhas.

Quando estivemos doentes

I got a flask inside my pocket, we can share it on the train
And if you promise to stay conscious I will try and do the same
We might die from medication, but we sure killed all the pain
But what was normal in the evening by the morning seems insane


(Conor Oberst)

29.9.07

Um coração torto

No seu último álbum, Conor Oberst ajusta contas com a ex, Winona Ryder, a quem chama «camaleão chic» (ouch). E em termos de ajuste de contas, este verso é do mais afiado: «And never trust a heart that is so bent it can't break».

Segunda parte

Já comprei bilhete para Blonde Redhead. Os Interpol fazem a segunda parte.

Do domínio da luta (2)



Num texto de 1969 chamado «Revolution and sex» (incluído na colectânea Revolutionaries, 1973), o historiador inglês Eric Hobsbawn, comunista dos quatro costados, desmonta a ideia de que há uma ligação entre os «movimentos sociais revolucionários» e a «permissividade» sexual.

Incomodado com a componente «comportamental» da New Left americana e do Maio, Hobsbawn explica que a «libertação» sexual tem uma relação muito duvidosa com a «libertação» social: «Indeed, if a rough generalization about the relation between class rule and sexual freedom is possible, it is that rulers find it convenient to encourage sexual permissiveness or laxity among their subjects if only to keep their minds off their subjection. Noboby ever imposed sexual puritanism on slaves; quite the contrary».

Hobsbawn reconhece que algumas situações de subjugação social têm uma importante componente sexual. Mas em todos esses domínios a dimensão sexual é um «sintoma» e não a doença. As doenças são o sexismo, o racismo, a censura, etc.

O historiador lembra mesmo que os grandes revolucionários tinham com frequência tendências puritanas. E aturavam com dificuldade as provocações e a vida boémia dos intelectuais engajados (v. a relação frustrante entre surrealismo e comunismo). No contexto novecentista, as derivações exaltadas do «freudismo» rapidamente esqueciam o marxismo: Reich acabou mais interessado no «orgasmo» do que na «organização» (cito).

É no entanto curioso notar que Hobsbawn ainda usa o paradigma das «massas trabalhadoras», para quem, reconhece, a «libertação sexual» não é o assunto mais premente. Mas a esquerda que vem de 1968 é essencialmente uma esquerda burguesa. Burguesa e intelectual. Uma coisa que desgosta Hobsbawn, que prefere camponeses & operários, esses que nunca reclamam «jouissance» e outras frescuras.

Sardinhas fritas com arroz de tomate e pimentos assados

Aos meus amigos sociais hífen democratas: o próximo jantar afinal é uma sardinhada.

28.9.07

Do domínio da luta (1)



Chamam-me a atenção para um elemento «houellebecquiano» nos meus textos sobre a «libertação sexual» (estão nos arquivos deste mês).

Não tinha pensado nisso, mas admito que sim. Aquilo de que eu mais gosto em Michel Houellebecq é precisamente a reflexão sobre a «economia política» da sexualidade (e o que gosto menos são as enfadonhas «partouzes»).

Houellebecq expõe com grande inteligência a grande ilusão da esquerda que nasceu em 1968: a ilusão de que a sexualidade é revolucionária.

É uma ilusão porque a sexualidade só é revolucionária num contexto religioso. A únca entidade que mantinha a sexualidade reprimida no Ocidente era o cristianismo. Mas o cristianismo está praticamente afastado. E a sexualidade hoje é uma actividade como as outras, embora compulsiva e propagandeada como nenhuma outra.

Além disso, a sexualidade é agora, mais do que nunca, uma mercadoria. O capitalismo é um grande grande amigo de todas as formas de sexualidade. Desde que sejam economicamente rentáveis, como é óbvio. Um exemplo: quando o capitalismo descobriu o «pink money», o «estilo de vida» gay passou a ser promovido em grande, porque é um importante nicho de mercado (um nicho de mercado com poder de compra: os media difundem imensas imagens de gays com profissões «de sucesso», mas o electricista gay ou o motorista de autocarro gay são invisíveis).

A esquerda imaginou que o sexo é sinónimo de revolução, ou seja, de «libertação». Mas o sexo, colectivamente entendido, é sinónimo de alienação. Aliás, como veremos no próximo post, já alguém tinha explicado isso às criancinhas. E não foi um «reaccionário» como Houellebecq: foi um intelectual comunista.

(na foto, o grotesco filme de Bertolucci «The Dreamers», 2003)

Ouvido no café (3)

Uma senhora de quarenta e muitos para outra senhora de quarenta e muitos:

«Deixa é uma auréola um bocado chata».

Ouvido no café (2)

Um cinquentão rotundo para outro cinquentão rotundo:

«João, é difícil um homem casado arranjar uma gaja, não é, João?»

Ouvido no café (1)

«Aquele romeno que fala sobre sexo».
«Quem, o Kundera?»

E agora elevemos o nível

« (...) when terrorism—which had replaced communism as the prevailing threat to the country's security—was succeeded by cocksucking (...)».

Philip Roth sobre os anos noventa, The Human Stain, 2000

Homenagem ao prof. Machado Pais

À saída de um liceu lisboeta, um grupo anárquico de adolescentes atravessa anarquicamente a rua com o semáforo vermelho. Duas indignadas meninas (não muito mais velhas) comentam indignadamente e de imediato: «são mesmo a geração broche».

(Pausa para meditação).

O que é (e notem que cito) a «geração broche»?

Eu pentenço à «geração rasca», termo seminal da sociologia contemporânea, digna de um Georg Simmel. Mas «geração broche» nunca tinha ouvido. Será uma segunda vaga da «geração X»? Em vez de X um XXX? Espero uma monografia do prof. Machado Pais sobre o assunto.

Enquanto a monografia não chega, sempre digo que não creio que os adolescentes de agora pratiquem mais o acto latinista do que, digamos, a minha geração. Parece óbvio que eles têm mais sexo do que nós tínhamos (eis um plural fraudulento), mas não macredito que sejam mais sulistas e liberais. Como todas as pessoas que não tinham muito sexo V (e ainda menos sexo A), já éramos cidadãos dados ao sexo O (parecem tipos de sangue, e julgo que são). Mas talvez agora as pessoas se felacionem e se cunilinguem com uma facilidade inusitada, com a mesma naturalidade que tinha um «linguado» nos anos oitenta.

Talvez seja isso a «geração broche» cunhada pelas duas futuras assistentes no ISCTE.

Que isto tenha surgido com uns miúdos que atravessam no vermelho é que me parece algo nebuloso. Estes sociólogos são muito metafóricos.

27.9.07

À conta de ser espertíssima

In every little Honda
There may lurk a Peter Fonda


São provavelmente os meus versos favoritos de Elastica (1995), excitante álbum de estreia das meninas & do menino capitaneados por Justine Frischmann, ex-estudante de arquitectura, ex-namorada de Bret A. e Damon A., carteirista musical sem complexos e miúda sexy à conta de ser espertíssima.



Justine numa audiência com Sua Santidade

A vitória moral

O meu sonho é ser um dia como a selecção portuguesa de râguebi: perder todos os jogos (como já faço agora) mas ser unanimemente tratado como se os tivesse ganho. O meu sonho é afinal o sonho português por excelência: a vitória moral.

Acidente


«Cair para fora», tal como «cair para dentro», não é uma decisão, caríssima. É um acidente.

26.9.07

Garden state

«(…) [he] has claimed he's cryptic because he's insecure - so insecure he spends insomniac nights reliving the mistakes he made the day before. But there are other reasons, like, for instance, the indie habit of poetic obscurantism, the communications breakdowns of the chronically lovelorn, and a disregard for (…) "protocol" (...)».

Embora pareça uma entrada do já clássico The Oxford Companion to Estado Civil , é simplesmente um excerto do artigo do veterano Robert Christgau (Rolling Stone de Janeiro) sobre o último álbum dos Shins. Sabem, aquela banda que a Natalie Portman disse que ia mudar a nossa vida.

Fraude

Ser sobrevalorizado também é desconfortável. Dá uma sensação de fraude.

25.9.07

Natasha



Natasha, to love is to suffer. To avoid suffering, one must not love. But, then one suffers from not loving. Therefore, to love is to suffer, not to love is to suffer, to suffer is to suffer. To be happy is to love, to be happy, then, is to suffer, but suffering makes one unhappy, therefore, to be unhappy one must love, or love to suffer, or suffer from too much happiness. I hope you're getting this down.

Woody Allen, Love and Death (1975)

49

Pois é, Jack, Stan, Roy, Gus e Lee, acontece que a lógica sempre foi minha inimiga.

Lições contínuas (2)

This is the way the world ends
This is the way the world ends
This is the way the world ends
Not with a bang but a whimper


T.S. Eliot

Lições contínuas

No seu diário Continual Lessons, o escritor americano Glenway Wescott conta que alguém lhe diz: «eras romântico e agora és poético».

Ele fica contente, acha que é sinal de maturidade.

O que é interessante é que o «poético» é considerado geralmente quase equivalente ao «romântico» (o inverso já não é verdade).

Talvez seja preciso alguma maturidade para saber a diferença entre romântico e poético. E talvez só se aprenda essa diferença com um choque. Ou com um murmúrio.

24.9.07

23



Dos seis álbuns de que realmente gostei em 2007, já vi muitos elogios a cinco. Creio que tem passado mais despercebido o magnífico 23, dos Blonde Redhead, uma banda nova-iorquina que eu escandalosamente só conhecia de nome. Existem desde 1993 (!) e têm sete álbuns editados. Os três elementos são multiculturais q.b.: uma japonesa, Kazu Makino, e dois irmãos gémeos italianos, Simone Pace e Amedeo Pace. Dizem os sites da especialidade que a obra passada dos Blonde Redhead era tributária dos Sonic Youth. Em 23 estão entre a mais deliciosa dream pop e uns pozinhos de electrónica. Não digo que é o melhor disco do ano, que o senhor Matt Berninger não me deixa, mas é o disco mais etéreo do ano. E digo «etéreo» no sentido camoniano.

Completamente mediano e um bocado merdoso

Chega um momento em que quase todas as mulheres pensam isto dos seus namorados ou maridos: «It’s about being a good guy, Cody. A decent person. And you’re not... in the end, I’m with somebody who’s like all the other guys I grew up around. Not so terrible, but not very good, either. You’re just a guy. Just a normal guy... which means kind of shitty, actually. Completely average and a little bit shitty».(This is How it Goes, 2005, Neil LaBute)

Filologia latina

Discutiram primeiro «os ficcionistas sicilianos do verismo a Leonardo Sciascia» e depois discutiram «as miúdas».

(para o Vincenzo)

23.9.07

Sair

Never good enough

Remember, «A quitter never wins and a winner never quits»
«The sun don't shine on a sleepin' dog's ass»
And all the rest of that stuff
But for you my best was never good enough

(Bruce Springsteen)

O círculo e o quadrado

É um método quase infalível: pensa que tudo aconteceu milimetricamente de acordo com a lógica. Não houve nada que fosse irracional ou inesperado. Não houve nada que não fosse previsível no papel por um terceiro que nem conhecesse as pessoas envolvidas. Lembra-te o que diziam os teólogos medievais: Deus pode tudo mas não pode ir contra a lógica. Deus não pode fazer um círculo que seja quadrado. E tu também não.

Ex-amigos

Noite execrável. Até os sonhos se portam como ex-amigos que te querem ver no chão.

E o tio então

No Expresso de ontem perguntam a Teresa Caeiro se pertence à «ala esquerda» do CDS, uma vez que é:

1) pela união de facto dos homossexuais
2) pela despenalização do aborto
3) mãe solteira.

A deputada lá explica o óbvio : «Vamos por partes. O facto de ser mãe solteira não tem nada de político. É uma circunstância da minha vida privada (...)».

Um facto evidente para toda a gente. Menos, pelos os vistos, para os perguntadores do Expresso.

Gira

Sample de conversas masculinas ouvidas nos últimos seis dias e meio:

«e havia miúdas giras?»
«tens razão: é mesmo mesmo gira»
«achei a amiga dela mais gira desta vez»
«as tuas colegas são giras?»
«estava bem gira no lançamento da Time Out»
«e são giras, em Itália?»
«a namorada dele é a mais gira de todas»

«não vi nenhuma que fosse gira, pelo menos até às 2»
«é tão gira que mete raiva»

«qual, aquela que é gira?»

Metabloguismo, for old time's sake (2)

Deixei as «polémicas» mas nunca abdiquei de textos polémicos. Escrevi no Estado Civil os meus textos mais polémicos, porque mais pessoais, ao pé dos quais uma recensão negativa ao Saramago (que me deu uma gloríola efémera e idiota) não é nada de nada. Quando, via Technorati, vou encontrando alguns insultos, fico satisfeito. É sinal de que ainda há gente atenta.

Metabloguismo, for old time's sake (1)

Com a perspicácia conceptual a que nos habituou, o Bruno desmonta uma falácia sobre os blogues «opacos»:

No que a "patrimónios de interesse" diz respeito (diferente de exposição pessoal), a capacidade de fascínio de um(a) blogger também se afere pela vastidão daquilo que deixa fora do assador (para usar a metáfora quinitiana).

Há óbvios casos de low profile e de partilha minimalista (porque há práticas e interesses "culturais" que não se dão à partilha, porque "a minha vida não é isto", porque se preza uma atitude contra-exibicionista) . Há óbvios casos de bluff involuntário (esconde o "jogo" que nunca ninguém verá, e portanto, não se sabe se há jogo escondido).

Há óbvios casos em que o bluff é estudado (continuadamente partilha a existência de mundos que não partilha).

E há, naturalmente, casos de continuada partilha que percebemos incapazes de secar a fonte que corre noutro lugar.


A ideia de que é determinado conteúdo que faz a natureza de um blogue é falsa. As ausências também definem os blogues. Por isso é que todas as teorizações dos blogues feitas por bloguistas são menos teorias que álibis.

22.9.07

Medicina antiga

Uma purga, uma amputação, uma sangria como na medicina antiga.

Ou, como nos submarinos, uma descompressão, fumos e ventos e turbulência.

Até que finalmente esteja livre disto.

Jornalismo, Champions League

Estreia um biopic sobre Ian Curtis? Pede-se um artigo à filha de Ian Curtis: I've never really felt angry at my father for committing suicide, nor was I emotional about it all being brought up in the film because it's been there every day for me, although I've not had a tortured life.

Contratações

José Mourinho discordava da política de contratações de Roman Abramovic. Eu, por acaso, não.



A namorada de Abramovic, a modelo russa Daria Zhukova

As cartas

Deixo mails acumulados ou atrasados. Mas isso não é nada comparado com a dificuldade que tenho em manter uma correspondência postal civilizada. Recebo muito poucas cartas que não sejam convites ou contas; mas essas poucas que recebo ficam às vezes meses (meses) sem resposta. Quando recebo um mail, geralmente respondo de imediato (se deixo para depois, fica esquecido); mas uma carta é uma angústia. As cartas deixam-me paralisado. Talvez seja a história do «verba volant, scripta manent» mas, que diabo, eu em matéria de «scripta manent» não sou nada peco, e aliás já me lixei várias vezes. A questão com as cartas é trauma biográfico, só pode, das centenas de cartinhas ingenuazinhas que escrevi e estavam guardadas numa caixa que a sensatíssima mãe dela destruiu. Essas cartas são ainda hoje como que um fantasma que me impede de escrever outras cartas. A não ser que os destinatários me prometam que as vão destruir. Mas não é coisa que se peça a alguém, pois não?

Tocar

Ele lembra aquela personagem de Neil Simon sobre a qual alguém dizia: «Como artista, ninguém lhe pode tocar; como homem, ninguém lhe quer tocar».

21.9.07

Estado civil



Em dia de aniversário, eis que a bendita Amazon entrega uma das minhas séries cómicas favoritas: Big Train. Deixo aqui um sketch magnífico que se podia chamar precisamente «estado civil».

20.9.07

O Estado Civil faz hoje dois anos. Obrigado pela fidelidade, esse bem tão escasso.

Já que perguntas



Já que perguntas, geralmente nem me lembro.
Ando com roupa sem vestígio dessa viagem.
E então regressa o desejo quase sem nome.

E mesmo então nada tenho contra a vida.
Reconheço as folhas de erva que recordaste,
os móveis que deixaste ao sol.

Mas os suicidas têm uma linguagem especial.
Como carpinteiros, querem escolher os
instrumentos.
Nunca discutem a construção.

Duas vezes já simplesmente confessei,
possuí o inimigo, comi o inimigo,
aprendi a sua arte, suas magias.

E assim, com peso e medida,
mais quente que água ou óleo,
me detive, a boca um orifício de cuspo.

Não penso nas minúcias do meu corpo.
A córnea e a urina desapareceram.
Os suicidas já traíram o corpo.

Nados-mortos, nem sempre morrem,
mas fascinados não esquecem esse droga tão doce
que até crianças encanta.

A vida toda debaixo da tua língua –
Isso é toda uma paixão.
A morte é um osso triste; magoado, dizes,

e no entanto espera por mim, ano após ano,
para tão delicadamente desfazer uma ferida antiga,
para resgatar o meu fôlego da sua vil prisão.

Nesse equilíbrio, os suicidas também se encontram,
amaldiçoando os frutos, uma lua inchada,
deixando o pão que confundiram com beijos,

deixando as páginas de um livro descuidadamente abertas,
alguma coisa por dizer, o telefone fora do descanso
e o amor, que coisa isso fosse, uma infecção.



«Wanting do Die», de Anne Sexton (versão PM).
Do livro Live or Die (1966), vencedor do prémio Pulitzer.
Sexton nasceu em 1928, em Newton, Massachusetts.
Morreu no dia 4 de Outubro de 1974, na garagem da sua casa.

My my hey hey



Não esperavas que um miúdo te citasse na última carta que deixou. Não tens culpa. Disseste o óbvio. O óbvio para quem não seja um canalha moral, como tu nunca foste. «It's better to burn out than to fade away». É com estas evidências que se matam miúdos? Talvez. Mas a vida já era uma merda antes de escrevermos que a vida é uma merda.

19.9.07

Aquilino (2)

A doença infantil do direitismo é a «boutade». Sobretudo no meio cultural. Sendo o «regime» de esquerda, o direitista aprecia acima de tudo as provocações gratuitas. Mesmo que sejam patetas.

Sou um assumido admirador de Vasco Pulido Valente; mas dizer, como ele disse, que Aquilino é um escritor «medíocre» não passa de uma «boutade».

É normal que não se aprecie o estilo de Aquilino, os regionalismos cansativos, o pícaro programático, o virtuosismo exibicionista. Mas há que ter sentido das proporções e das palavras.

Dizer que Aquilino é um escritor «medíocre» é uma bojarda. Sobretudo vindo de quem já elogiou Clara Pinto Correia.

Aquilino (1)

Não vale a pena transformar a entrada de Aquilino Ribeiro no Panteão Nacional numa 2ª volta do concurso «Os Grandes Portugueses» (desta vez menos exaltada, porque não mete AOS).

O Panteão é um monumento de «glórias da pátria» muito localizadas no tempo, e quase todas politizadas. Vejam bem a lista: quatro presidentes da República (Teófilo, Arriaga, Sidónio, Carmona), um militar tornado político (Delgado), três escritores (Garrett, Junqueiro e João de Deus) e uma fadista (Amália).

Tirando Garrett, todos os outros são discutíveis. Junqueiro é um poeta hoje caído no esquecimento (era considerado «maior que Camões» no seu tempo e teve funerais colossais). De João de Deus, ficou a lembrança nostálgica da «Cartilha Maternal» e quase nenhuns versos. Arriaga e Teófilo, os dois primeiros presidentes, fazem sentido; mas Sidónio (com quem simpatizo) foi um golpista e Carmona iniciou o regime autoritário. Delgado está como representante do «antifascismo» (e porque foi assassinado); foi objectivamente uma figura importante, mas nem pouco mais ou menos uma «grande figura». Amália representa um dos três efes (Eusébio talvez vá para o panteão, e Lúcia teria ido se tivesse morrido antes de 1974).

Aquilino, que é um grande escritor, não foi trasladado para o Panteão por ser um grande escritor. O que agora se homenageia é o carbonário, o bombista, o republicano, o «democrata». Razões não muito diferentes das que levaram Junqueiro ao mesmo pedestal. Mas isso também não tem mal nenhum. Cada regime tem os seus heróis.

Os «heróis da pátria» são inevitabilidades cujo culto deve ser moderado e céptico. Ninguém é um «imortal» porque está no Panteão (ou porque ganhou prémios, ou tem nome de rua, ou foi de uma Academia); são decisões baseadas em consensos ou maiorias circunstanciais.

Percebo que os monárquicos protestem por verem um hipotético regicida no Panteão. Mas nem a implicação no regicídio está provada nem o Panteão é o Trono do Altíssimo. Deixem lá o monumento de Santa Engrácia em paz.

Flexissegurança

Que um homem deve ser «seguro». OK, não discuto com a jurisprudência. Mas ao menos que os homens tenham a flexibilidade de perceberam que são uns patetas. A segurança pura e simples é uma ilusão. Ao menos um bocadinho de flexissegurança.

A tristeza e a raiva

A «metamorfose da tristeza para a raiva» não é uma metamorfose. A raiva é triste, mesmo quando parece eufórica. A tristeza é furiosa, mesmo quando se fecha em casa. Não são dois estados diferentes. Quando muito, é uma questão de feitio: uma pessoa mais próxima da tristeza racalca a raiva e um raivoso talvez esconda a tristeza. Mas a tristeza e a raiva são uma e a mesma coisa.

On fucking

Talvez não devêssemos dizer certas palavras. Em português, percebes? Tornam cru o que foi lúdico. Implacável o que era amável. Podemos citar em inglês, como eu faço tanto, os Arab Strap talvez: How do you think we will adjust now we’ve incorporated lust? And will you put my trust to the test if the shagging’s not the best? Sempre é uma língua estrangeira. E em itálico.

Silva



Talvez, como o meu homónimo do século XVI, devesse redigir uma Silva de Varia Lección (1540). Uma enciclopédia com tudo o que, digamos, «aprendi». Não seriam no entanto «cosas muy agradables y curiosas». Seria literalmente um livro de silvas. E sem lições.

Os telefones antigos

Acontece sempre isso. Uma frase cheia de impaciência. Uma banalidade dita cruamente. Uma conversa cortada a meio como nos telefones antigos.

Deslizes

É como quando começas uma frase em tom de gozo e a meio percebes que disseste uma coisa terrível. Um desses deslizes.

Happy few

Acredito nos «happy few».

Mas também acredito que esses «happy few» (cito Jarrell) «grow fewer and unhappier day by day».

18.9.07

A sede

Onde passei com sede passo agora sem sede e apenas com a boca seca.

A justiça e a injustiça

Não há atitudes «justas» e «injustas». A conformidade com a lei é um critério mais ou menos objectivo; mas a conformidade com a lei não se aplica de todo às relações pessoais.

Consideramos injusto aquilo que nos magoa e justo aquilo que nos faz feliz. Mas a felicidade não é «justa» nem «injusta»: é uma coisa que acontece ou não. Ou que acontece e depois desaparece.

17.9.07

A hora das hienas

É por haver tanta música hoje - e tanto acesso - que a sabedoria selectiva de António Sérgio é mais valiosa e necessária do que nos tempos ditos áureos em que, verdade se diga, não era assim tão difícil separar o trigo do joio. A música de António Sérgio é como a boa música: não se deixa interromper. É ele que não deixa. O homem sabe o que vale e o que tem de fazer. É escusado atravessarem-se no caminho dele. O que menos interessa é a estação de rádio.

Excerto de um justíssimo texto de Miguel Esteves Cardoso (Público de hoje) sobre o grande António Sérgio, a mais recente vítima da merdiocracia cultural.

Geniozinhos

Se elas não nos fizessem sofrer como fazem, como animais num espeto, não tínhamos a matéria com a qual nos imaginamos geniozinhos.



Matt Berninger, indivíduo atormentado pelo género oposto

Onomatopeias

A sensatez das mulheres faz das coisas que dizemos apenas onomatopeias.

16.9.07

A «libertação sexual» (3)

Sei como se chama, mas gosto de pedir mais discretamente «Cointreau, Bailey's e Grand Marnier». A cada um o seu.

A «libertação sexual» (2)

Não me interpretem mal: é evidente que uma moral sexual baseada na liberdade individual é muito mais positiva do que uma moral sexual baseada na repressão. Não alimento qualquer equívoco sobre esse ponto. Mas estão equivocados aqueles que acham que a «libertação» sexual não tem aspectos sombrios. A «revolução sexual» foi, como todas as revoluções, uma mudança de classe dirigente (ou dos seus instrumentos). Mas continua a haver uma classe dirigente, um poder coercivo, senhores e servos. Quando os islâmicos (e alguns cristãos) dizem que a mulher no Ocidente está mais «explorada» do que nunca, estão a exagerar o argumento; mas é verdade que os corpos nuns das mullheres vendem sabonetes e seguros em cartazes pela cidade. Não tenho nenhuma objecção estética a tal costume, mas não creio que em nenhum sentido útil se possa chamar a isso uma «libertação». Do mesmo modo, a liberalização do aborto é, digamos, a vitória de uma lógica masculina de sexo sem responsabilidade (a «revolução» foi a pílula: o aborto é uma espécie de «fase jacobina» da revolução). A sexualidade hoje é um produto. E é por isso que o capitalismo adora a sexualidade: porque se trata de um produto transaccionável, com cotação no mercado, oferta e procura, leis mais ou menos óbvias. Quando em 68 os jovens burgueses preferem os «orgasmos» às «greves na Renault» o comunismo acaba por derrota clamorosa no campo sexual. É a sociedade capitalista que se revela reformável em direcção ao hedonismo; as ditaduras são por natureza castas ou opressivas. Chegados ao expoente do capitalismo, somos (relativamente) donos das nossas vidas, mas sexualmente vivemos a mesma lei do mercado que se aplica aos arrendamentos de imóveis. Existe um capitalismo sexual que é tão férreo como o vitorianismo. A «libertação sexual» do capitalismo é, como quase todos os produtos capitalistas, um produto agradável mas baseado em ilusões. Desde logo porque o «mercado sexual» do capitalismo é implacável para os «excluídos», como é implacável para os excluídos em todas as outras áreas da vida. Quando temos alguma proximidade com a «classe dirigente» do capitalismo sexual (somos jovens, atraentes ou afluentes) gozamos as delícias da «libertação». Caso contrário, vivemos na mesma miséria em que viviam e vivem todos os excluídos em todos os regimes sexuais.

A «libertação sexual» (1)

"As I approached my fortieth birthday," he [Edmund White] writes in the epilogue, "I feared I'd lost the physical attractiveness that might have made me welcome five years earlier in Gay America." Because "States of Desire"[1980] is presumably a book about human liberation, one must ask: What kind of liberation can a sentiment like that possibly represent?

De uma recensão de Paul Cowan no New York Times, 1980

15.9.07

A vida exagerada



Adolescente, andava fascinado com Strindberg. Achava que aquilo era a vida exagerada, tal como eu então a sentia. Custa bastante regressar agora a Strindberg e perceber que nenhuma daquelas crueldades é exagero.

14.9.07

Boatos (2)

Conhecem o filme In and Out (1997)? Kevin Kline interpreta um professor de província que é amigavelmente «denunciado» como gay por um aluno, em plena cerimónia dos Óscares. Acontece que Kline não é gay, ou não sabe que é, nunca pensou nisso, tem noiva e tudo. Surpreendido e confuso, ele compra uma cassete chamada «Be a Man». A cassete sugere que se o ouvinte conseguir resistir a certos desafios, é sinal de que é heterossexual. Ele não pode, por exemplo, dançar como uma louca assim que ouve música «disco».

Pois bem: outro dia, uma autoridade na matéria decretou em conversa: «o Pedro Mexia é gay». Uma minha amiga, que estava presente, garantiu que não, sendo logo secundada por terceiros. O amigo da minha amiga, no entanto, disse que «jurava a pés juntos».

Eu não «juro a pés juntos» que não sou gay. Mas se jurasse, jurava a pés juntos (juras com os pés afastados acho um bocado gay). Cito uma frase sensata de um colega meu de faculdade: «que eu saiba, não sou gay».

Que eu saiba, não sou. Mas já descarreguei para o iPod umas canções de Barbra Streisand. E se gostar, prometo que vos aviso.

13.9.07

Boatos (1)

O dono do restaurante vem ter comigo. «Aquele cliente que saiu agora está muito zangado consigo». Não vi quem era o tal cliente, nem sei o motivo da zanga. O dono da casa explica: «O senhor escreveu um livro em que diz que a irmã dele torturou gente em Angola». Torturou gente? Em Angola? Garanto que deve haver engano. «O senhor não escreveu um livro da costa à contracosta ou coisa assim?». Digo que não, que isso foi o Pedro Rosa Mendes. «Ah, então desculpe».

12.9.07

Desesperadamente donas de casa, adenda

Um leitor atento faz um reparo fundamental: Felicity Huffman é casada com (cito e aprovo) «o grande William H. Macy». Ao menos uma.

Desesperadamente donas de casa

Confesso que não faço ideia quem sejam os namorados ou maridos de Felicity Huffman e Marcia Cross. Mas Teri Hatcher já foi namorada de toda a gente. Eva Longoria casou com um jogador de basquete. E Nicollette Sheridan, que já em adolescente vivia com um teen idol bimbo, casou há meses com Michael Bolton.



Nicollette Sheridan com o teen idol Leif Garrett, nos idos de oitenta

Pas jolies comme ça

Acho que é num filme de Eustache. Ela diz que lhe vai apresentar uma amiga. Uma amiga «bonita» e «com muitos amantes». Ele responde: as mulheres «com muitos amantes» nunca são «assim tão bonitas».

Ele tem razão. Nunca conheci uma mulher «assim tão bonita» que tivesse «muitos amantes». A chamada «promiscuidade» é apanágio das mulheres medianamente bonitas (e de algumas feias).

Já tenho notado essas raparigas «on the move». É visível que sentem grande desprezo pelas mulheres muito bonitas. Acham que as mulheres muito bonitas são puritanas e ingratas.

As mulheres «com muitos amantes» gostam da «facilidade». Anunciam aos ventos que estão «disponíveis». Empregam a palavra «foder» com grande liberalidade. Chamam «patéticos» aos homens com quem já foderam.

Há quem diga que são bonitas por terem «muitos amantes». Mas elas sabem que «não são assim tão bonitas».

11.9.07

Homenagem a Tod Browning

Não suportavas que te tocassem. Para que me amasses, cortei os braços. Mas depois chegou um homem com braços musculados. A tua fobia desapareceu. Gostaste dele. Eu era apenas um amputado que tu conhecias.

Sem resposta

A ambição máxima de um sofista é conseguir calar o seu interlocutor. Deixá-lo sem resposta. Como um jogador de xadrez que não pode mexer peça nenhuma.

Nunca tive grande capacidade sofística, mas gosto de uma discussão civilizada. E sei que há dois ou três temas, duas ou três frases que concedem automaticamente a «vitória» ao meu interlocutor. São frases e temas que me deixam sem argumentos.

Fico calado, porque não tenho palavras. Fico calado, porque perdi.

Sexo com desconhecidos

O confessionalismo exige reciprocidade? Sempre achei que exigia, que é exactamente a reciprocidade que garante o equilíbrio numa relação confessional. Curiosamente, os meus amigos íntimos são quase todos bastante circunspectos, com o consequente desequilíbrio que isso causa.

Recentemente, percebi que a «confessionalidade» não necessita de reciprocidade nem de familiaridade. Tenho conversas íntimas com pessoas que conheço mal (ou que mal me conhecem) e que não retribuem as confissões. E sinto semelhanças com as descrições que li de sexo com desconhecidos. É uma experiência intensa e superficial.

É verdade que, tal como no sexo com desconhecidos, há o perigo de apanhar doenças ou de ver o meu nome pela lama. Mas o meu nome já conhece intimamente a lama. E as doenças, mais uma ou menos uma não faz diferença.

10.9.07

Ordem dos advogados (2)

Compreensivelmente, acabei por mandar vir um livro de Turow chamado One L: The Turbulent True Story of a First Year at Harvard Law School (1977).

É, como se diz em inglês, «nonfiction».

Ordem dos advogados (1)

Nunca li Scott Turow, o craque dos «legal thrillers», e acho que só vi um filme adaptado dos seus livros (Presumed Innocent, com Harrison Ford). Turow é advogado na firma Sonnenschein Nath & Rosenthal (ena), em Chicago, e os seus romances transferem as intrigas policiais para o mundo dos escritórios e dos tribunais. Espreitei o seu romance mais recente, Limitations (2006), que é sobre um tema eticamente muito interessante: a prescrição dos crimes. E dei com esta frase sobre a espécie que Turow disseca: He knows Cassie is correct about one thing. They need a decision. In the end, this job really has only one essential requirement: Make up your mind. And don’t look back. Decisiveness in many ways is more important than being right.

9.9.07

Dos sonhos



Não acredito na «interpretação» dos sonhos. Há sonhos óbvios que espelham as nossas preocupações. Há sonhos obscuros que são apenas imagens sem nexo. E só uns quantos, muito poucos, aqueles que não são evidentes nem herméticos, é que suscitam verdadeira curiosidade. Mas não há um código que torne a decifração segura.

Os sonhos inquietantes são esses: os que têm coisas que fazem sentido e outras que não fazem sentido. Os que misturam imagens inócuas e medos inomináveis. Os que dão a ilusão de que podem ser «interpretados».

Mas a nossa «interpretação» não é mais que um sonho desperto.

8.9.07

Diversidade cultural

Uns discutiam quem tinha sido «o melhor director do National Theatre»: Peter Hall ou Richard Eyre? Outros discutiam se a «canzana» magoa «as rótulas».

7.9.07

Laços de ternura

A namorada não gosta da ex-namorada. A ex-namorada não grama a actual namorada. A ex-futura namorada não suporta a futura ex-namorada.

As moedas

A rapariga trazia uma camisola com isto nas costas, em maiúsculas: Love is a game insert coin.

As vagas que assolam

Acordei com alguém a dizer na rádio que «uma vaga de crime assola o país». Deixo a outros as mais urgentes discussões sobre segurança interna. Aqui gostava apenas de levantar duas questões linguísticas.

A primeira diz respeito a essa palavra: «assola». Desde logo, «assola» pressupõe a fatal existência do verbo «assolar», verbo cuja declinação seria mais imunda que o cavalo de Genghis Khan. Mas a questão é que nada mais «assola» senão uma «vaga de crime». O desemprego ou a o vírus Ebola «alastram» ou «grassam» (outra bela palavra); mas não «assolam». Gostava de perceber porque é que o crime (em «vaga») é o único que faz essa coisa tremenda: assola.

A segunda questão é a «vaga de crime». Porquê «vaga»? É verdade que há outras imagens marítimas, como «onda de crime» ou talvez «maré de crime». Mas curiosamente não há «maremoto de crime», nem «tornado de crime», nem mesmo «tsunami de crime», já para não falar em «terramoto de crime» ou «inundação de crime». Quando se fala de crime, há catástrofes naturais mais adequadas que outras, mesmo as que são marítimas.

O crime vem em «vagas». E em vagas que «assolam». Assim é a língua portuguesa.

O estilo

Se me perguntam o que é um «grande escritor», dou inevitavelmente a resposta flaubertiana: um grande escritor é um estilo. É verdade que existem grandes escritores com um estilo flat (Kleist, Pavese, algum Kafka), mas percebemos que mesmo isso é um estilo. Só mesmo cinco ou seis génios conseguir escrever livros geniais sem estilo. Digo cinco ou seis mas só me lembro de dois: Dick e Dostoievski.

That would be nice

Next, banal «adaptação» de um conto de Philip K. Dick, tem um momento semelhante ao maravilhoso Groundhog Day.

Nesse filme de 1993, Bill Murray descobre que está a viver todos os dias o mesmo dia, exactamente igual ao último e ao próximo. No meio dessa angústia, um benefício: vai estudando Andie McDowell e todos os dias aperfeiçoa as suas técnicas de sedução (descobre as coisas de que ela gosta ou não gosta, etc); quando finalmente dorme com ela, acorda finalmente num dia diferente.

Em Next, Nicholas Cage vê o futuro, mas apenas o seu futuro; até que encontra Jessica Biel e consegue também ver o futuro dela. Cage pergunta a Biel se ela acredita no destino. Biel responde que o destino talvez exista mas que ela prefere «a surpresa». Cage diz então: «That would be nice».

6.9.07

O Credo de Niceia (2)

Nisso e em Jessica Biel, naturalmente. Mas Jessica Biel, se lerem com atenção, já vem mencionada no Credo de Niceia.

O Credo de Niceia

Fui educado para acreditar inabalavelmente em muitos valores e ideias. Pouco a pouco, e depois de repente, deixei de acreditar em quase tudo. E no entanto, consigo ainda repetir o Credo sem receio ou vergonha. Adoptado pelo Concílio de Niceia, em 325, e revisto no Concílio de Constantinopla, em 381, o Credo é a única declaração de fé aceite pelas várias igrejas cristãs. É naturalmente um poema, cheio de coisas cujo significado desconhecemos ou que são enigmáticas & indefiníveis. Acho que é o único credo que ainda mantenho:

Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso, Criador do Céu e da Terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis. Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigénito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro; gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Por Ele todas as coisas foram feitas. E por nós, homens, e para nossa salvação desceu dos Céus. E encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria e se fez homem. Também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos; padeceu e foi sepultado. Ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras; e subiu aos Céus, onde está sentado à direita do Pai. De novo há-de vir em sua glória para julgar os vivos e os mortos; e o seu Reino não terá fim. Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida, e procede do Pai e do Filho; e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado. Ele que falou pelos Profetas. Creio na Igreja una, santa, católica e apostólica. Professo um só baptismo para a remissão dos pecados. E espero a ressurreição dos mortos e vida do mundo que há-de vir.

5.9.07

Mateus, 24

Matthew 24 is knocking at the door
and there can't be too much more to come to past
Matthew 24 is knockin' at the door
and today or one day more could be the last


(«Matthew 24», de Johnny Cash)

Vigiai

Jesus disse: Vigiai, pois não sabeis o dia nem a hora. E eu entendi Mateus 24 como se fosse um aviso pessoal e não um anúncio escatológico.

Vigilância constante



Há dez dias, Owen Wilson, 38 anos, cortou os pulsos e tomou uma overdose de comprimidos. Encontrado pelo irmão, foi logo internado no Cedars Sinai de Los Angeles. Uma semana depois regressou a casa, estando ainda sob vigilância constante.

Numa nota à imprensa, Owen pediu: «I respectfully ask that the media allow me to receive care and heal in private during this difficult time».

Owen Wilson, presença habitual nos filmes de Wes Anderson, é conhecido pela sua imagem galhofeira. Um dos seus últimos filmes, The Wedding Crashers, fez 200 milhões de dólares nas bilheteiras.

Wilson tinha terminado recentemente uma relação com a actriz Kate Hudson.

4.9.07

O falcão



Ouvi pela primeira vez falar em Glenway Wescott num texto de Jeffrey Eugenides para um volume colectivo chamado Lost Classics. Eugenides escolhia como «clássico esquecido» o romance The Pilgrim Hawk, de 1940. Soube que o romance foi entretanto reeditado na espantosa colecção de clássicos da New York Review of Books. Mas antes que a comprasse, recebi a edição portuguesa, publicada pela Relógio D'Água, com tradução de José Miguel Silva.

O Falcão Peregrino é um romance (ou talvez novela) prodigioso em termos de contenção e sugestão, com a acção centrada numa só tarde e num punhado de personagens. O tom é totalmente Fitzgerald, claramente expatriado mas sugestivamente gay. O motivo, a chegada de uns estranhos enigmáticos, é tratado com frescura e subtileza. Na introdução, Michael Cunningham lembra o essencial: que o falcão desta história, sobre quem aprendemos quase tudo, é obviamente um símbolo mas também algo mais e menos que um símbolo. Um elemento da realidade. Ou uma ambiguidade.

Gosto especialmente desta comparação com o homem solteiro: «É assim, pensei então, se avalias mal a situação acabas por te apaixonar por alguém que jamais te poderá amar. Se os amores passados te magoaram de algum modo, não serás capaz de o segurar quando ele te aparecer de novo, não serás capaz de o agarrar com firmeza. A compaixão, ou a autocompaixão, terão embotado as tuas garras, que não deixarão marca nenhuma. Aí, esvoaças novamente para o teu poleiro, frustrado e coberto de vergonha».

Curiosamente, um dos filmes (em sentido técnico) «românticos» de que mais gosto é a fantasia medieval A Mulher Falcão (Ladyhawke, 1985). Em Ladyhawke não temos um falcão entre humanos: temos uma metamorfose do humano em animal que impede a consumação do amor entre Rutger Hauer e Michelle Pfeiffer.

Emporio

Ah, vamos dizer coisas horríveis, coisas que demonstrem como somos gente que não presta, gente mesquinha e superficial, coisas como «nada me fez mais feliz este verão que os óculos escuros Giorgio Armani, modelo !GA280S*006_P8*99, com armação de metal preta e brilhante & lentes fumadas, colecção 2007». Que ninguém me fez mais feliz este verão.

O prémio de consolação

Psychoanalysis should not be promoting self-knowledge as a consolation prize for injustice.



E olhem que quem diz isto é um psicanalista: o britânico Adam Phillips, terapeuta de Kureishi e outras estrelas, estilista de gabarito e sósia de Dylan.

3.9.07

Oração do nada

Our nada who art in nada, nada be thy name thy kingdom nada thy will be nada as it is in nada. Give us this nada our daily nada and nada us our nada as we nada our nadas and nada us not into nada but deliver us from nada (...)

Ernest Hemingway

Tigres de nada

Tens razão, não se pode mudar as pintas de um tigre, ou que fique tigre sem as pintas, já não sei como se diz. Conheces o poema do Nemésio? «Eu no meu corpo como o tigre no seu bafo. / O mundo leva iguais a jaula e a casa. / Somos a vida que não é, / Fora não ser a morte. / Nem mesmo nada somos:/ Estamos no que fomos / À espera do que importe.» Estamos no que fomos à espera do que importe. Mas o que é isso? Nada. Nem nada somos. É aliás como se chama o poema: «Nada». Sem ilusões nem sobre o tigre nem sobre a jaula: «Não se pode sair, e entrar já não:/ Nada já deu entrada ao só nascido / Que é esse mesmo Nada:/Pelo que Nada não é nada, / Mas é nada / Em Deus que tudo gera. / Eu na minha alma como o bafo no seu tigre».

Que eu não vou

Não se pareceu nada com os votos piedosos que nos ensinam. Esse «choque» fez de mim francamente pior pessoa do que era antes. Uma degradação moral a que corresponde, como é óbvio, uma desistência social. Não me convidem, que eu não vou.

Incisão

A diferença? Eu explico. Noutros momentos, aprendi lições parciais, sobre isto e aquilo, mas uma de cada vez. No ano da Graça dois mil e seis aprendi coisas acerca de tudo mas tudo. Impossível não ter sido completamente transformado, como alguém que passou fome ou viveu uma guerra. A «vida» apareceu tal como ela é, completa e sem véus, cruel e desgraçada. Foi o segundo «antes» e «depois» da minha vida, o momento de contabilidade, de referência, o tema de tudo quanto escrevo e digo e faço. Um rasgão de lado a lado, como uma incisão cirúrgica que vemos e mostramos sempre que nos despimos.

Damasco

Uma queda do cavalo a que não se seguiu a voz de Deus.



Caravaggio, A Conversão de São Paulo na Estrada de Damasco, 1601

Ad nauseam

A coisa mais violenta que disseram sobre mim no último ano foi também a mais verdadeira.

Comércio justo

Em Uzak (2002), do turco Nuri Bilge Ceylan, o protagonista espera que o deixem sozinho na sala e troca um vídeo do Stalker de Tarkovsky por um vídeo com cenas lésbicas.

As pessoas comuns

Nos últimos anos, ganhei a certeza de que Laura Linney (n. 1964) é uma das grandes actrizes da sua geração (You Can Count on Me, Mystic River, The Squid and the Whale). Não sei se é por não ser especialmente bonita e ganhar com isso papéis decentes; não sei se é uma actora de Método; ou se apanhou muita porrada na vida; sei que é uma das actrizes mais minuciosas e convicentes do cinema americano actual, uma das poucas que, como alguém escreveu, manifesta a «inteligência ferida de uma pessoa comum». A outra é Ashley Judd (n. 1968): vejam em DVD (julgo que não estreou em sala) Come Early Morning (2006): um exemplo de uma mulher que chega aos trinta completamente orgulhosa e magoada. Sei de casos.

As pessoas falecidas

O filme australiano Jindabyne (que dá cabo de um impressionante conto de Raymond Carver com uma litania racial politicamente correcta) tem no início um aviso muito curioso. Jindabyne mete aborígenes e, para respeitar as suas crenças, aparece uma legenda que avisa que o filme «inclui imagens e vozes de pessoas falecidas». Respeito as crenças aborígenes, como todas as outras, mas confesso que essas «imagens e vozes de pessoas falecidas» são das coisas mais fascinantes do cinema.

Espíritos, mais ou menos

A caminho da estação de Santa Apolónia, há um graffiti que diz «espíritos matavam + - 200 pessoas». É um belo aviso tremendista, variante espírita, mas com uma novidade absoluta num slogan: o uso do «mais ou menos». Sucede que um graffiti, como um bom colunista político, não pode ser dubitativo, tem de ser peremptório e radical. Imaginem se no Estado Novo se tivesse gritado «Angola é capaz de ser nossa». Ou se os comunistas proclamassem que «o povo unido tem possibilidades estatísticas algo reduzidas de ser vencido». Espíritos que matam «mais ou menos» 200 pessoas são espíritos incompetentes.

2.9.07

Na crónica de ontem do «Público», por lapso meu (certamente freudiano) havia um salto de uma linha, e logo a linha que citava esta frase «Oh Jeanne, pour aller jusqu'à toi, quel drôle de chemin il m'a fallu prendre». E por lapso de paginação faltava também uma referência final: «Pickpocket / O Carteirista» acaba de ser editado em DVD pela Midas.