31.3.08

Uma vez que é primavera


Lee Miller, fotógrafa, modelo, musa surrealista

*

Minha mulher com cabelo de fogo nos bosques
Com ideias relâmpagos de calor
Com cintura de ampulheta
Minha mulher com cintura de lontra entre os dentes de um tigre
Minha mulher com boca de insígnia e de ramo de estrelas de grande magnitude
Com dentes de pegadas de ratinho branco na terra branca
Com língua de âmbar e vidro esfregado
Minha mulher com língua de hóstia apunhalada
Com língua de boneca que abre e fecha os olhos
Com língua de pedra incrível
Minha mulher com pestanas como gatafunhos infantis
Com sobrancelhas de ninho de andorinha
Minha mulher com têmporas de ardósia de tecto de estufa
E de vapor nas vidraças
Minha mulher com ombros de champanhe
E de fontes geladas com cabeças de golfinhos
Minha mulher com pulsos de fósforos
Minha mulher com dedos de azar e ás de copas
Com dedos de feno cortado
Minha mulher com axilas de marta e de faia
De noite de São João
De ligustro e de ninho de acarás
Com braços de espuma marítima e eclusa
E de mistura de trigo e moinho
Minha mulher com pernas de foguete
Com movimentos de relojoaria e desespero
Minha mulher com tríceps de caule de sabugueiro
Minha mulher com pés de iniciais
Com pés de chaveiros com pés de calafates que bebem
Minha mulher com pescoço de cevada sem pérolas
Minha mulher com garganta de Vale do Ouro
De encontro no leito da torrente
Com seios de noite
Minha mulher com seios de toupeira marinha
Minha mulher com seios de vaso de rubis
Com seios de espectro de rosa ao orvalho
Minha mulher com ventre de leque desdobrável dos dias
Com ventre de garra gigante
Minha mulher com dorso de pássaro que foge vertical
Com dorso de mercúrio
Com dorso de luz
Com nuca de pedra rolada e de giz molhado
E de queda de um copo em que há pouco bebemos
Minha mulher com ancas de batel
Com ancas de lustre e de penas de flecha
E de caule de plumas de pavão branco
De balança insensível
Minha mulher com nádegas de arenito e de amianto
Minha mulher com nádegas de dorso de cisne
Minha mulher com nádegas de primavera
Com sexo de gladíolo
Minha mulher com sexo de jazidas fluviais e de ornitorrinco
Minha mulher com sexo de algas e guloseimas
Minha mulher com sexo de espelho
Minha mulher com olhos cheios de lágrimas
Com olhos de panóplia violeta e de agulha magnética
Minha mulher com olhos de savana
Minha mulher com olhos de água para beber na prisão
Minha mulher com olhos de madeira sempre sob o machado
Com olhos de nível de água de nível do ar de terra e de fogo.


(André Breton, «A União Livre», 1931, versão PM, uma prenda de anos atrasada)

A lei do divórcio

Já em miúdo achava estranho que houvesse divórcios que A «não concedia» a B. O divórcio é, desculpem a lapalissada, o fim do casamento, e o fim do casamento não precisa de ser «concedido». Nesse aspecto (o da autonomia privada) sou totalmente favorável à nova lei do divórcio, que permite que uma das partes denuncie simplesmente o contrato. O casamento é um negócio com efeitos pessoais, e ninguém deve ficar «amarrado» a um casamento acabado.

No entanto, reconheço que esta lei ignora a dimensão patrimonial, que é aliás um aspecto essencial da instituição casamento (vem no Engels, minha filha, vem no Engels). Os casamentos são muitas vezes «negados» ou «contestados» por causa de disputas patrimoniais complicadas, e a denúncia unilateral menospreza essa dimensão.

Por outro lado, não me parece prudente que se suponha que o casamento se baseia no «afecto». O casamento baseia-se no afecto 1) há pouco mais de um século 2) durante uns anos.

Mas ao longo dos séculos os casamentos não tinham nada a ver com afectos, e a princípio nem sequer com o consentimento dos nubentes (uma invenção cristã). Ainda hoje o «amor» não é um requisito: todos conhecemos homens e mulheres que se casaram por outras razões (uma gravidez inesperada, desejo de ascensão social, relógio biológico, pressão social, vingança face a terceiros, benefícios fiscais, etc). Há uma presunção de que as pessoas se casam por «afecto», mas o afecto não é indispensável; indispensável é o consentimento.

Além disso, o «afecto» vai variando ao longo do tempo, e se por exemplo identificarmos «afecto» e «amor», então poucos casamentos duram décadas. É motivo suficiente para divórcio? Tenho dúvidas.

O casamento como «contrato» gera o casamento como «instituição», e isso, sobretudo quando há filhos, gera uma quantidade importante de deveres e direitos, e uma sanção para o incumprimento. É por isso que as construções (jurídicas ou outras) que analisem o casamento apenas segundo a coordenada «afecto» me parecem algo insensatas.

O «amor» é uma entidade inefável. Mas o casamento é uma realidade concreta, como um empréstimo ou uma torradeira.

30.3.08

Resposta a Jorge Silva Melo

Caro Jorge:

Escreve que no meu texto do Público eu cometo erros, escondo coisas e deturpo factos. E no entanto não nomeia nenhum erro, nenhum erro propriamente dito. O texto tem gralhas («Kendall» em vez de Kendal) e lapsos (falta uma referência à adaptação de um Nabokov para um filme de Fassbinder); mas erros não vejo nenhum. Muito menos encontrei o que quer que fosse «escondido», tarefa ao mesmo tempo vã e contrária ao meu feitio.

A sua crítica apenas cita as supostas «deturpações». Ou seja, aquilo que digo no texto e que não corresponde à sua interpretação (ideológica). Na verdade, aquilo de que não gostou (nadinha) está tudo num único período que diz assim:

«Stoppard nunca vogou nas águas do teatro comprometido, tal como praticado pelos seus compatriotas Osborne, Bond, Hare ou Brenton; a isso não são estranhas as suas inclinações políticas: apoiou os dissidentes do comunismo (como Havel) e manifestou simpatia por Margaret Thatcher, pecado inominável no meio intelectual».

O Jorge contesta quase tudo nestas breves linhas, e daí achar que eu «deturpo». Então vejamos:

1. «Stoppard nunca vogou nas águas do teatro comprometido»
É um facto. Embora tenha tido um acentuado gosto pela discussão de ideias, poucas peças de Stoppard tomam posição de forma empenhada. Até The Coast of Utopia (2002), a única peça estritamente política foi Every Good Boy Deserves Favour (1977), e isto, num autor tão prolífico, parece-me escasso. Cito o encenador Trevor Nunn: « (…) there are many different kinds of writers – thanks the Lord – and what a very dull theatrical landscape it would be if everybody wrote social realism or political polemic». [citado em About Stoppard: The Playwright and the Work, de Jim Hunter, Faber, 2005]

2. «tal como praticado pelos seus compatriotas Osborne, Bond, Hare ou Brenton»
O Jorge reconhece que «as causas social-democratas (…) fazem parte da boa consciência burguesa do teatro britânico» e que Tom Stoppard nunca alinhou nesse campo. Foi só isso que eu escrevi, sem nenhuma deturpação. E por «teatro comprometido» não quis dizer necessariamente «teatro de esquerda». Osborne não foi um dramaturgo «de esquerda», mas foi sem dúvida um dramaturgo «comprometido». Stoppard escolheu outro caminho.

3. «a isso não são estranhas as suas convicções políticas»
Nunca escondidas: «I think of myself as a reactionary» (artigo, 1968); «I am conservative in politics, literature, education and theatre» (entrevista, 1979), e cito apenas frases de décadas em que isto era bastante mais «heterodoxo».

4. «apoiou os dissidentes do comunismo (como Havel)»
O Jorge acha que Stoppard acordou «tarde» para a denúncia do comunismo soviético? Com o seu activismo de décadas contra a censura, contra a tortura, contra os presos políticos? Dou a palavra a outro encenador famoso, Richard Eyre: «And of course the fact is that at the time, when Tom was being vilified in some quarters as being a right-wing toady, he was actually active in a number of organizations, not least Index [on Censorship] and Charter 77, which were extremely important, and a lot more actively engaged than most “political” writers».

5. «e manifestou simpatia por Margaret Thatcher, pecado inominável no meio intelectual».
Aqui, o Jorge argumenta que até Pinter votou em Thatcher. Na biografia do dramaturgo escrita por Michael Billington, o episódio merece duas linhas: «Ironically Pinter, like Peter Hall, had voted Tory in that election [1979], inspired partly by his disgust with the National Theatre's wave of wildcat strikes». Ou seja: Pinter não votou em Thatcher por concordância ideológica, mas por reacção pontual contra os sindicatos, voto do qual se arrependeu amargamente. Essa decisão de 1979 deve preocupar quem se apoquenta com a coerência da esquerda, mas não tem nada a ver com Stoppard: « (…) he was one of very few artists to praise Prime Minister Margaret Thatcher, claiming that she spoke her mind and avoided politician’s fudge. (…) he was prepared to isolate himself from the prevailing opinions in his workplace» (Jim Hunter, op. cit.). Margaret Thatcher foi universalmente hostilizada no mundo das artes. O Jorge diz que ela foi apoiada por «Kingsley Amis, etc». Mas o único «etc» relevante que me ocorre é Philip Larkin. Nunca o establishment cultural apoia o Partido Conservador, em parte nenhuma do mundo. E o meio teatral, que eu «insinuo» ser de esquerda é afinal inquestionavelmente «social-democrata» (nas palavras codificadas do Jorge). Como diz Eyre, que dirigiu o Nottingham Playhouse e depois o National Theatre: « (…) I'm a child of the seventies – I was running a theatre in the seventies where my house writers were David Hare, Howard Brenton, Trevor Griffiths, Ken Campbell: sort of lefty anarchist – so, yes, we thought Tom was… I don't know know that we politicised him as a right-wing writer, but we saw him as not engaged». O Jorge dirá quem é o «heterodoxo» nesta matéria.

Tom Stoppard é um judeu checo cuja família fugiu dos nazis (e depois dos japoneses), cuja terra natal viveu sob a opressão comunista durante décadas, e que em Inglaterra encontrou uma segunda pátria que o acolheu e onde teve sucesso profissional e pessoal. O Jorge acha isso censurável? Estar grato a um país livre, depois de ter escapado a duas tiranias? Mas o Jorge, bem sei, considera a Inglaterra uma democracia entre aspas. A cada um a sua «deturpação».

28.3.08

Uma carta de Jorge Silva Melo

Pedro,

Não gostei (nadinha) da tua nota sobre Tom Stoppard publicada no Ípsilon de 21 de Março. Na tua admiração por este autor, apresenta-lo como um solitário herói (da direita), um verdadeiro lonesome cowboy dentro do panorama intelectual do teatro britânico, que insinuas ser de esquerda. Mas cometes erros, escondes, deturpas. E isso, mesmo quando motivado por amor extremo, será perdoável, mas é feio.

Dizes que Stoppard “manifestou simpatia por Margaret Thatcher”, o que afirmas ser “pecado inominável no meio intelectual.” Pois olha que não o era no meio teatral, ou não te lembras do apelo ao voto em Thatcher subscrito por Harold Pinter, o anti-Blair/Bush, e Peter Hall, o brechtiano, ou esse delicioso Simon Gray, verdadeiro inconveniente? Nem no meio literário – Kingsley Amis, etc. Ou não te lembras que o fenómeno Thatcher, na sua fúria anti-sindical, congregou inesperados sectores da sociedade britânica, aterrados por um equilíbrio sindicatos-patronato que parecia esclerosado?

Dizes que Stoppard, “nunca navegou nas águas do teatro comprometido tal como praticado pelos seus contemporâneos”. Ora, o que é precisamente “The Coast of Utopia”, farfalhuda (maçadoríssima) versão dos penetrantes ensaios de Sir Isaiah Berlin sobre os utópicos russo-alemães? Ou este inteligentíssimo “Rock´n Roll”, entrada tardia no teatro dos temas que, nos anos 60, Milos Forman trouxe ao cinema (não viste o belo “Amores de Uma Loira”?)? E os Skolimovskis polacos não eram isso mesmo e com que vitalidade (a frescura inesperada de serem a coisa certa no momento certo)?

Ou, quando querias dizer “teatro comprometido” querias dizer “de esquerda”? Isso é verdade, nunca (até agora...) Stoppard se misturou com as causas social-democratas que fazem parte da boa consciência burguesa do teatro britânico, verdadinha. Fê-lo agora (e brilhantemente) nestes hinos de louvor ao actual sistema “democrático”, quando os ventos correm de feição a estas perspectivas tranquilizantes – e o debate já não é possível, está toda a gente de acordo, foi-se o incómodo. (Porque não o fez antes, quando os ventos do rock varriam as noites dos rapazes de Leste? Não sabia? Só agora deu por isso?). Não serão antes estas suas peças mais recentes celebratórias, peças tradicionalmente festivas, peças da maioria social-democrata, arte funerária, estela por mortos, peças do consentimento, agradecimento, reconhecimento (comprometido) do emigrante também politico que ele é (como afirmou na extraordinária entrevista que deu ao Guardian aquando da estreia)?

E porque dizes que o tal teatro “comprometido” seria, contrariamente ao do teu herói solitário, praticado pelo “seu compatriota Osborne”? Que diferença de horizonte politico vislumbras tu entre as diatribes contra o fim do colonialismo que são “A Patriot For Me” ou “West of Suez” e estas peças comprometidas de Stoppard? Ou, na cegueira de uma paixão, citas Osborne, esse reaccionário antes do tempo em que ser reaccionário passou a ser moda, sem o ter visto - e copiaste a sebenta?

Admito a tua simpatia por Stoppard (é um escritor, sim), cada qual é como quer e cultiva as heterodoxias (neste caso, não serão ortodoxias de hoje em dia?) que tem à mão. Mas, Pedro, não apagues a História, houve tantos que o fizeram, há ainda tantos - e ainda continuamos sem saber.

(No Ípsilon de hoje)

27.3.08

Came so far for beauty

26.3.08

Pick up

Quinta, 27 de Março, 21h30, na Casa Fernando Pessoa
O semanário «Expresso» foi acusado de censurar uma crítica literária a respeito do último romance de Miguel Sousa Tavares. O jornal alega que o texto não tinha a qualidade necessária para ser publicado. O caso levanta interrogações sobre os limites e as obrigações da crítica literária na imprensa. É esse o tema em discussão na sessão de Março dos Livros em Desassossego com as presenças de Clara Ferreira Alves, Pedro Mexia e José Mário Silva. Nuno Júdice vem apresentar o seu novo livro de poesia a publicar em Abril, «A Matéria do Poema», e Maria da Piedade Ferreira, a editora da Oceanos, vem falar de três livros recentes que gostaria de ter podido publicar. Carlos Vaz Marques modera. A entrada é livre.

We will rock you



A melhor peça que veremos este ano estreia amanhã no Teatro Aberto.

24.3.08

Não vou fazer disso um assunto

I will not make age an issue of this campaign. I am not going to exploit, for political purposes, my opponent's youth and inexperience.

Ronald Reagan (73 anos) para Walter Mondale (56 anos), no debate presidencial de 1984





















(do blogue Ilustração Portuguesa, um verdadeiro serviço público)

23.3.08

Qual das duas

A sondagem chegou ao fim, com os seguintes resultados:

Scarlett Johansson, 542 votos (53,4%)
Natalie Portman, 473 votos (46,6%)


Qual das duas? A filha de uma judia e um dinamarquês ou a filha de um israelista e uma americana? Têm quase a mesma idade (Natalie nasceu em 1981 e Scarlett em 1984), estrearem-se no cinema no mesmo ano, 1994, ambas trabalharam com Woody Allen, ambas fazem publicidade de cosméticos, ambas promovem causas progressistas, ambas entraram no imaginário ocidental como Lolitas. Natalie tem umas feições que nem Bernini num dia bom chegava lá, de uma harmonia clássica e tranquila mas com capacidade para a melancolia e a lascívia com um bater de pestanas. Scarlett é, como se dizia antigamente, mais «planturosa», lábios cheios e seios fartos num corpo que foge ao look esquelético, e com um estilo lânguido ou sonolento. Scarlett tem tido mais sorte: fez o inesquecível Lost in Translation (2003) e o único Allen extraordinário de quase duas décadas, Match Point (2005). No primeiro, é perfeita como spoiled brat insone, no segundo nem tanto. Ela tem grande à vontade em allumeuses de chupa-chupa (como num filme dos Coen) ou jovenzinhas frustradas com os prazeres e os dias (como em Ghost World, 2001); mas só vi ali uma actriz a sério em A Love Song for Bobby Long, 2004, interessantíssima elegia sulista. Muitas vezes, parece mal escolhida para o papel (The Black Dahlia, Scoop, A Good Woman, todos 2005) ou faz filmes incrivelmente medíocres. Como modelo de Vermeer foi um achado, não pelo filme (banal) mas pela conjunção dos dons da natureza com os dons de Eduardo Serra. Natalie não tem tantos filmes maus, mas também ainda não fez um filme realmente bom. Popularizada pela princesa de Star Wars (2002/2005), tem um ar frágil e grácil que está mesmo a pedir comédias românticas e tragédias amáveis. Nesse registo, gostei de Garden State (2004), cheio da precipitada poesia dos trintões; já em Closer (2004), Natalie tentou ser ostensivamente «sexy» o que não vai bem com ela, excepto se for uma sexualidade súbita de molhar as boxers à plateia (a curta Hotel Chevalier, 2007). Nem uma nem outra são actrizes consagradas, e Scarlett especialmente vai sofrer um bocado quando o tempo e a gravidade reclamaram os seus direitos. Qual das duas? São ambas moças francamente striking, como se diz em português. O implacável instinto classista decide a coisa: esteticamente prefiro sempre a rapariga que não pareça uma esteticista. São gostos.

Importantes para o catálogo

Nas notas ao disco antológico Meet the Eels (2008), Mark Everett diz sobre determinada canção: «The person who inspired this also inspired another song on this collection. Let's face it: the girl is good for my catalogue». E eu penso nas três mulheres «importantes para o meu catálogo», e também estou agradecido.

O que fazem mulheres

Não aguento mais conversas de homens, opiniões de homens, vaidades de homens, conflitos de homens. A única coisa que me importa é o que dizem e fazem e pensam as mulheres. Estão muito enganados aqueles que acham que a heterossexualidade é apenas uma orientação sexual.
Estamos a trinta votos de fechar as urnas nesta sondagem aos leitores a propósito da estreia de The Other Boleyn Girl. Quando chegarmos aos 1000, digo de minha justiça.

21.3.08

A capacidade de não estar interessado



What people tend to underestimate is my capacity for not bothering, not caring, not minding, not being that interested.

(Tom Stoppard)

Tom Stoppard

Tomas Straussler, aliás Tom Stoppard, aliás Sir Tom Stoppard, é um caso especial no teatro inglês. Pelo seu percurso, pelas suas ideias, e pelo seu sucesso. Judeu nascido na Morávia (Checoslováquia) em 1937, teve a infância fustigada pela Guerra Mundial. Os pais fugiram para Singapura, mas o pai morreu vítima dos japoneses; a mãe casa então em segundas núpcias com o major inglês Kenneth Stoppard, um defensor do Império e dos valores tradicionais. Mais inglês que os ingleses, o jovem Tom não prossegue os estudos, e anda pelo jornalismo e pela crítica teatral, até que uma produção amadora de uma peça sua, Rosencrantz and Guildenstern Are Dead (1966), caiu no goto do mais que influente Kenneth Tynan, que a trouxe para o National Theatre. Tomando como personagens duas figuras secundárias de Hamlet, Stoppard fez uma espécie de À Espera de Godot com trocadilhos e existencialismo de feira, dois homens que discutem infindavelmente o sentido das palavras e o sentido da vida. Perguntado sobre o tema da peça, Stoppard respondeu: «It's about to make me rich». Rico não terá ficado logo, mas tornou-se um nome mundialmente conhecido e incessantemente representado. Os seus primeiros trabalhos, como The Real Inspector Hound (1968) e After Magritte (1970) são divertimentos mais ou menos grotescos. Mas em 1972 surge Jumpers, modelo da peça stoppardiana: intelectuais que saltitam entre ideias, ao ponto de fazerem uma verdadeira ginástica acrobática em palco, enquanto esgrimem conceitos como o «relativismo amoral». Jumpers estabeleceu Stoppard como autor de um «teatro de ideias» dado através de jogos de palavras, anedotas, silogismos e aforismos. Ao mesmo tempo, as peças reflectiam as ideologias que mudaram o mundo; assim, Travesties (1974) junta Joyce, Tzara e Lenine numa farsa sobre as vanguardas modernistas. Sempre acusado de ser demasiado «clever», Stoppard argumenta que escreve peças porque não sabe o suficiente para escrever ensaios, artificio enganoso para quem mergulha a fundo nos temas que o interessam. Só num momento pareceu abordar temas mais autobiográficos: quando se divorciou da segunda mulher e teve um relacionamento muito noticiado com a sua actriz fetiche, Felicity Kendal. Dessa relação nasceu o seu texto mais pessoal, The Real Thing (1982), sendo que essa «coisa real» é naturalmente o amor, certeza que sempre nos escapa. Stoppard nunca voguou nas águas do teatro comprometido, tal como praticado pelos seus compatriotas Osborne, Bond, Hare ou Brenton; a isso não são estranhas as suas inclinações políticas: apoiou os dissidentes do comunismo (como Havel) e manifestou simpatia por Margaret Thatcher, pecado inominável no meio intelectual. Também ficou conhecido pela sua militância na Amnistia Internacional. Arcadia (1993), uma peça sobre um elitismo cultural pastoral, The Invention of Love (1997), sobre o poeta e classicista A.E. Housman, prosseguiram as suas investigações intelectuais. Em 1997, foi feito Sir. Escreveu sempre abundantemente. As suas peças completas, em cinco volumes, incluem adaptaões de Tchekhov e Schnitzler e textos para a rádio. Também adestrou a mão escrevendo ou adaptando argumentos de filmes de sucesso como Brazil, O Império do Sol, A Casa da Rússia, Billy Bathgate e Shakespeare in Love. Levou ao cinema, sem grande sucesso, a sua primeira peça, com Gary Oldman e Tim Roth nos papéis principais. Em 2002, Stoppard completou a sua peça mais ambiciosa e mais celebrada, The Coast of Utopia, uma costa da utopia que é também sobre o «custo» da utopia: uma epopeia sobre os radicais russos de fins de oitocentos, que deve muito aos estudos de Isaiah Berlin. Rock 'n' Roll (2006), a sua peça mais recente, e que agora podemos ver em português, conta o segredo mais bem guardado da resistência ao comunismo: o rock'n roll, precisamente.

(no Ipsilon de hoje)

20.3.08

«Inflamação dos seios paranasais». Ou, para os amigos, sinusite crónica

A farsa da virilidade



No monumental romance Belle du Seigneur (1968), Albert Cohen acusa as mulheres de serem por vezes «paleolíticas». Como é que um homem que dedicou a sua obra ao culto das mulheres escreve uma barbaridade dessas? Não é barbaridade nenhuma: Cohen censurava nas mulheres aquilo a que num inquérito chamou «a adoração da força»: a submissão ao homem enquanto criatura agressiva e cavernícola. No mesmo inquérito, aliás, Cohen critica os homens que se entregam à «farsa da virilidade». Ou seja: Cohen critica as mulheres que gostam dos homens como os homens querem que elas gostem deles.

Razão com Aron

«Mais vale estar errado com Sartre do que ter razão com Aron», diziam alguns esquerdistas já em desespero de causa. E no entanto nenhuma discordância se traduz realmente em alguém que «tem razão» e alguém que «não tem razão». Quando os pressupostos e a linguagem são radicalmente diferentes, não existe campo neutro onde se decida quem tem razão. A «razão» que os inimigos (derrotados) de Aron lhe concediam como hipótese é irrelevante: ninguém escolhe racionalmente o seu lado. Vale mais estar errado com convicção do que estar certo porque alguém nos convenceu.

O hermetismo

O hermetismo ainda é a maneira mais divertida de mandar alguém à merda.

Catacrese

Catecrese não é malícia mas preguiça.

Estratégias

O graxista militante e o azedo militante vivem ambos de estratégias.

18.3.08

Além daqueles com quem falei pessoalmente ou via mail, agradeço as palavras dos colegas bloguistas Adolfo Mesquita Nunes, Daniel Oliveira, Eduardo Pitta, Francisco José Viegas, Lourenço Cordeiro, Luís Januário, Miguel Marujo, Paulo Pinto Mascarenhas, Pedro Correia, Sara Pais e o meu primo José Mexia (e outros que ainda não tenha lido). Agradeço também a quem se mostrou «indignado» ou «muito indignado» ou «extremamente indignado»: sem a vossa ajuda ainda passava pelo implausível vexame de parecer «consensual».

15.3.08

Acidentalmente (a política anglófona)

14.3.08

A imortalidade que rivaliza com a das arrufadas

Naquele ano da Graça necessitava-se de uma certa inocência, e atestado de vita et moribus para ser-se sócio do Instituto. Certidão de castidade não a exigiam expressamente; porém, se o aspirante àquela imortalidade que rivaliza com a das arrufadas indígenas estivesse em ferros d’el-rei por motivos ambiguamente característicos de virgindade, o Presidente e mais quatro apologistas da abstinência de Newton e Pascal punham cinco favas negras, como folha de parreira, a tapar a desnudez erótica do candidato do Instituto, uma congregação de Orígenes inteiros, insuspeitos ao Código Penal, e aos chefes de família, mas bastante saturados de copaíba.

(Camilo Castelo Branco)

Calcanhares

Porque é que certas expressões ficam na cabeça para sempre? Por exemplo aquele «Poirot rodou nos calcanhares», que li há tantos anos? Na altura, fiquei fascinado com a expressão usada por Agatha Christie, ou pelo seu tradutor português. Comecei a rodar nos calcanhares com entusiasmo, sem saber muito bem como se fazia ou para quê. E nos primeiros contarelos que escrevi, as personagens «rodavam nos calcanhares» que se fartavam.

Lembrei-me disso hoje, a meio da noite e no meio da rua, quando rodei nos calcanhares como se tivesse catorze anos.

21 de Agosto de 2004

O taxista, desiludido mas calmo, vai desfiando a história do seu casamento falhado e do seu divórcio litigioso. Conta que tudo começou quando descobriu a mulher com outro homem. «Isso foi recente?», pergunto eu, apenas para dizer alguma coisa. Ele responde, calmo mas desiludido: «Foi no dia 21 de Agosto de 2004».

13.3.08

Endogamia

A primeira mulher de Georges Bataille, Sylvia, veio depois a casar com Jacques Lacan. A companheira seguinte de Bataille, Laure, foi «roubada» a Boris Souvarine. Uma das suas namoradas, Denise, tornou-se companheira de Maurice Blanchot.

Mamet direitolas?



Quando li isto, não acreditei. Pareceu-me uma coisa como aquele texto apócrifo que correu mundo de um Garcia Marquez todo «espiritual». Mas o Village Voice não publicaria este artigo se fosse uma fraude, pois não? Nem sei que vos diga.

De que se trata? Numa palavra: David Mamet, um dos grandes dramaturgos vivos, confessa que se tornou direitista. Palavra de honra. Leiam o texto.

Mamet desfia vários argumentos políticos, mas o argumento essencial é naturalmente antropológico:

And, I wondered, how could I have spent decades thinking that I thought everything was always wrong at the same time that I thought I thought that people were basically good at heart? Which was it? I began to question what I actually thought and found that I do not think that people are basically good at heart; indeed, that view of human nature has both prompted and informed my writing for the last 40 years. I think that people, in circumstances of stress, can behave like swine, and that this, indeed, is not only a fit subject, but the only subject, of drama.

Há décadas que os admiradores de Mamet já sabiam (e apreciavam) o seu pessimismo. Mas esta confissão (numa publicação fétiche da esquerda americana) não deixa de ser supreendente e corajosa.

Ou isso ou é uma partida de 1 de Abril feita a 11 de Março.

A mentira em política

Há poucos meses foi um senador (Republicano) do Idaho; agora, foi um governador (Democrata) de Nova Iorque. Um tentou engatar homens num WC público; o outro, ao que parece, é cliente de uma agência de meninas. Ambos ficaram com a carreira política em cacos.

Tudo começou com Gary Hart, que viu a sua candidatura presidencial abortada por causa de uma infidelidade conjugal. Anos depois, o presidente Clinton foi miseravelmente perseguido por ter aviado uma estagiariazeca badocha, e o mundo ouviu detalhes de vestidos manchados e charutos enfiados.

Dizem nestes casos os Catões da genitália alheia: quem mente sobre a vida sexual não merece a confiança dos cidadãos.

Não é verdade. E por duas razões.

Em primeiro lugar, toda a gente mente sobre a sua vida sexual. Os motivos são umas vezes louváveis, outras vezes discutíveis, mas sempre compreensíveis. Se existe algum domínio em que a transparência não vale, é precisamente o domínio sexual.

Em segundo lugar, a vida sexual de um político não diz nada sobre a sua ética. Nunca um casto foi mais honesto por ser casto, e nunca um devasso foi incompetente por causa da sua devassidão. Exceptuando casos flagrantes de hipocrisia política, a vida sexual é vida privada.

Se os políticos engatam meninos e frequentam meninas, isso é assunto deles e da família deles.

Ou alguém acha que em política as mentiras graves são assuntos de pichotas e coninhas?

10.3.08

Desentalei-me

Quedei-me a pensar uma noite, sempre com a fava negra de V. Exª. a pesar-me, primeiro no coração, depois no diafragma, depois nos intestinos subjacentes por sua ordem descendente, até que a digestão da afronta se consumou. Desentalei-me.

Agora posso placidamente dizer a V. Exª. que respeito a sua mágoa de me ver sócio do Instituto contra a sua vontade. Os pesares, ainda que mesmo injustos, do meu semelhante, imponho-me a remediá-los, dado ainda que neste esforço de caridade disponha muito da minha vaidade e filáucia. Ai está a razão por que eu devolvo a V. Exª. o diploma que recebi de sócio do Instituto Conimbricense. Não quero isto à custa do desgosto de V. Exª. Aí renuncio em suas mãos este papelucho querido, que V. Exª dará ao seu menino mais novo para ele fazer um bote ou um chapéu de dois bicos.

Camilo, a um académico que lhe deu bola preta numa votação

A coragem e a cobardia

Robert Rossen e Joseph Losey foram comunistas nos anos 40. Perante o McCartismo, tiveram actuações diferentes: Rossen revelou nomes, Losey preferiu o exílio. É por isso curioso comparar dois dos seus filmes sobre a coragem e a cobardia: They Came to Cordura (Rossen, 1959) e King & Country (Losey, 1964).

King & Country é uma denúncia do patriotismo e do militarismo: um soldado deserta e o oficial que trata da sua defesa em tribunal de guerra vai compreendendo que numa carnificina (estamos em 1917) o medo é mais lúcido que a coragem; o medo é que é a verdadeira resistência. Em They Came to Cordura (estamos em 1916), um oficial que tem como incumbência observar os combate das tropas americanas contra Pancho Villa e recomendar medalhas de bravura. Acontece que os soldados «heróicos» que ele escolta de volta à base se revelam gente pouco recomendável; e que ele, embora honesto, é culpado de um acto de cobardia em batalha.

Dirk Bogarde e Gary Cooper são colossos de intensidade, um sofisticado e ambíguo, o outro sólido e estóico. Bogarde percebe que a sua defesa do desertor é uma condenação geral da guerra. Cooper toma notas abstractas sobre a «coragem» no seu caderninho, percebendo no fim que a dimensão ética não se esgota na questão da «coragem».

Curiosamente, em ambos os filmes (mais radical o de Losey, mais pessimista, o de Rossen), há a mesma ideia: a traição não é a linha divisória entre o bem e o mal; a traição redefine as noções de bem e mal.

7.3.08

Correctivo



É o hype do momento, os betos que pilham o Graceland: Vampire Weekend. Não estou ainda totalmente convencido, embora até os ande a ouvir em repeat. A minha canção favorita é, de longe, «I Stand Corrected». Pelo travo indie. Pelo refrão solene e portanto raivoso. Porque eles definem isto assim: «This is a song about being wrong». Que é coisa que eu estou muitas vezes.

6.3.08

Da marginalidade

Luiz Pacheco e Gabriela Llansol são escritores opostos: ele visceral e ela hermética.

De Pacheco, gosto muito de um punhado de narrativas vividas e de alguma crítica combativa. Não apreciava a «personagem». De Llansol, li com grande fascínio a «Trilogia de Rebeldes», alguns diários e vários fragmentos fulgurantes. Mas nunca suportei a mística laica.

Pacheco e Llansol eram a seu modo «marginais». Mas a sua marginalidade foi paradoxal. Pacheco com subsídio e entrevistas e legiões de fãs. Llansol com prémios literários e críticos entusiastas.

A marginalidade não é virtude nem defeito. Sempre houve Villons e Rimbauds, e também sempre houve grandes escritores oficiais ou mundanos, dos trovadores a Malraux, de Goethe a Cocteau. A «marginalidade» biográfica é irrelevante como critério de qualidade.

A grande literatura é sempre intrinsecamente marginal, na sua visão do mundo e uso da linguagem. E isso não depende das anedotas biográficas.

ADENDA 1: Não discuto religião. Mas vejam como os mesmos que defendem o «diálogo» e a «comunidade» depois se espojam com gosto no ataque pessoal e na pesporrência.

ADENDA 2: Sobre o mesmo assunto, uma perspectiva laica.

5.3.08



JAMIE: I'm quitting sex. (...)

MASON: Why? You love sex.

JAMIE: No, I don't. See, I need sex and it's fucking ruining my life.

MASON: Well, I don't know why you're blaming sex.

JAMIE: 'Cause it ruins everything. Look, good sex just hides everything that's bad about a relationship.

MASON: Well, then have bad sex.


(Michelle Borth e Kate Towne, Tell Me You Love Me (HBO), série 1, episódio 5)

4.3.08

Qual das duas



Estreia quinta-feira um filme em que contracenam as duas musas dos trintões e quarentões com tendencia para lolitas: Natalie Portman e Scarlett Johansson.

Daí a sondagem Estado Civil: Qual das duas?

«Qual das duas» o quê? Bom, isso cada um sabe de si.


ADENDA 23 Março: VOTAÇÃO ENCERRADA

3.3.08

Famílias inesperadas

A bondgirl Eva Green é sobrinha de Marika Green, actriz no sublime Pickpocket.

A escanzelada Jeanne Balibar, que conhecemos por exemplo dos filmes de Rivette, é filha do filósofo marxista Étienne Balibar.

O licoroso Joe Dassin era filho do cineasta americano expatriado Jules Dassin.

1.3.08

Qual é o teu crime



Green shadow, water weight all o-all over me
The end will shelter me away from me
Can we meet again, meet and meet and meet and meet again
Can ya fill the can if ya can’t fill me?

Who ya following?
Who ya starting to move like?
Who ya falling for, who ya falling for?
Whose lies?
Who ya following, who ya falling for?
This sound’s on your side

Secret blue purple pink and green right over it
Hold on cuz the coldest hasn’t thawed yet
Well if we meet again, meet and meet and meet and meet again
Can ya catch the can if you can’t fill it?

How will you want something to hit with
Spinning again and again and again and again
What's your crime
What's your crime
Well how will you want
How does she sit
What's spinning again and again and again and again
What's your crime
What's your, what's your, what's your, what's your
What's your crime, crime, crime
What's your, what's your, what's your, what's your
What's your crime